ARTIGO ARTICLE

 

Violência velada e revelada: estudo epidemiológico da mortalidade por causas externas em Duque de Caxias, Rio de Janeiro

 

Concealed and revealed violence: an epidemiological study of mortality from external causes in Duque de Caxias, Rio de Janeiro

 

 

Edinilsa R. de Souza

Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 8º andar, 21041-210, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho é parte de um estudo em que se aborda, interdisciplinarmente, o processo de violência/saúde no município de Duque de Caxias, processo este entendido como uma cadeia onde se expressam as violências estrutural, da resistência e da delinqüência, cujos reflexos se fazem presentes na mortalidade do município. Constitui-se em uma análise de dados de registro relativos à mortalidade por causas externas para o período de 1979 a 1987, e em uma análise crítica das informações coletadas das declarações de óbito para o ano de 1987. Apresenta-se a mortalidade por causas externas da área investigada, sua magnitude e importância em relação às principais causas de morte no município, em números absolutos, proporções, coeficientes brutos e padronizados, taxas e anos de vida potencialmente perdidos, estratificados por grupos de causas externas específicas, sexo e idade. Na análise, constrói-se um perfil sócio-econômico-demográfico destas vítimas. Discute-se os resultados à luz do conhecimento sociológico e histórico da dinâmica social de Duque de Caxias. Conclui-se sugerindo algumas medidas que consideram-se de extrema necessidade para o apoio às vítimas da violência.

Palavras-chave: Violência; Mortalidade; Interdisciplinariedade; Epidemiologia


ABSTRACT

This paper is part of an interdisciplinary study dealing with violence and the health process in the city of Duque de Caxias, State of Rio de Janeiro. This process expresses structural violence in addition to that related to resistance and deliquency, the outcomes of which are present in the area's overall mortality. This is an analysis of recorded data on mortality form external causes in the period 1979-1987, as well as a critical analysis of information gathered from death certificates for the year 1987. Mortality from external causes in the area studied is shown according to its magnitude and importance in relation to the major causes of death in the city, using absolute numbers, ratios, crude and standardized coefficients, rates, and years of life potentially lost, which are classified by groups of specific external causes, sex, and age. The analysis gives a socio-economic and demographic profile of the victims. The findings are discussed in the light of the sociological and historical knowledge on the social dynamics of Duque de Caxias. As a conclusion, this paper suggests a few actions that are badly needed for providing support to the victims of violence.

Keywords: Violence; Mortality; Interdisciplinarity; Epidemiology


 

 

A reflexão acerca de uma violência tem, em geral, incorrido em sérios equívocos, seja pela substantivação ou pela abstração, pois ambas situam este fenômeno como uma entidade "ahistórica" e "atemporal", ora exterior às condições social e humana, ora como elemento constitutivo e indispensável de ambas. Tais equívocos têm levado ao estabelecimento de nexos causais lineares que tanto reduzem o objeto, dando-lhe feições meramente individualizadas, patologizadas e subjetivas, quanto o ampliam e o caracterizam como fenômeno macrossocial, perdendo de vista os seus componentes específicos.

Historicamente, a violência foi mais comumente identificada como sinônimo de criminalidade e, por isso, quase que objeto de reflexão exclusiva das ciências jurídicas. Só mais recentemente é que ela passou a ser incorporada de forma mais sitemática por outras áreas do conhecimento. Seus contornos, enquanto objeto de investigação científica, passam, então, por sucessivos redelineamentos e vão, aos poucos, construindo uma visão mais ampla e multifacetada do objeto. Se, por um lado, algumas áreas do conhecimento vêm tentanto desvendar determinados aspectos da violência encobertos nas práticas sociais (demonstrando uma maior consciência do problema, também em virtude dos seus crescentes índices), por outro, persistem as reflexões que a vinculam unicamente à delinqüência. Isto expressa não só diferentes níveis de desenvolvimento do conhecimento, mas também posições ideológicas na aproximação do objeto que se refletem nas abordagens teóricas e metodológicas de distintas correntes do pensamento.

 

ENFOQUES TEÓRICO-EXPLICATIVOS DA VIOLÊNCIA

As teorias explicativas da violência que embasam a produção científica foram resumidas por Stark (1990), Blau & Blau (1982) e Minayo (1990). Esta última identifica as principais correntes do pensamento e os pressupostos teóricos que as norteiam, critica seus limites, e aponta as possibilidades de avanço em direção à maior aproximação da realidade do objeto. Seguem abaixo, de forma sintética, as principais teorias descritas pela autora que tentam explicar a violência.

a) As teorias biologicista e psicologicista. Os adeptos da primeira defendem as idéias de que o homem tem uma agressividade instintiva própria de sua natureza, semelhante aos instintos de fome e sexual. Na segunda, defende-se a tese de que qualquer modificação nas relações sociais só é possível após uma mudança no psiquismo do homem.

As críticas tecidas a estas teorias são as de que nelas há a ausência da incidência dos fatores sociais na formação dos modelos inatos, internos e adquiridos da conduta humana; elas reduzem os fenômenos e processos sociais à conduta individual e tratam problemas sócio-políticos complexos como sendo problemas psicológicos.

b) Um segundo grupo de teorias explicativas da violência são aquelas que tratam os efeitos disruptivos dos rápidos processos de mudança social provocados pela industrialização e pela urbanização aceleradas como determinantes da violência. O surgimento de subculturas à margem das leis e normas sociais (as denominadas "classes perigosas"), cujas aspirações criadas estão dissociadas das realizações, seriam o foco gerador e explicativo da criminalidade nas grandes cidades (Paixão, 1982; Oliven, 1982).

Segundo as críticas de Minayo, esta corrente de pensamento tem, tanto quanto a primeira, uma visão nostálgica de retorno ao passado e de autoritarismo que imputa ao urbano, à favela e à periferia a responsabilidade pela violência. Ela baseia-se na lógica estrutural funcionalista, que supõe normas e valores eternos em uma sociedade estável, na qual as mudanças exercem uma força atrativa nos atores sociais para as condutas criminosas e violentas. Ainda, de acordo com a autora, esta concepção de "violência da transição" ignora a violência estrutural, a do estado e a cultural, colocando como "criminosa potencial" a população imigrante-pobre das classes trabalhadoras (aspas da autora).

c) A corrente do pensamento que enfatiza o desenvolvimento dos processos e condutas violentas como estratégias de sobrevivência das camadas populares, vítimas das contradições do capitalismo, constitui a terceira forma de explicação da violência.

Aqui, a violência é vista ora como a revolta dos despossuídos, ora como o nível elementar da luta de classes, onde as razões econômicas são privilegiadas como explicativas da violência.

Para Minayo, trata-se de uma visão exterior da violência como repositora da justiça, deixando de fora os aspectos sócio-culturais que têm raiz no nosso interior e que atingem a todos nas suas especificidades e reduzindo a violência a problemas de natureza econômica, que por si só, não a explicam, embora sejam eles os elementos fundamentais da violência maior que se oculta no modo organizativo-institucional-cultural de nossa sociedade.

d) O último grupo de teorias explica a violência reduzindo-a à delinqüência e à conduta patológica dos indivíduos pela falta de autoridade do estado, através do poder repressivo dos aparatos jurídicos e policiais. Coloca o estado como árbitro neutro e fora da questão de classes, que funciona visando o bem-estar social em geral e cujo papel autoritário no desenvolvimento sócio-econômico é absolutizado.

As críticas a esta linha de pensamento mostram a sua tendência a omitir o papel da violência como instrumento de dominação econômica e política das classes dominantes.

Os princípios que norteiam este estudo partem dos pressupostos de que a violência é uma expressão essencialmente humana que possui um caráter histórico o qual lhe outorga a condição de ser universal e específica nas variadas formas de organização social, uma vez que sempre esteve presente nas diferentes sociedades, com a sua concretização em eventos específicos estando inerentetemente ligada ao modo como os homens se organizam em sociedade. Ela possui características quantitativas e qualitativas, internas e externas. Tem na sua essência os princípios da força e da contradição, o que, para Franco (1989), caracteriza uma relação assimétrica. Há, portanto, um caráter dialético na violência que traz, em si, as contradições do negativo e do positivo, do destruidor e do criador, do coletivo e do individual, do abstrato e do concreto, do objetivo e do subjetivo, do macro e do microssocial, contradições estas que se realizam através das relações humanas. A violência, portanto, vista a partir destes pressupostos, não pode deixar de ser abordada cientificamente senão na totalidade do social em constante movimento, nem deixar de ser entendida como um processo social que se realiza em cadeia e especificamente. Compreendê-la na sua totalidade significa desvendar a estrutura sócio-histórica e cultural da sociedade na qual ela se realiza. Significa, ao mesmo tempo, entender a unidade dialética na qual ela é sintetizada, que são os homens, atores sociais que a protagonizam, situando-se, simultaneamente, como agentes e vítimas, sujeitos e objetos.

Esta tese da violência como uma rede é defendida por Domenach (1981), Boulding (1981) e por Minayo (1989). É também aquela que será adotada neste estudo, por se acreditar que ela possibilita, teoricamente, maiores visibilidade e aproximação do objeto. Entendê-la assim é admitir a amplitude e a complexidade de um processo cuja causalidade é múltipla e não-linear, processo este que possui natureza e características específicas e gerais, microssociais e macrossociais, que se diferenciam e se articulam. É, pois, com a possibilidade de trabalho num quadro mais amplo de articulações teórico-metodológicas que se impõe para o estudo da violência a metodologia interdisciplinar. Nela, as disciplinas contribuem para a compreensão da rede, ao mesmo tempo que integram, além dos seus próprios saberes, a prática sistematizada dos grupos e movimentos sociais. Juntos, todos buscam, na sociedade, as raízes e razões da mudança.

Neste ponto, cabe, então, explicitar os tipos de violência que se pretende abordar neste trabalho. A classificação aqui adotada é a mesma sugerida por Minayo, que a descreve mais ou menos da seguinte maneira (Minayo, 1990):

    a) Violência estrutural: expressa na dominação de classe, de gênero, de grupos, do Estado e de nações. Considerada natural, permanece silenciosa e difusa na sociedade. É usada como instrumento de poder transformado em direito (legitimidade). Presente nas instituições, estabelece os limites culturalmente aceitos da violência aberta (sobretudo a física) numa sociedade;

    b) Violência da resistência: expressa na luta dos trabalhadores contra as várias formas de opressão a que são submetidos, pelo direito à cidadania, contra o domínio dos adultos às crianças e mulheres, pela igualdade de direito entre os gêneros, etc;

    c)Violência da delinqüência: compreende as diversas formas de delito (roubo, furto, assassinatos, brigas entre quadrilhas, etc.). É a forma mais conhecida e reconhecida como violência. Contudo, não deve ser entendida como "natural", "defeito" ou "disfunção" dos pobres, pois envolve membros de todas as classes sociais e de muitos grupos.

Esta investigação, portanto, visa aprofundar a compreensão do objeto violência/saúde a partir dos seguintes marcos delimitadores:

A) MORTALIDADE POR CAUSAS EXTERNAS — Indicador da articulação do processo violência/ saúde, aqui considerado num período de nove anos — 1979 a 1987 —, cuja incidência identifica grupos particularmente vulneráveis e fatores de risco específicos;

B) MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS — Área urbana e periférica onde se concretizam as articulações das violências estrutural, da resistência e da delinqüência na rede de relações sócio-históricas e culturais. Nele se produz e se expressa a articulação do processo violência/saúde, particularmente refletida na mortalidade por causas externas;

C) INTERDISCIPLINARIDADE — Articulação dos marcos teóricos e metodológicos das Ciências Sociais e da Epidemiologia. O estudo emprega uma abordagem epidemiológica descritiva da mortalidade por causas externas, tomando Duque de Caxias como um caso a ser estudado pela lógica da História e da Sociologia.

 

METODOLOGIA DE TRABALHO

Desenho do Estudo

Estudo de dados secundários no qual foi efetuada uma análise de dados de registro da mortalidade por causas externas, no período de 1979 a 1987, para o município de Duque de Caxias. Realizou-se também uma análise crítica dos dados referentes à mortalidade por violências na área estudada, para o ano de 1987, a partir das declarações de óbito (DOs). Finalmente, tenta-se integrar esses dados à realidade sócio-histórica de Duque de Caxias.

Fonte dos Dados

A série histórica analisada constituiu-se de dados oficiais oriundos da Secretaria de Estado de Saúde (SES) do Rio de Janeiro, de 1979 a 1987. Para a análise crítica dos dados, realizou-se uma coleta de dados de mortalidade por causas externas para o ano de 1987 em Duque de Caxias, a partir das declarações de óbito da SES.

Coleta dos Dados

Para a série histórica, foram utilizadas as listagens fornecidas pela SES, que consistiam de tabulações de mortalidade em residentes, discriminadas por sexo e faixa etária. Para esta pesquisa, foram coletadas informações sobre a mortalidade por causas externas para os municípios da Baixada Fluminense (Duque de Caxias, Nilópolis, Nova Iguaçu e São João de Meriti), para todo o período estudado. Para o município e para o estado do Rio de Janeiro, também foram utilizadas estas listagens para os anos de 1985, 1986 e 1987. Nestes dois últimos locais, os dados referentes aos demais anos investigados foram extraídos das Estatísticas de Mortalidade do Ministério da Saúde, pois a SES não dispunha dos mesmos. Os óbitos para o Brasil foram integralmente extraídos das Estatísticas de Mortalidade.

Escolheu-se o ano de 1987 para a análise crítica da mortalidade por causas externas por ser este o ano mais recente para o qual existiam dados oficiais, revisados e corrigidos. Com este objetivo, levantou-se a mortalidade ocorrida neste ano a partir das declarações de óbito encontradas na SES, de onde foram coletados os óbitos ocorridos e registrados em Duque de Caxias. Foram transcritas para um protocolo de pesquisa as variáveis do atestado de óbito anteriormente selecionadas a partir do seu interesse para o estudo. Foram revisadas cerca de 22.000 declarações de óbito.

Análise dos Dados

Foram criados dois bancos de dados para as informações obtidas. Estavam contidos no primeiro:

  • O arquivo anual dos óbitos, segundo variáveis de sexo, faixa etária e causas específicas de morte por acidentes e violências, com dados relativos aos nove anos investigados para cada município da Baixada Fluminense, para o município do Rio de Janeiro, para o estado do Rio de Janeiro e para o Brasil;

  • As populações por sexo e faixa etária de cada um destes anos e locais. As populações dos municípios foram estimadas anualmente a partir da população urbana do estado do Rio de Janeiro, cujas proporções, em cada sexo e faixa de idade, foram aplicadas às populações totais anuais de cada município, obtendo-se, assim, as populações por sexo e faixa etária para os mesmos. Este procedimento foi utilizado para todo o período investigado, exceto para o estado do Rio de Janeiro no ano de 1980, para o qual foram utilizou-se as populações do IX Recenseamento Geral.

A partir deste banco de dados, foram calculadas as taxas brutas anuais gerais e específicas atribuídas às causas externas, segundo sexo e faixa etária, e as tendências desta mortalidade. Calculou-se também a mortalidade proporcional e os coeficientes de mortalidade das principais causas de óbito em Duque de Caxias, a razão de sexo por faixa etária para as mortes violentas em geral e por causas específicas, bem como os anos e as taxas de anos potenciais de vida perdidos (APVPs) para as causas externas em geral e por grupos de causas externas específicas. Para a comparação da mortalidade entre as áreas incluídas no estudo, as taxas foram padronizadas pelo método direto, utilizando-se a população do Brasil no ano de 1980 como padrão.

O segundo banco de dados continha as variáveis das DOs para o ano de 1987. Com base nestas variáveis sócio-econômicas e demográficas, construiu-se um perfil sócio-econômico-demográfico destas vítimas.

 

RESULTADOS

O Que Revelam os Dados Oficiais

O gráfico da Figura 1 apresenta os coeficientes de mortalidade para as cinco principais causas de óbito em Duque de Caxias. Juntas, estas causas somam, em média, cerca de 80% de todas as mortes no período. Nele observa-se que as doenças do aparelho circulatório são a principal causa em todos os anos, seguidas pelas doenças do aparelho respiratório, que, juntamente com as causas externas, disputam o segundo lugar no obituário geral do município, com coeficientes em torno de 100 por 100.000 habitantes. Destaca-se que estes coeficientes para as causas externas são maiores que os das regiões metropolitanas do país, os quais situam-se em cerca de 70 óbitos em 100.000 habitantes (Dados, 1990).

 

 

Chama atenção a expressiva queda das mortes por doenças infecciosas e parasitárias (DIPs), que passam de 123.68 para 49.64 por 100.000 habitantes, deslocando-se do segundo para o quinto lugar na mortalidade geral do município. Os neoplasmas constituem a quinta e a quarta causas de morte, no início e fim da série, respectivamente.

Ao se ajustar estas curvas por regressão linear simples, observou-se uma tendência decrescente para as DIPs (p < 0,005), neoplasmas (p < 0,025) e doenças do aparelho respiratório (p < 0,025). Já para as doenças do aparelho circulatório e causas externas, estas tendências não foram estatisticamente significativas, apesar de apresentarem coeficientes levemente maiores nos anos finais do período.

O gráfico da Figura 2 mostra a importância das cinco principais causas de morte através da mortalidade proporcional. Nele ressalta-se o crescimento das doenças do aparelho circulatório, cujas proporções (excluídas as maldefinidas) aumentaram de 28,77%, em 1979, para 32,81%, em 1983, e para 36,21%, em 1987. Contrariamente, as DIPs passaram, nestes anos, de 14,28% para 10,04% e 6,96%, respectivamente. Proporcionalmente, as causas externas passam do quarto para o segundo lugar no obituário geral, contribuindo com 13,59%, 13,93% e 16,29% das mortes no município nos três respectivos anos.

 

 

Os dados apresentados nas duas figuras anteriores mostram que, em apenas nove anos, houve uma mudança drástica no perfil de mortalidade de Duque de Caxias e que as mortes violentas passaram a ter maior importância no quadro geral de mortalidade, não só, e nem tanto, pelo seu crescimento absoluto, mas também, e principalmente, pela diminuição das DIPs e das doenças do aparelho respiratório. Isto coloca a violência como uma crucial questão de vida e de saúde no cotidiano da área, cujo reflexo está se expressando no modo de morrer desta população.

A importância dos índices que refletem a violência tem sido destacada na literatura mundial, embora possam ser localizadas áreas urbanas focais de maior incidência, como mostram alguns estudos (Tiret et al., 1989; Mc Glashan, 1982; Bangdiwala & Anzola-Pérez, 1987; Lippi et al., 1990; Homicide, 1990). Duque de Caxias é, inegavelmente, uma destas áreas, pois é parte da Baixada Fluminense e, portanto, reconhecida pela Unesco como um dos locais de maior violência no mundo. A distribuição desta violência no município, expressa na mortalidade, é heterogênea entre os sexos e grupos etários, como se observa a seguir.

Os gráficos das Figuras 3 e 4 mostram a distribuição proporcional das três principais causas de morte em Duque de Caxias no ano de 1987, segundo sexo e grupo etário.

A importância das causas externas, especialmente no sexo masculino, pode ser vista sobretudo na faixa etária de 15 a 39 anos, cuja proporção é de 71,06% dos óbitos, sendo, de longe, a primeira causa de morte nesta faixa de idade, seguida das doenças dos aparelhos circulatório e digestivo. No sexo feminino, as causas externas aparecem como a segunda causa de morte (21,20%) neste mesmo grupo etário, juntamente com as doenças dos aparelhos circulatório e respiratório. Este dado se reveste de maior relevância quando se percebe que ambos os sexos têm o mesmo padrão no grupo de 0 a 14 anos.

Apesar da mortalidade por causas externas não apresentar uma curva com tendência significativa (conforme visto na Figura 1), quando estratificada por sexo e idade, identificam-se algumas especificidades nesses óbitos ao longo do período.

O gráfico da Figura 5 mostra os coeficientes de mortalidade por causas externas, segundo grupo etário, no sexo masculino. Observa-se um claro padrão nos coeficientes, que são bem mais elevados nas duas faixas de idade mais velhas em relação ao grupo mais jovem. No grupo de 15 a 39 anos e no de 40 ou mais anos, os coeficientes chegam a ser, respectivamente, cerca de 8 e 5 vezes maiores que no grupo de 0 a 14 anos. Enquanto o grupo de 15 a 39 anos tem coeficientes em torno de 300 (por 100.000 homens) e o de 40 ou mais anos os tem em torno de 200, o grupo de 0 a 14 anos situa-se entre 40 e 50 óbitos em cada 100.000 habitantes do sexo masculino. Vale ressaltar que apenas no grupo de 15 a 39 anos existe uma tendência significativamente crescente (p < 0,01) e que a maioria destes óbitos ocorre principalmente na faixa de 20 a 29 anos.

 

 

No sexo feminino, não se percebe um padrão tão nítido quanto no masculino e os coeficientes são bem mais baixos que os encontrados nos homens. Entretanto, também são maiores os coeficientes dos dois grupos mais velhos em relação ao mais jovem (dado não mostrado).

A sobremortalidade masculina decorrente das causas externas é crescente no período e quase que total (excetuando-se raras faixas de idade em alguns anos), chegando a exceder em 20 vezes a mortalidade feminina por estas causas.

Essa distribuição diferenciada da mortalidade por causas externas entre os grupos de sexo e idade sugere uma distinta exposição à violência entre homens e mulheres em também distintos períodos de vida. Além disso, ela faz supor que as formas de violência que incidem nestes grupos são variadas. Para a identificação das formas específicas de violência que contribuem para este quadro de mortalidade em Duque de Caxias, construiu-se a Tabela 1. Nela podem ser vistos os coeficientes por grupos de causas externas específicas ao longo do período estudado.

 

 

Destacam-se, nesta tabela cinco grupos de causas: acidentes de transporte, acidentes de trânsito, homicídios, outros acidentes e outras violências. Os demais grupos de causas são pouco expressivos no conjunto das externas, como mostram seus coeficientes, mais baixos que os das cinco causas destacadas acima.

Os outros acidentes e outras violências representam, na verdade, óbitos para os quais não se conseguiu esclarecer a natureza do evento que ocasionou a lesão que provocou a morte, ou seja, a causa básica do óbito. Trata-se, portanto, de óbitos não esclarecidos dentro das causas externas.

Dentre os grupos de causas adequadamente classificadas no conjunto das externas, percebe-se que os acidentes de trânsito e os homicídios são os agrupamentos mais importantes. Por isso, ambos serão destacados nas análises efetuadas neste estudo.

É importante observar aqui que a presença dos elevados coeficientes por outros acidentes e outras violências nestes dados oficiais demonstra problemas de classificação da causa básica do óbito em relação às causas externas. Estudos como os de Puffer & Griffith, (1988) e Moriyama (1989) mostram como a fidedignidade das estatísticas oficiais de mortalidade é ainda variável e precária, embora sejam elas a base sobre a qual são traçados os programas e ações de saúde. No trabalho de Mello Jorge (1990), os percentuais de causas externas do tipo ignorado variam, alcançando até 50% em determinadas capitais brasileiras. O estado do Rio de Janeiro apresenta, no ano de 1985, o percentual de 44,7% de causas externas malclassificadas. Em Duque de Caxias, considerando-se os grupos "outros acidentes" (12,7%) e "outras violências" (28,4%), obtém-se 41,1% de causas mal-classificadas em relação ao grupo das externas.

As causas externas têm sido apontadas como as principais responsáveis pelo excesso de mortes precoces. Rockett & Smith (1989) e Runyan & Gerken (1989) encontraram que a violência é a principal causa, sendo responsável por 40% de todos os anos potenciais de vida perdidos (APVPs) antes dos 65 anos nos Estados Unidos, com proporções de 57% nos jovens de 10 a 14 anos e de 79% para todas as mortes naqueles entre 15 e 19 anos. Em Duque de Caxias, os APVPs (antes dos 65 anos), calculados de acordo com o método sugerido por Romeder & Mc Whinnie (1988), mostram que, para o conjunto das causas externas, ocorre um crescimento em 1987, somando 27.205 anos de vida potencialmente perdidos devido à violência, com uma taxa de cerca de 42 anos de vida potencialmente perdidos em cada 1000 habitantes.

As taxas por acidentes de trânsito decrescem no período, passando de 5,6 para 4,5 entre o início e o final dos anos investigados, enquanto aumentam as relativas aos homicídios, que passam de 12,5 para 14,2. Estas últimas são, respectivamente, 2,23, 2,47 e 3,16 vezes maiores que as relativas aos acidentes de trânsito no anos de 1979, 1983 e 1987. Este dado demonstra que os homicídios, além de serem mais freqüentes que os acidentes de trânsito, estão incidindo numa população mais jovem. Em 83,3% dos óbitos por homicídio, foram usadas armas de fogo, sendo a cabeça o local do ferimento em 46,9% (dados não mostrados).

Enquanto nos Estados Unidos o principal grupo em APVPs é a colisão de veículos a motor, na França e Japão são os suicídios e em Duque de Caxias são os homicídios. Aí, mesmo os seus acidentes de trânsito possuem outra característica, matando mais os pedestres. Os atropelamentos são responsáveis por 79,6% dos óbitos.

Estes dados já demonstram um alarmante índice de violência aberta, aqui traduzida nos seus coeficientes, APVPs e taxas de APVPs por homicídios e particularmente refletida em jovens do sexo masculino. Também se constata uma violência que ocorre no trânsito da área, freqüentemente diluída e incorporada pela sociedade sob a conotação de acidente, sem que se questionem os motivos de tantos atropelamentos.

Neste estudo, destacam-se os elevados coeficientes por homicídios, no sexo masculino, sobretudo no grupo etário de 15 a 39 anos, onde se encontrou mais de 100 óbitos em 100.000 homens, chegando a 185.29 óbitos no ano de 1985. As maiores diferenças encontradas no período entre o grupo de 15 a 39 anos e os demais estiveram no ano de 1986, onde o coeficiente deste é 11,29 vezes maior que o daqueles com 40 ou mais anos, e no ano de 1981, em que é 113,37 vezes maior no grupo de 15 a 39 anos que no de 0 a 14 anos. No sexo feminino, os maiores coeficientes também correspondem à faixa dos 15 a 39 anos, os quais não ultrapassam 10 óbitos em 100.000 mulheres, sendo, portanto, bem inferiores aos do sexo masculino (dados não mostrados).

Nenhuma destas curvas, quando ajustadas por regressão linear simples, mostrou tendência estatisticamente significativa.

Os coeficientes de mortalidade por acidentes de trânsito no sexo masculino, segundo faixas etárias, foram mais elevados no ano de 1979, especialmente nas idades de 15 a 39 anos e na de 40 ou mais anos (41,74 e 58,98 por 100.000 habitantes do sexo masculino, respectivamente).

Após este ano, ocorre um decréscimo dos coeficientes para valores em torno de 20 e 30 óbitos nos dois grupos etários. Os coeficientes no grupo de 0 a 14 anos são os menores. Entre as mulheres, apenas nos anos de 1979, 1980 e 1985 os coeficientes ultrapassaram 10 óbitos em 100.000, no grupo de 40 ou mais anos (dados não mostrados).

Apesar deste decremento nos coeficientes em relação a este grupo de causa específica, suas curvas, quando ajustadas por uma regressão linear simples, não se mostraram estatisticamente significativas em nenhum dos grupos de sexo ou idade.

Destes dados, depreende-se a existência de um padrão de mortalidade em Duque de Caxias que vitimiza mais freqüentemente, tanto por homicídios quanto por acidentes de trânsito, o sexo masculino na faixa etária de 15 a 39 anos. Estes dois grupos de causas externas específicas parecem estabelecer o padrão das mortes violentas no seu conjunto. Diferentemente da mortalidade ocorrida em outras áreas onde o principal componente são os acidentes de trânsito, as mortes violentas produzidas em Duque de Caxias são prioritariamente provocadas pelos homicídios. Ainda é preciso ressaltar que este grupo de óbitos é extremamente maior que o de acidentes de trânsito, sendo que os maiores coeficientes ocorrem no sexo masculino.

Os coeficientes padronizados de mortalidade por causas externas mostram que, no período, o município de Duque de Caxias é o que possui os maiores coeficientes da Baixada Fluminense. Em 1987, tem 108.96 óbitos por 100.000 habitantes. Também apresenta maiores coeficientes que a Capital (86,07) e que o estado do Rio de Janeiro (95,70) neste mesmo ano. Para o país, nos anos de 1979 e 1983, os coeficientes de Duque de Caxias são, respectivamente, 1,92 e 1,57 vezes maiores. Se o risco de morrer por quaisquer causas externas é maior em Duque de Caxias que em outras áreas do país, observa-se que maior ainda é o risco específico de ser assassinado no município investigado. A mortalidade por homicídios aí chega a ser 3,77 vezes maior que a da Capital, no ano de 1983, e 2,96 vezes maior que a do Brasil, em 1979. Relação inversa ocorre com os acidentes de trânsito, para os quais os coeficientes mais elevados são encontrados na Capital e no estado do Rio de Janeiro. Entretanto, no ano de 1979, Duque de Caxias consegue superar em 1,23 vezes as mortes por acidentes de trânsito no país (dados não mostrados).

A análise, até aqui efetuada a partir da informação oficial, consegue revelar parte da violência que ocorre em Duque de Caxias. Entretanto, a análise crítica dos dados é necessária para aprofundar este conhecimento e revelar outros aspectos desta realidade.

A Tabela 2 apresenta o perfil sócio-demográfico daqueles que morrem por violência em Duque de Caxias para o total das causas externas, para os homicídios e para os acidentes de trânsito.

 

 

Para todas as causas externas, os óbitos ocorreram em 88,9% no sexo masculino e em apenas 11,1% no sexo feminino, representando uma proporção 8 vezes maior de mortes entre os homens. Nos homicídios, esta proporção de sobremortalidade masculina é 13,5% vezes maior, diminuindo para 4,3% em relação aos acidentes de trânsito.

Os solteiros compreenderam 72% do conjunto das causas externas, e os casados, 25%. Para os homicídios, estas proporções de solteiros e casados foram, respectivamente, 76,8% e 22,3%, enquanto nos acidentes de trânsito reduziu-se a proporção de solteiros (64%) e elevou-se a de casados (32%).

As médias de idade foram, para todas as causas externas, de 28,8 anos no sexo masculino e de 34,2 anos no sexo feminino. Para ambos os sexos, elas foram menores no grupo dos homicídios e maiores no dos acidentes de trânsito (dados não mostrados). O fato dos homicídios incidirem num grupo mais jovem e dos acidentes de trânsito incidirem num de maior idade provavelmente explica as maiores proporções de solteiros naquele primeiro grupo, bem como de casados neste último.

Na distribuição das causas externas segundo o grau de instrução, percebe-se que 92,5% dos que morreram tinham apenas o primário incompleto (instrução elementar), 6,8% não possuíam instrução alguma, apenas 0,5% tinham o segundo grau, e 0,2%, o curso superior. Somando-se as proporções de nenhuma instrução e instrução elementar nos homicídios, observa-se que a quase totalidade (99,1%) destes óbitos situava-se nestas categorias. Para os acidentes de trânsito, esta proporção é um pouco menor (95,2%), porém continua bastante elevada.

Os dados mostram que, para todas as causas externas, 65,6% das vítimas eram de cores preta e parda (aqui somadas e consideradas indiferenciadamente como preta). Esta porcentagem é de 71,8% nos homicídios e de 53,8% nos acidentes de trânsito. Contrariamente, a cor branca aparece em 34,3% das causas externas, com menor proporção nos homicídios (28,2%) e maior nos acidentes de trânsito (46,2%). Apenas 0,1% tinha a cor amarela informada para as causas externas em geral.

Em relação à naturalidade, havia informação de que 84,3% nasceram na região Sudeste (destes, 72,5% no estado do Rio de Janeiro) e 15,7% em outras regiões do país, sendo o Nordeste a principal delas (14,9%). Para os homicídios, aumenta a proporção de nascidos no Sudeste (87,6%), enquanto esta é de 80% nos acidentes de trânsito. Inversamente, entre os nordestinos, foi maior a proporção de acidentes de trânsito (16%) que a de homicídios (12%).

A distribuição da mortalidade segundo a ocupação demonstra que a maioria das mortes por causas externas envolve trabalhadores do setor terciário (serviços) — 58,2% do total de óbitos por causas externas, 66% dos homicídios e 41% dos acidentes de trânsito. Destaca-se que mais de 60% dos óbitos em cada um dos grupos de causas analisados tinham mão-de-obra não-especializada no setor terciário, ao passo que uma maior concentração no setor secundário era semi-especializada (67,2% em todas as causas externas, 57,1% nos homicídios, e 100% nos acidentes de trânsito). O que é importante ressaltar nestes dados são as grandes proporções de trabalhadores semi e não-especializados nos setores secundário e terciário encontradas nestes óbitos (dados não mostrados).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Concretização da Rede de Violência

Os dados encontrados nesta investigação apontam para características na mortalidade por causas externas da área que a singularizam, ao mesmo tempo que a universalizam, revelando, a partir dela, um espelho de outras tantas áreas pobres e carentes do país.

Se o processo de violência em Duque de Caxias se expressa na mortalidade de sua população, para entender esta realidade é preciso buscar o conhecimento sistematizado sobre o tema, formulado em algumas hipóteses explicativas.

De acordo com Hirsch et al. (1973), o homicídio representa a última deterioração nas interações pessoais e sua presença fornece um índice de reações violentas para os estresses acumulados no grupo. Para eles, o homicídio é mais que um simples somatório da miséria individual; é um problema com extensões social e legal e ramificações médicas cujo estudo precisa envolver vários aspectos da vida da sociedade. Trata-se, então, para sua maior compreensão, de integrar estes níveis individual e coletivo, interpessoal e social, para se desvendar melhor o fenômeno.

Lester (1985, 1990), baseado na hipótese de Henry & Short, busca associar a qualidade de vida às taxas de homicídio e suicídio. Segundo esta hipótese, em sociedades onde a qualidade de vida é melhor e não se pode impingir a ela a responsabilidade pelos sentimentos de fracasso e infelicidade, as pessoas direcionam a agressividade para si mesmas e se matam. Por outro lado, quando as fontes externas não são capazes de satisfazer estas necessidades de sucesso e de felicidade, os indivíduos costumam sentir raiva e tendem a ser heteroagressivos. Este mecanismo de auto e heterodirecionamento da agressividade explicaria as elevadas taxas de homicídio, em geral acompanhadas de baixas taxas de suicídio, e vice-versa, em algumas áreas.

Uma terceira hipótese explicativa do homicídio e do suicídio é aquela apresentada por Holinger et al. (1987), baseada em um modelo populacional. Segundo estes autores, existe uma correlação positiva entre o aumento da proporção da população de 15 a 24 anos e altas taxas de homicídio e suicídio, bem como uma correlação inversa entre estas taxas e o aumento da proporção da população entre os 35 e 64 anos. Aqui, o pressuposto é o de que o maior número de jovens na população concorrendo a empregos, sem que tenham poder de pressão política para a obtenção das suas aspirações, com pouca escolaridade e psicologicamente mais suscetíveis psicologicamente aos fracassos, seria um fator que levaria estes jovens a uma maior exposição aos homicídios e suicídios. Inversamente, quando é maior o número de adultos na população, diminuem as taxas de mortes violentas.

Apesar de limitadas, estas hipóteses têm sua parcela de contribuição, e isto pode ser percebido quando as confrontamos com os dados de mortalidade por violência encontrados em Duque de Caxias.

As elevadas taxas de homicídio aí existentes mostram ser este um local onde as relações interpessoais encontram-se extremamente deterioradas, fazendo com que desavenças banais redundem em morte por assassinato. Exemplo disto é um dos casos aqui incluídos, cuja morte resultou do simples fato do cidadão estar falando alto em um bar, o que irritou um outro freguês, que o matou a tiros. Embora não seja objetivo deste trabalho analisar as relações interpessoais que em Duque de Caxias freqüentemente se expressam de forma violenta, não se pode deixar de ressaltar que os processos de formação e identificação do ego destes indivíduos ocorrem numa cultura onde imperam as discriminações (sociais, raciais, de gênero, etc.) e onde as injustiças (das chances sociais e da aplicação das leis) e a impunidade são a ordem do dia a dia. Estas distorções têm como conseqüência a inversão de sentimentos, onde o medo e a insegurança reforçam a crença de que a vida e os valores éticos e morais têm pouco valor. A este respeito Costa (1988) se refere quando discute o conceito de cultura da violência do ponto de vista social, para o qual existe um correlato a nível individual, que é a cultura narcísica. O autor advoga que o efeito de uma violência externa, provocando a reclusão narcísica e a constituição de uma cultura narcísica na formação da imagem egóica, faz com que as pessoas desenvolvam condutas dissolutas do convívio e da sociabilidade. Quando isto é acrescido da ausência de ideais (fabricados pelas instituições e, portanto, relativos e sujeitos a transformações), o que se desenvolve são as miragens do ego — dinâmica própria do narcisismo —, que visam a autoconservação e a autopreservação a qualquer preço. Esta perversão dos sentimentos, para Piccini (1988), encarna a perversão da lei, e o que está em jogo não é apenas o prazer dos sentidos, mas o poder.

As contribuições destes autores lançam uma luz para o que ocorre em Duque de Caxias, área periférica de uma sociedade capitalista dependente que possui um enorme contingente de pessoas com baixa escolaridade e pouco qualificadas enquanto mão-de-obra, pessoas cujas esperanças de ascensão social são quase que totalmente negadas. Em Duque de Caxias as crianças, desde cedo, têm que abandonar a escola para ajudarem no sustento da família, e aí a luta pela sobrevivência tem, muitas vezes, como única saída a prática de atos ilegais. Mais uma vez, vale aqui exemplificar o depoimento de um trabalhador que, uma vez descoberto como sendo morador da Baixada Fluminense, perdeu o emprego que havia conseguido na Capital do estado porque foi imaginariamente identificado como perigoso.

Estes componentes subjetivos e culturais compõem uma realidade na qual a violência primordial ou estrutural de uma sociedade como esta, que exclui do seu processo de desenvolvimento esta parcela da população, nela nada investindo e, conseqüentemente, dela nada esperando, explica a grave realidade dos homicídios em Duque de Caxias. Ressalte-se, entretanto, que desta violência fundamental desencadeiam-se todas as outras formas de violência. Sua visão é assim retratada por um morador: "A Baixada é violentada. Violentada cotidianamente pelas elites no poder, que a exploram econômica, social e politicamente, e pelas autoridades públicas, que lhe negam os mais elementares direitos sociais".

Carente de saneamento, habitação, lazer, moradia, educação e saúde, Duque de Caxias apresenta, portanto, uma qualidade de vida que pode ser considerada, na melhor das hipóteses, como precária. Isto se refere tanto aos aspectos materiais (aqueles supridos pelas fontes externas, ou seja, pela atuação do Estado através das suas instituições de educação, saúde e jurídica) quanto aos aspectos subjetivos (satisfações e bem-estar psicológicos, conseguidos, entre outras coisas, através das realizações das aspirações, do sentimento de segurança e de gozo pleno dos direitos e deveres de cidadania).

Em sua especificidade, Duque de Caxias parece refutar a hipótese de Holinger, pois a proporção de jovens entre 15 e 24 anos vem decrescendo de 21,3% para 18,7%, enquanto aumenta a proporção daqueles com 35 a 64 anos, pasando de 27% para 30% no período aqui investigado. Apesar da limitação da estimativa populacional, percebe-se não só que a sua população está envelhecendo (tal como ocorre também no país, especialmente nas áreas urbanas), mas também que estes jovens estão tendo suas vidas dramaticamente aniquiladas muito precocemente, sem que se faça nada para inverter esta situação. Mesmo em proporções decrescentes, estes jovens não estão tendo quaisquer oportunidades nesta sociedade, exceto a de estarem expostos ao grande risco de viverem numa área em que morrer por assassinato passou a ser um fato banal e corriqueiro. Um local onde as crianças jogam bola de gude ao lado dos corpos de pessoas assassinadas e onde a chegada do "rabecão" (carro funerário para transporte dos cadáveres), num espetáculo tragicômico, é motivo de diversão na comunidade; onde o contrato para o extermínio de pessoas é feito em praças públicas e locais conhecidos pela população e pelas autoridades, o preço das mesmas variando entre Cr$ 50.000,00 e Cr$ 300.000,00, dependendo do status social da vítima, (Bonis & Bottari, 1991). Para estes jovens, as próprias chances de sobrevivência estão, às vezes, ligadas ao perigo, seja pelo próprio fato de morarem na Baixada (local desprovido dos benefícios de infra-estrutura material e social, e inseguro pela atuação da polícia, que, quando não ausente, se apresenta ostensiva e violentamente), pela ocupação (às vezes ligada a atividades ilegais, como pequenos roubos, tráfico de tóxicos e outras), pela vizinhança (cujos matadores, membros de grupos de extermínio, convivem na comunidade), ou pelo próprio ócio (uma vez alijados das escolas e do mercado de trabalho, são vítimas de prisões por vadiagem).

O perfil destas vítimas da violência em Duque de Caxias aqui apresentado mostra que elas são, majoritariamente, homens, jovens, solteiros, com pouca instrução, de cor preta, nascidos no Rio de Janeiro e residentes no próprio município. A grande maioria foi trágica e levianamente assassinada nas ruas do centro da cidade ou fatalmente atropelada. Chama a atenção, ainda, a característica destes homicídios, nos quais o instrumento usado é quase sempre a arma de fogo e a parte do corpo atingida é a cabeça. Embora tenha-se encontrado um perfil um pouco melhor para as vítimas dos acidentes de trânsito que para aquelas assassinadas, com as primeiras morrendo mais velhas, tendo melhores instrução e especialização para o trabalho e recebendo mais assistência médica para o evento fatal, mesmo assim percebe-se que os dados são reveladores de, no mínimo, dois aspectos fundamentais do objeto investigado: 1) mesmo dentro do município (área periférica do capitalismo brasileiro, também estruturada em classes sociais distintas), estas vítimas não se inserem, enquanto grupo social, como membros de uma classe dominante local. Muito pelo contrário, constituem uma classe trabalhadora pobre e quase sem qualificação, enquanto mão-de-obra, para o capitalismo do país, em franca fase recessiva. Aqui revela-se o segundo aspecto que se deseja ressaltar, que é a mitificação destes mortos, os quais a opinião pública imaginariamente teima em considerar como bandidos e para os quais associam o fato de terem sido assassinados devido ao envolvimento com o tráfico e/ou uso de tóxicos, entre outras atividades marginais. Desmitificam-se também as crenças do senso comum de que estes mortos não são filhos de Duque de Caxias, mas que são para lá conduzidos após serem exterminados, e a falsa noção de que a ocorrência destes incidentes se localiza apenas em áreas faveladas do município. Também desmente a visão preconceituosa de que o nordestino (e a sua cultura machista) são responsáveis pela violência que ocorre no local, mostrando que este sim é vítima dos acidentes de trânsito, mais que dos homicídios, na sua ilusória busca por melhores condições de vida nas áreas mais urbanizadas do país.

O que se pretende aqui mostrar, a partir da realidade que os dados desvendam, é que, na vida como na morte, este grupo é social, política, econômica, geográfica, racial, cultural e historicamente marginalizado. A dignidade a que não tiveram direito em vida perpetua-se ao morrerem, porque são vistos como perigosos enquanto vivem, transformando-se em bandidos depois de mortos.

Se a Epidemiologia mostra que ser um trabalhador do sexo masculino, jovem, negro e pobre em Duque de Caxias são "fatores de risco" para o homicídio, cabe então à Sociologia explicar por que estas características estão, nesta sociedade, como em outras áreas urbanas, associadas a este risco. Na verdade, o que ocorre em Duque de Caxias é apenas um exemplo do que também acontece em outras áreas urbanas do país. Duque de Caxias é, hoje, para o Brasil, o sintoma de uma sociedade estruturalmente violenta, injusta e desigual, que nega aos seus cidadãos o direito à vida dígna e à morte honrosa. Uma sociedade fragilizada em suas instituições civis e na participação do Estado, porém tão forte e eficaz na organização do crime, na corrupção e na impunidade quanto severa na discriminação e punição diferenciadas da justiça e da polícia.

A complexa realidade em Duque de Caxias mostra também a existência de uma intricada rede entre o que se denomina aqui como violência da resistência e a violência da delinqüência. Isto porque a primeira é sufocada e perseguida como inimiga ao denunciar e apontar responsáveis, e a segunda acaba assumindo as funções do Estado ao incorporar, entre seus membros, jovens trabalhadores excluídos do mercado de trabalho e das escolas. Aqui, identifica-se, além da inversão de sentimentos detectada anteriormente nas expressões subjetivas, uma inversão das funções sociais das instituições. São estes jovens os elos fracos que acabam morrendo vítimas de assassinatos, porque sabiam ou viram "demais", por engano, ou porque suas mortes têm a função de amedrontar os que permanecem vivos e reforçar o clima de terror entre a população que se cala, porém que se arma para se defender por conta própria e finda também sendo violenta. É isto que se designou, anteriormente, como condição de sujeito/objeto da violência a um só tempo. Duque de Caxias é violentada, mas também é violenta, e a cadeia de violência que aí se estruturou está a mostrar para onde se está caminhando, levando um de seus moradores a dizer que "a violência do povo é um gemido de dor". São, portanto, os componentes desta cadeia que precisam ser identificados, e seus elos, desatados, para que se possa pensar e atuar na transformação. Neste ponto, a contribuição de Vethencourt (1990) é de extrema pertinência. Ele diferencia três momentos no que denomina de violência social ou violência solidária. Um primeiro, de violência vingativa, impulsiva, que tende à busca do prazer pela catarse e onde ocorre a suspensão da norma; um segundo momento em que a violência é expansiva, devido à descoberta da força e do poder; e, finalmente, a violência egocêntrica, exercida pelo malandro que ocupa o vazio deixado pelas autoridades policiais e pelas organizações populares genuínas, totalmente oposta à violência social.

Duque de Caxias sempre teve, na sua história, a presença do delinqüente, codinominado "justiceiro". Contudo, no seu processo de desenvolvimento, os justiceiros atuais não são mais os malandros romantizados, mas sim grupos de extermínio que voltam-se contra seus próprios filhos ainda crianças, ligados a poderosas organizações legais e clandestinas. A violência criminal do município, como a do país, já não é mais restrita a certas áreas pobres e nem é só de pobres, mas ultrapassa seus limites geográficos e os grupos sociais específicos. Seu exemplo está a mostrar ao país e ao mundo no que se transformou o "jeitinho brasileiro de tirar proveito em tudo", burlando as normas sociais, apoiado na impunidade conivente dentro e fora das instituições. Hoje, Duque de Caxias faz de si mesma a justiceira do Brasil, representante que é desta sociedade imersa numa realidade antiética e antimoral, na qual o suborno e a corrupção são denunciados diariamente e bradados pelos delinquentes, que não hesitam em dizer que enquanto tiverem dinheiro não ficam presos. E a prova disso é que a grande maioria está solta, alguns até com notoriedade social. Enquanto isso a população jovem, pobre e carente, vítima da violência estrutural, é alvejada e morta escandalosamente, porque não dispõe de condições financeiras para se proteger nem é objeto das políticas sociais de segurança e proteção.

Nos dados apresentados, percebe-se, ainda, que, quando atropeladas ou feridas num atentado (que, como se viu, são de extrema gravidade), esta população não possui um atendimento médico de emergência rápido e eficiente, com pessoal treinado e equipamento adequado ao atendimento desta natureza e desta complexidade. Infelizmente, a caracterização dos serviços de saúde em Duque de Caxias não satisfaz às necessidades de uma demanda desta ordem. Percebe-se, com isso, um total descompasso entre a oferta precária de serviços de saúde para atendimento de cuidados primários e uma procura de cuidados médico-cirúrgicos mais complexos. Como conseqüência desta disparidade entre oferta e procura de serviços médicos, as vítimas da violência em Duque de Caxias ficam sem assistência ou são encaminhadas para os hospitais da Capital, falecendo, em geral, no percurso, ou, então, porque não encontram vagas nestes hospitais e morrem por total falta de assistência médica.

Esta elevada mortalidade por homicídios e acidentes de trânsito em Duque de Caxias mostra a necessidade de uma urgente reestruturação do seu sistema de saúde, com a implantação de um serviço de emergência completo (inclusive com atendimento a domicílio, transporte e comunicação) e da instalação de um hospital equipado com aparelhagem e profissionais adequados ao atendimento de politraumatismos e neurocirurgias. Ela também aponta para a necessidade de um melhor planejamento urbano do tráfego do município, possibilitando maior segurança aos pedestres. Estas seriam medidas a curto e médio prazos, enquanto se luta por mudanças sociais mais profundas na realidade de pobreza e violência do município.

 

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