RESENHA/REVIEW
Marcos de S. Queiroz
Núcleo de Políticas Públicas; Universidade Estadual de Campinas
O Desafio do Conhecimento Pesquisa Qualitativa em Saúde. Maria Cecília de Souza Minayo. São Paulo: Hucitec/Rio de Janeiro: Abrasco, 1992. 269 p., bibliografia. (Brochura) ISBN 85-271-0181-5 Cr$ 85.000,00
A autora desta obra realiza uma bem sucedida análise das diferentes abordagens teóricas e metodológicas dirigidas às Ciências Sociais e, dentro destas, em particular, à área de medicina e saúde. A sua preocupação maior refere-se às abordagens qualitativas e à possibilidade de conhecimento gerado a partir de pesquisa de campo. Trata-se de um tema de extrema importância que é proposto com muita oportunidade num momento em que se assiste, de um lado, a crise das grandes tradições teóricas do século passado e, de outro, em resposta a esta crise, a produção de um empirismo empobrecedor da realidade.
O livro é constituído de introdução, quatro capítulos e conclusão. Logo na introdução, a autora admite que o nível qualitativo encontrado nos dados sociológicos e antropológicos ocorre num patamar mais profundo da realidade social e que o fato deste nível não poder ser operacionalizado em números e variáveis não significa que não possa ser experimentado, pesquisado e conhecido. Tendo como referência esta questão, critica tanto o positivismo, que limita a realidade a fatos objetivos mensuráveis, como a Sociologia Compreensiva, que perde no particular a noção de totalidade social. Entre estas duas posturas, a dialética Marxista é assumida como capaz de conter os aspectos objetivos e subjetivos da realidade, abrangendo, assim, as verdades parciais daquelas teorias.
Em seguida, a autora focaliza o campo da saúde, enfatizando o ponto de que ele deve ser observado em relação com a realidade econômica, política e social mais ampla da qual faz parte. Para isso, é imprescindível considerar as classes sociais, as ideologias e visões de mundo dominante, além das especificidades do modo de produção influenciando tanto a organização dos sistemas de saúde como as estratégias que se estabelecem entre agrupamentos e classes sociais diante do fenômeno saúde e doença.
O primeiro capítulo, concentrando-se nas três grandes tradições teóricas das Ciências Sociais, o positivismo, a sociologia compreensiva e a dialética materialista, é uma introdução didática sobre a metodologia de pesquisa social. A crítica da autora do caráter conservador do positivismo que, em sua vertente mais tradicional, limita a realidade ao seu aspecto quantitativo, não a impede de destacar a sua contribuição ao conhecimento e à pesquisa, principalmente na análise matemática e estatística de grandes coletividades. É interessante a observação de que, embora seja na atualidade conservador ou mesmo reacionário, o positivismo nasceu revolucionário no século XVIII na medida em que se colocava em posição crítica em relação ao Estado oligárquico e ao poder feudal. Esta observação mostra sobretudo que o sentido do conhecimento depende do contexto em que se manifesta. A caracterização do modelo funcional-estruturalista da autora é de um certo modo simplificado ao não considerar a sua vertente mais moderna que foi muito além do esquema clássico representado por Parsons, Malinowski e Radcliffe-Brown. Autores como Evans Pritchard, Mary Douglas, Max Gluckman, Victor Turner, Edmond Leach e muitos outros representantes da antropologia inglesa, por exemplo, incluem enfaticamente conceitos como conflito, movimento social, manipulação da realidade por atores sociais e resistência cultural e política em sua perspectiva analítica. Seria difícil considerá-los conservadores, embora a sua perspectiva tivesse pouco a ver com a dialética marxista.
Quanto à Sociologia Compreensiva, a autora percorre esta tradição a partir de Dilthey, passando por Weber, e representantes da Fenomenologia, Etnometodologia e Interacionalismo simbólico. A maior virtude desta perspectiva, muito bem focalizada pela autora, é encorajar a pesquisa de campo em profundidade, tendo para isso aprimorado várias técnicas de pesquisa na tentativa de detectar o aspecto simbólico da realidade social, dimensão esta que passava desapercebida pelo enfoque positivista. A crítica a ela dirigida refere-se à sua desconsideração à história e à estrutura social mais ampla. A extrema valorização do individualismo, da força das idéias, da ética e das iniciativas individuais produziram o pensamento radical de protesto contra o Estado e as instituições coercitivas em geral. Tal atitude, segundo a autora, produz a ilusão de que este tipo de comportamento seja suficiente para transformar a sociedade e fazer história.
A dialética marxista é percebida sobretudo como uma ontologia do homem e, apenas em segundo plano, como um corpo epistemológico de métodos e técnicas de pesquisa que permitem produzir conhecimento específico. O seu objetivo primordial é recuperar a totalidade no interior da qual se estabelecem as relações entre os diferentes estágios do desenvolvimento histórico, entre o todo e a parte e entre as diferentes partes do todo. A sua vertente estruturalista é criticada por se concentrar em questões epistemológicas, perdendo de vista o ser humano, a praxis e a história.
A autora pretende promover um Marxismo vivo, aberto e que não hesita em emprestar métodos e técnicas provenientes de outras correntes teóricas desde que não contradiga a sua dialética mais ampla. Um aspecto positivo desta perspectiva refere-se à valorização da dimensão cultural, dimensão esta que, sob o ponto de vista Marxista, é freqüentemente relegada a um plano secundário contido na superestrutura social. A conseqüência mais importante desta postura é a valorização do nível das representações sociais.
O segundo capítulo concentra-se nos conceitos fundamentais de operacionalização da pesquisa. Inicia-se com a imagem de que a apreensão da realidade pela ciência se faz por Aproximações a partir da convergência de vários pontos de vista. Neste processo, por mais sofisticado que seja o conhecimento produzido, a realidade sempre se mantém como mais rica e verdadeira. A autora define alguns termos presentes em todo o desenvolvimento de trabalho científico tais como teoria, conceito, categoria, hipótese e pressuposto. Defende a postura Marxista de que toda a teoria é historicamente construída expressando interesses de classe.
O terceiro capítulo concentra-se na fase de trabalho de campo da pesquisa qualitativa. As técnicas de observação são amplamente analisadas, em particular, os tipos de entrevista (estruturado, aberto, história de vida, discussão em grupo), os problemas da interação do pesquisador com os atores sociais no campo, a questão da escolha dos entrevistados e o método da observação participante. Embora a abordagem seja bastante abrangente, o tema seria enriquecido se pudesse incluir as técnicas de investigação mais modernas da antropologia inglesa, principalmente o drama social de Victor Turner. O marxismo não é referido nesta parte devido à sua pouca reflexão sobre o tema. No entanto, a discussão sobre a razão da sua incapacidade de apreender a realidade cotidiana ou realizar pesquisa de campo é comentada com o intuito de encontrar saídas que permitam reavivar esta teoria. Para a autora, isto só poderá ser feito ao torná-la heurística com sólida base empírica. O conceito de representação social mereceu uma atenção especial neste capítulo. A análise das tradições provenientes de Durkheim, Weber e Marx é realizada com desenvoltura, havendo espaço para a área da saúde onde a autora contribui com exemplos práticos de enfoque.
O capítulo 4 focaliza a fase de análise ou tratamento do material de pesquisa. Sua preocupação central é restabelecer uma conexão entre as ciências sociais, a filosofia e a lingúística com a finalidade de disciplinar a análise de textos e entrevistas de pesquisa. A autora concentra-se em três tipos de métodos analíticos, a "Análise de Conteúdo" (influenciada pelo positivismo), a "Análise de Discurso" (influenciada pelo materialismo histórico, teoria do discurso e lingúística) e a "Hermenêutico-dialética" (influenciada pela filosofia e ciências sociais). Este último, a partir da proposta de Habermas, permite entender o texto, a fala e o depoimento, como resultado simultâneo de um processo social e de conhecimento e por isso recebe atenção especial. O capítulo finaliza com algumas observações sobre a questão da validade e da verificação em que o néo-positivismo (através de autores como Bachelard e Popper) e o método dialético (através de Goldmann e Kosic) são analisados, sendo que, mais uma vez, a superioridade do método dialético é defendida.
Finalmente, na conclusão, a autora reafirma os principais pontos defendidos ao longo da obra, em particular, o caráter histórico, inconcluso e superável do fenômeno social. Quanto à metodologia científica, é reiterado que a perspectiva dialética não se faz em oposição às posturas funcionalistas e fenomenológicas. Ela deve apropriar-se da sua experiência e ultrapassar suas premissas e pressupostos.
O conjunto da obra revela um trabalho importante e pioneiro nas ciências sociais brasileiras. Embora a obra seja completa e auto-suficiente sob o ponto de vista metodológico, o leitor talvez esperasse uma abordagem mais aprofundada da dimensão política e prática da dialética que, no marxismo, se define pela luta de classes impulsionando o desenrolar da história. A questão está em como reconhecer e apontar soluções para as dificuldades que esta postura encontra em interpretar, para não dizer, mudar o mundo. Não se pode deixar de reconhecer que a vitalidade do capitalismo moderno e os fatos que culminaram com a decadência e queda do chamado socialismo real impuseram ao pensamento de Marx um desafio pelo menos tão grande como aqueles lançados pelo Marxismo contra o positivismo e a sociedade compreensiva.