RESENHA
Sheila Mendonça de Souza
Ensp/Fiocruz
Origens, Adaptações e Diversidade Biológica do Homem Nativo da Amazônia*. Walter Alves Neves (Organizador), Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 1991. ISBN 85-7098-027-2,192 pp., ils., CR$ 11.000,00
O campo da Antropologia Biológica, em especial a sua vertente para Ecologia Humana, desenvolveu-se lentamente no Brasil, permanecendo pouco expressivo, embora a pesquisa antropológica aqui tenha-se iniciado, como nos países cêntricos da Europa, ao final do século passado. Em que pesem as contribuições individuais relevantes, tem havido, como regra, defasagem metodológica e de paradigmas, agravada pela dispersão dos pesquisadores, dificuldades com a circulação da informação científica e carência de fomento à pesquisa. O quadro é agravado pela dificuldade em vencer barreiras institucionais e epistemológicas que dificultam a execução de pesquisas de enfoque interdisciplinar.
Tal estado da arte, verificado por tantos quanto atuam em áreas ligadas à Biologia Humana, tem motivado a procura de solução para melhoria do desempenho científico através da implantação de programas abrangentes, como o que vem sendo desenvolvido no Departamento de Ecologia do Museu Paraense Emílio Goeldi, com a contribuição eficiente do Doutor Walter Neves, daquele Departamento.
Tendo em vista a oportunidade e a necessidade de implementar-se programas de trabalho para investigação biológica das populações indígenas e brasileiras da Amazônia, programas esses reconhecidamente úteis à elucidação de processos evolutivos locais e da própria espécie humana, foi promovido, em maio de 1988, na cidade de Belém, o workshop "Origens, adaptações e diversidade biológica do homem nativo da Amazônia".
Esse simpósio, promovido pelo Programa de Biologia Humana do Museu Paraense Emílio Goeldi, ofereceu oportunidade de discutir e integrar conhecimentos produzidos nos últimos anos pela arqueologia, antropologia, etno-história, epidemiologia e outras áreas do conhecimento que convergem para a reconstituição dos processos formadores das populações indígenas amazônicas.
Trazendo à discussão uma série de posições críticas e polêmicas, esse encontro teve o grande mérito de dinamizar uma área de conhecimentos ameaçada pela estagnação, contribuindo para a reorientação de pesquisas e políticas para a área amazônica como um todo.
O resultado desse encontro, agora publicado na forma de livro, traz contribuições relevantes de 14 pesquisadores nacionais e internacionais, entre os quais Ana C. Roosevelt (Department of Anthropology/American Museum of Natural History), Carlos E. A. Coimbra Jr. (Departamento de Epidemiologia/Ensp-Fiocruz), Emílio Moran (Department of Anthropology/Indiana University), Francisco Salzano (Departamento de Genética/Instituto de Biociências/UFRGS), James Neel (Department of Human Genetics/University of Michigan Medical School) e Zulay Layrisse (Instituto Venezoelano de Investigaciones Científicas).
Prefaciado e apresentado pelo seu organizador, este livro constitui-se de oito artigos que discorrem sobre a diversidade genética e cultural das populações indígenas, sobre seus processos adaptativos, a dinâmica populacional e a ocupação da região amazônica desde tempos pré-históricos, a comprovada variabilidade de ambientes naturais e a questão da saúde dos grupos indígenas enquanto elemento essencial à compreensão da ecologia humana na região.
O artigo de Neel, "Estrutura Populacional de Ameríndios e Algumas Interpretações sobre Evolução Humana", discute o resultado de observações efetuadas sobre grupos tribais amazônicos. Estes, segundo o próprio autor, são o último conjunto ainda preservado de grupos humanos que mantém estrutura genética semelhante à de nossos ancestrais pré-históricos, dado seu relativo isolamento, sendo, portanto, importantes na investigação dos mecanismos evolutivos da espécie. Com base nas freqüências de alelos obtidas neste trabalho, é questionado o modelo baseado nos cálculos de "gargalo", que explicam a diferenciação de grupos africanos e não-africanos. A autor argumenta, com base em modelos matemáticos, a importância de considerarmos a multiplicidade tribal e a acentuada heterogeneidade genética como situações que deveriam existir nos grupos pré-históricos que originaram as populações atuais.
Salzano & Calegari-Jacques, em seu artigo "O índio da Amazônia, uma Abordagem Micro-Evolucionária", apresentam revisão das relações biológicas intergrupais para nove grupos Caribe e oito Tupi, com base na comparação de cálculos de distância genética baseados nos métodos de Edward & Ney. Comparando tais distâncias e analisando suas correlações com subgrupos lingüísticos e distâncias geográficas, os autores discutem a necessidade de tornar-se em conta diferentes variáveis sócio-culturais capazes de modular os mecanismos de deriva genética, efeito fundador e fluxo gênico, e a dificuldade de efetuar interpretações microevolutivas sem a associação de matrizes conjugadas de dados genéticos e culturais.
Dois trabalhos, de Black, Pandey & Santos, "Evidências Baseadas em HLA e IgG sobre as Relações Intra e Intercontinentais de Populações Naturais da Amazônia", e de Layrisse, Heinen & Rodrigues, "Aspectos Distintivos de Alelos de HLA Classe II, Associações Genéticas e Freqüência de Homozigozidose em Ameríndios", discutem a origem de grupos indígenas americanos a partir das freqüências observadas para alelos daqueles sistemas. Os primeiros autores encontram evidências sugestivas de filiação dos grupos sul-americanos aos grupos norte-americanos, e daqueles às populações asiáticas da Sibéria, confirmando o modelo de povoamento mais universalmente aceito. No segundo trabalho, é discutida a existência de forte ação seletiva para o sistema HLA, a ser mais profundamente investigada para nossos grupos indígenas.
A questão polêmica do povoamento pré-histórico da Amazônia é retomada enfaticamente por Roosevelt em seu artigo "Determinismo Ecológico na Interpretação do Desenvolvimento Social Indígena da Amazônia". Com base em suas próprias pesquisas arqueológicas (Marajó e foz do Tapajós), em dados ecológicos, geográficos e etno-históricos, e numa revisão crítica da produção científica anterior, posiciona-se enfaticamente contra o modelo determinista que prevaleceu por longo tempo, reduzindo a expressão cultural dos povos amazônicos e alimentando uma perspectiva reducionista de sua realidade. Propondo a retomada de dados empíricos abandonados por contradizerem o modelo, e a busca de maiores evidências a favor de sua hipótese, a autora pretende resgatar a Amazônia do que chama de vácuo cultural construído sobre bases mais ideológicas que empíricas.
O artigo de Beckerman, "A Amazônia estava repleta de gente em 1492?", discute a questão dos impactos sofridos pelos grupos tribais de modo seletivo, dadas diversas variáveis a serem consideradas, invalida o modelo verificado após o povoamento europeu como capaz de representar a realidade indígena pré-colombiana, e ensaia sobre dados ecológicos, arqueológicos e etno-históricos, considerando a subsistência, a demografia e algumas peculiaridades culturais relevantes á distribuição e concentração das populações amazônicas, com ênfase no papel das guerras, de cultivo da mandioca amarga, na formação dos grandes cadeados, e no desequilíbrio da razão macho-fêmea entre nossos grupos indígenas.
Moran, em seu "Estudo da Adaptação Humana em Ecossistemas Amazônicos", discute a complexidade dos sistemas ecológicos da Amazônia, reforçando a necessidade de superar o modelo simplista de oposição várzea-terras altas. Desdobrando a Amazônia em dois tipos de várzea e pelo menos seis tipos de ambientes de terra firme, o autor reforça a necessidade de melhor elucidar a adaptação do homem à região, conhecimento este essencial à reorientação de políticas desenvolvimentistas ou conservacionistas.
O último artigo, de Coimbra Jr., "Ecologia Humana e Epidemiologia na Amazônia: uma Abordagem Bioantropológica", discute a complexidade do processo de saúde-doença e o interesse em incluir-se a perspectiva epidemiológica nas discussões de Ecologia Humana. Lembrando as dificuldades que envolvem os estudos epidemiológicos em grupos indígenas, reforça a necessidade de que sejam ampliados os referidos estudos, de modo a abranger não apenas doenças infecto-contagiosas, mas todas as decorrentes de mudanças de hábitos e modos de vida, e, ainda, que sejam efetivados estudos longitudinais que permitam verificar empiricamente as hipóteses sobre os processos que afetam a saúde dos grupos humanos ao longo de seus percursos adaptativos. Entendendo que tais estudos não prescindem da abordagem interdisciplinar, o autor considera a produção desse conhecimento essencial à compreensão da realidade amazônica e formulação de planos de ação eficazes de âmbito preventivo e curativo.
No conjunto, os trabalhos apresentados no livro organizado por Neves têm o grande mérito de lançar questões e sugerir caminhos através dos quais pode-se buscar orientar programas de pesquisa em Biologia Humana de populações amazônicas, imenso laboratório a ser profundamente investigado, enquanto ainda é possível.
* Este livro pode ser comprado diretamente no Departamento de Informação e Documentação do Museu Paraense Emílio Goeldi. Inf.: Telefone (091) 228-2341; Fax (091) 229-1412.