REGISTRO/COMMENTS
AIDS: hipótese do excesso "aidético" sobre seus distúrbios emocionais
Anastácio MorgadoI; Giovanni LovisiII
IDepto. de Epidemiologia e Métodos Quantitativos da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, Rua Leopoldo Bulhões, 1480, Manguinhos, 21041 - Rio de Janeiro - RJ
IIMestrado da Ensp/Fiocruz
INTRODUÇÃO E ANTECEDENTES DA HIPÓTESE
Todos sabem que as pessoas infectadas pelo HIV manifestam variados e intensos distúrbios psicológicos, mas estes são vagamente explicados, mesmo por profissionais, sobretudo por ausência de um adequado referencial teórico. Tal referencial é proposto abaixo, através de uma hipótese sobre os distúrbios ao longo de toda a doença.
A hipótese foi desenvolvida a partir de dois contextos. O primeiro foi a observação empírica de distúrbios relatados em entrevistas com pessoas infectadas pelo HTV, os quais eram claramente oriundos de idéias pseudocientíficas em torno da epidemia de AIDS. Tais idéias, as mais freqüentes e constantes, resumem-se em três grupos:
1) Mecanismos de infecção não-comprovados - às vezes, era como se a pessoa infectada pelo HIV fosse um amontoado de vírus e que estes escoariam pela saliva, suor, lágrimas, escarro e os demais excretas.
2) Problemas com os direitos da pessoa, para os quais os dispositivos de lei não eram claros ou eram inoperantes.
3) A invasão da privacidade da pessoa, tornando pública sua vida sexual, mais seriamente no âmbito ocupacional.
Visivelmente, as pessoas infectadas pelo HIV ficam submetidas a essa superestrutura1, exterior a elas próprias, do conjunto estável dos três tópicos acima e outros aspectos menos graves.
O segundo foi o contexto teórico, vindo do Perfil Psicológico da Doença Fatal (PPDF), em adulto previamente saudável e na ativa ocupacional. O PPDF manifesta-se em doenças como o infarte do miocardio, leucemia, câncer do pulmão e de outros tipos, como estudado por Arce (1971) e Feifel et al. (1973). Em que consiste o PPDF? - É um esquema como o da Fig. I, que representa os distúrbios emocionais ao longo da evolução de doença fatal bem medicalizada (a Medicina domina a doença em si e seu contexto), em pessoa previamente saudável, no qual há três ou quatro fases distintas, como se segue:
1a Fase do Choque
De curta duração, em torno de um mês. Eclode com a surpresa imprevista do diagnóstico e da imperiosa necessidade de confirmá-lo de várias maneiras. É difícil aceitar um tal diagnóstico; às vezes nega-o diante de evidências objetivamente irrefutáveis. Afora doenças como o infarte do miocardio e leucemia aguda, as limitações físicas reais são mínimas. As mudanças afetivas e de ansiedade, sobretudo de medo da morte, dominam o quadro; é raro o paciente chegar às raias do desespero e do pânico.
Tais distúrbios viriam de duas fontes: a) do desabamento de todo um projeto de vida que a pessoa quer realizar, que é ceifado pelos imperativos da doença; e b) medo-pavor do aniquilamento de tudo da pessoa pela morte embutida na doença; este medo seria idêntico ao do desenvolvimento da infância, aos 3-5 anos de idade, quando a criança descobre que ela e seus pais não são imortais que tudo vai virar nada. Essa vivência pavorosa é então reeditada quando a morte precoce se impõe num adulto que tem um longo projeto a realizar.
2a Fase de Adaptação à Doença
Esta segunda fase, em geral, dura por um longo período - na maior parte da extensão da doença. As limitações reais que esta impõe são, na maioria das vezes, discretas; o que dá apreensão é o risco permanente de agravações. Em geral, os sintomas têm longos intervalos estacionarios, com relativa estabilidade emocional; mas as pioras físicas rompem com pesadelo essa transitória estabilidade. Ocorrem variados distúrbios emocionais - que são leves nas doenças bem medicalizadas. Duas coisas são essenciais nesta fase:
a) Fazer o luto das perdas que o paciente teve (e que talvez continua tendo em menor grau). O que o paciente perde com a doença? Em primeiro lugar perde um tesouro de valor incalculável que é a saúde, que não sabia que o possuía. Em conseqüência, perde outros bens importantes: habilidades e capacidades pessoais, recursos financeiros, amigos, relacionamentos e inserção social. A "nova realidade" pode ser muito dura, e há que aprender a aceitá-la; é mais isto que significa adaptar-se à doença; e
b) Dar-se conta de que ainda há um período de vida e, afinal, o que vale a pena é a vida que de fato o paciente tem, e não a morte que virá não se sabe quando. Há um elenco variado de coisas a serem feitas, nas quais o paciente talvez nunca tinha pensado e que, pensando bem, substituem o projeto de então.
3a Fase de Resignação
Como a primeira fase, em geral é de curta duração, mas, diferentemente dela, não há medo-pavor da morte. Não há mais nenhum projeto e há aceitação de praticamente tudo. Fisicamente, o paciente dá-se conta do enfraquecimento invalidante e do sintonia rebelde à medicação. Sente que terminou a batalha e faz a paz com todos.
Subsídios para o entendimento dos distúrbios emocionais da AIDS em sentido próximo a alguma das três fases do PPDF foram dados por King (1990) e Atkinson et al. (1988), entre outros.
Do ponto de vista estritamente médico, supor que, no transcurso da infecção pelo HIV, os pacientes manifestassem uma flutuação psicológica similar ao PPDF é uma idéia muito plausível; o que vai além do PPDF não é médico, e sim "aidético" no sentido peculiar e novo adotado neste texto (não-dicionarizado).
PROPOSIÇÕES DA HIPÓTESE
H0 = Ao longo da infecção pelo HIV, a pessoa manifesta distúrbios emocionais e de comportamento em tipos e gravidade que têm um perfil similar ao perfil psicológico da doença fatal (PPDF).
H1 = Ao longo da infecção pelo HIV, a pessoa manifesta um excesso "aidético" de distúrbios emocionais e de comportamento; o "aidético" transtorna todo o PPDF: "queima" sua 2a fase, e funde a 1a com a 3a.
TESTE E EXAME DA HIPÓTESE
Para bem examinar a hipótese, é necessário acompanhar, do início ao fim da doença, dois grupos de pacientes comparáveis entre si: um de pessoas acometidas de câncer e o outro de pessoas infectadas pelo HIV. Escalas que avaliem distúrbios emocionais seriam administradas na inclusão e depois a cada seis meses.
Com menos rigor, examina-se a hipótese, comparando dois grupos de pessoas infectadas pelo HIV: um por transmissão sexual e o outro por transfusão sangüínea ou plasma em casos de acidentes ou politraumatizados. Uma alternativa simples mas questionável é, nas duas opções acima, não acompanhar os pacientes; estes são admitidos, e examina-se quantos semestres puder, mesmo que seja apenas uma vez. Postula-se que os pacientes estejam em alguma das três fases do PPDF.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 - ARCE, L. Somatopsychic Disease. Psychosomatics, 13: 191-196, 1971.
2 - ATKINSON, J. H. et al. Prevalence of Psychiatric Disorders Among Men Infected With Human Immunodeficiency Virus: A Controlled Study. Arch Gen Psychiatry, 45: 859-864, 1988.
3 - Feifel, H. et al. Death Fear in Dying Heart and Cancer Patients. J. Psychossom Res, 17: 161-166, 1973.
4 - KING, M. B. Psychological Aspects of HIV Infection and AIDS: What have we learned? Br. J. Psychiatry, 156: 151-156, 1990.
1 A essa superestrutura chamamos de mentalidade "aidética" projetada, porque, em extremo, assume-se aqui que é um imaginário sobre as pessoas infectadas pelo HIV; o "aidético" não vem dessas pessoas, nem constitui características delas.