PESQUISA/RESEARCH

 

Prevalência e intensidade de infecção por Ascaris lumbricoides em amostra populacional urbana (São Paulo, SP)

 

 

Cláudio Santos FerreiraI; Marcelo Urbano FerreiraI; Marcos Roberto NogueiraII

IDepartamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, Caixa Postal 4365, CEP 01051, São Paulo, SP
IIHospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

 


RESUMO

Pesquisaram-se ovos de Ascaris lumbricoides em amostras fecais de 407 moradores (8,87% do total) de uma favela da cidade de São Paulo. Realizaram-se exames qualitativos (sedimentação por gravidade) e quantitativos (técnica de Kato & Miura adaptada a contagens). Discutem-se aspectos diferenciais da epidemiologia da ascaríase em áreas urbanas e rurais, com base em dados deste estudo e da literatura. Salienta-se a importância, em epidemiologia, da quantificação de exames de fezes.

Palavras-chave: Ascaríase: epidemiologia; Coproscopia quantitativa; Helmintos intestinais


ABSTRACT

Prevalence and intensity of Ascaris lumbricoides infections in an urban population sample (São Paulo, Brazil)
Ascaris lumbricoides eggs were searched for in 407 fecal samples (8,87% of the total population) of dwellers in a slum in the City of São Paulo, Brazil. Qualitative and quantitative examinations were performed using, respectively, gravity sedimentation and Kato & Miura thick smears adapted for egg-counts.
Epidemiological aspects of ascariasis in urban and rural areas, inferred from the results of this investigation and data in the literature referred to, are discussed. The importance of quantitative stool examinations in Epidemiology is stressed.

Key words: Ascariasis: epidemiology; Quantitative coproscopy; Intestinal helminths


 

 

INTRODUÇÃO

Ascaris lumbricoides está entre os helmintos intestinais mais prevalentes em seres humanos. Estima-se que cerca de 22% da população mundial (mais de 1 bilhão de pessoas) estejam infectados e 10% do total de indivíduos parasitados encontrem-se na América Latina (6). Alta prevalência de ascaríase é considerada indicativa de saneamento básico inadequado, comumente observado em comunidades rurais (5, 7, 14, 21, 23). Entretanto, são freqüentes os relatos de prevalência de ascaríase em áreas urbanas, semelhante ou mesmo superior à de áreas rurais adjacentes, em vários países do Terceiro Mundo (3, 8, 10). Um modelo de urbanização incapaz de assegurar melhor qualidade de vida nas cidades (19, 20) acaba por afetar a epidemiologia da ascaríase, que adquire novos contornos em meio urbano. Discutem-se aqui aspectos epidemiológicos da infecção por A. lumbricoides em uma amostra populacional urbana — moradores da favela São Remo, na cidade de São Paulo —, comparando-os com estudos realizados em áreas rurais.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Área, população e amostragem

A favela São Remo localiza-se junto ao campus da Universidade de São Paulo, na Zona Oeste da cidade de São Paulo. Ocupa 60 000m2, compreendendo 977 domicílios e cerca de 4.600 habitantes. A amostra estudada abrange 99 domicílios (10,13% do total), tendo sido visitado um em cada 10 domicílios percorridos. Obtiveram-se amostras fecais de 407 indivíduos (8,84% do total); a recusa de fornecimento de amostras (0,6 habitante por domicílio) predominou entre adultos do sexo masculino.

Colheita e processamento de amostras fecais

As amostras fecais, colhidas em recipientes metálicos adequados, foram conservadas a 4°C até exame, no Departamento de Parasitologia da USP. Empregou-se para triagem a técnica de sedimentação por gravidade (Hoffman et al. 9). As amostras positivas para A. lumbricoides foram ulteriormente submetidas a contagens de ovos, por meio da técnica de Kato & Miura (11), adaptada a determinações quantitativas por Araújo (2).

Na técnica descrita por Araújo, as amostras fecais são transferidas diretamente do recipiente em que estavam acondicionadas, sem tamisagem, para as lâminas de microscopia onde se prepara o esfregaço. Medem-se dois diâmetros do esfregaço, perpendiculares entre si, sendo a média aritmética desses valores empregada no cálculo de volume fecal, por meio de tabela previamente elaborada. Esta mesma tabela fornece fatores que permitem obter os valores finais de contagens em termos de ovos por grama de fezes.

 

RESULTADOS

Por meio da técnica de sedimentação, identificaram-se 97 amostras positivas (23,83%) para A. lumbricoides, com semelhante distribuição entre indivíduos do sexo masculino (24,8% da amostra infectados) e do sexo feminino (22,9%). As maiores prevalências observaram-se entre crianças de 2 a 12 anos de idade (Figura I).

 

 

Em 67 amostras (69% do total positivo para A. lumbricoides) efetuaram-se contagens de ovos, sendo os resultados expressos em ovos por grama de fezes (opg). A distribuição de A. lumbricoides observada no conjunto de hospedeiros é superdispersa (apresnta variância superior à média): a grande maioria dos hospedeiros está isenta de infecção ou levemente infectada, enquanto uma pequena parcela alberga a maioria dos vermes adultos. Metade da população infectada elimina somente 10,66% dos ovos, enquanto 10% dos indivíduos infectados (ou 1,6% do total geral da amostra) eliminam 45,37% dos ovos. As maiores cargas parasitárias (estimadas indiretamente por contagem de ovos eliminados nas fezes) observaram-se entre indivíduos entre 6 e 25 anos de idade (Figura II).

 

 

A dispersão de helmintos em uma população de hospedeiros é bem descrita matematicamente pela distribuição binomial negativa, dada pela expansão da expressão (q-p)-k, onde q=1+p e k é positivo, fornecendo medida inversa da agregação de helmintos na população hospedeira (1,4, 16). Supondo-se a eliminação de ovos nas fezes aproximadamente proporcional à carga parasitária albergada pelo hospedeiro, espera-se que as contagens de ovos também sigam a mesma distribuição. A Figura III, construída a partir dos dados de contagens de ovos de A. lumbricoides, apóia esta hipótese. (Para a elaboração da Figura III, consideraram-se negativas as amostras fecais cuja contagem de ovos foi negativa, independentemente do resultado obtido por meio da técnica de sedimentação).

 

 

CONCLUSÕES

A produção e eliminação diárias de ovos de A. lumbricoides são amplamente variáveis e nem sempre há correlação linear com a carga parasitária (15). A fecundidade de fêmeas adultas de A. lumbricoides parece diminuir em casos de elevada densidade parasitária, embora persista controvérsia a este respeito (11). Admite-se também que nem sempre vermes adultos machos e fêmeas estejam presentes no hospedeiro em iguais proporções (15). Apesar disto, há certo consenso em torno da estimativa de produção diária de 200.000 ovos por fêmea adulta de A. lumbricoides,que resultaria em 2000 opg (estimando-se massa fecal diária do hospedeiro de l00g) por fêmea ou 1000 opg por verme adulto albergado (13, 15, 17, 18). Desta estimativa deriva a distinção preconizada pela Organização Mundial da Saúde entre infecções leves (menos de 5000 opg) e pesadas (acima de 50.000 opg) por A. lumbricoides (24). Aplicando-se este critério a nossos dados, diz-se que 46,3% dos portadores de A. lumbricoides têm infecções leves e somente 1 apresenta infecção pesada (59.212 opg). Entretanto, a média das contagens de ovos eliminados pela população infectada (10.816 opg) sugere carga parasitária superior à média globalmente observada na população humana infectada (6 vermes por hospedeiro (25).

Descreve-se comumente maior prevalência de ascaríase em crianças acima de um ano de idade, com decréscimo na idade adulta (6). No entanto, nem sempre esta distribuição etária se reproduz. Em comunidades rurais estudadas, a prevalência de ascaríase algumas vezes sobe após o primeiro ano de vida até atingir um plateau, onde se mantém ao longo das demais faixas etárias. O mesmo comportamento observa-se na distribuição de carga parasitária (14). Este padrão pode verificar-se tanto em situações de elevada prevalência e altas cargas parasitárias (5) como em casos com média prevalência e cargas parasitárias muito baixas (7). A distribuição etária de ascaríase em populações urbanas, no entanto, parece seguir o padrão clássico de predominância entre crianças acima de um ano (22), embora sejam escassos os estudos com análise quantitativa adequada (10). Na cidade, o padrão de contato com o ambiente peridomiciliar deteriorado parece alterar-se nas faixas etárias economicamente produtivas, pois as atividades de trabalho urbano afastam, durante parte do dia, os indivíduos nelas envolvidos do local de transmissão.

A intensidade de infecção por A. lumbricoides também parece afetada pela organização do espaço urbano. Populações urbanas desprovidas de habitação e saneamento adequados, em áreas de alta densidade demográfica, podem estar sujeitas a níveis de contaminação ambiental superiores aos encontrados em comunidades rurais primitivas, onde a dispersão populacional dificulta o acúmulo de material contaminante. A comparação entre áreas rurais e urbanas com semelhante prevalência de ascaríase é ilustrativa disto. Entre índios do Parque Indígena do Xingu portadores de A. lumbricoides (20% da população total de uma aldeia), calculou-se a eliminação média de 900 opg. Em nenhum caso observaram-se contagens de ovos compatíveis com infecção que não se pudesse considerar leve (7). Estes dados, comparados à prevalência de ascaríase (23,83%) e à média de contagens de ovos (10.816 opg) deste estudo, com 53,7% dos casos considerados acma do limiar sugerido para "infecção leve", sugerem confirmar-se a hipótese apresentada.

A elucidação mais completa de aspectos epidemiológicos comparativos da ascaríase exige que se incorporem mais freqüentemente análises quantitativas (de contagens de ovos ou eliminação de vermes adultos após tratamento) nos inquéritos parasitológicos (10, 21, 24). Técnicas de contagens de ovos simples e precisas, de baixo custo e fácil aplicação a grande número de amostras fecais, são um instrumento necessário ao pesquisador. O método de Araújo (2) preenche estes requisitos básicos.

 

AGRADECIMENTOS

Ao CNPq, pela concessão de bolsas de iniciação científica durante a realização deste trabalho (processos no. 100720/87 e 803346/87); à equipe técnica do Projeto Sudoeste (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP), pelo auxílio durante a coleta de amostras; e ao Dr. Heitor Franco de Andrade Jr. (Instituto de Medicina Tropical de São Paulo), pelas sugestões e auxílio na confecção de gráficos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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