DEBATE/DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Castiel

 

Debate on the paper by Castiel

 

 

Diogo Meyer

Instituto de Biociências; Universidade de São Paulo

 

 

A molecularização da biologia foi o grande marco científico da segunda metade do Século XX. Alcançou-se uma compreensão profunda dos mecanismos genéticos que regem o funcionamento de células e as bases moleculares de processos complexos como as respostas imune e nervosa.

A compreensão das bases moleculares de doenças também experienciou grande desenvolvimento. Apenas nos últimos anos, foram encontrados genes que se supõe sejam as "causas" de doenças como a síndrome do X-frágil (uma das maiores causas de retardo mental), distrofia muscular e o câncer de cólon, para citar apenas alguns exemplos.

Luís David Castiel, em seu artigo "Uma Saúde Pública Molecular" discute a necessidade de se preparar para lidar com esta nova realidade, de modo tal que os conhecimentos moleculares se tornem uma ferramenta de trabalho dentro da Saúde Pública.

O artigo aborda a questão da diferenciação entre determinação e correlação; na Saúde Pública estes termos podem ser considerados equivalentes à distinção entre causas e predisposições a doenças, respectivamente. O reducionismo na Biologia Molecular, creio eu, tem tido um papel muito significativo na legitimação de uma visão na qual a idéia de que doenças apresentam causas claras e delimitadas é favorecido. Um exemplo atual que ilustra a dificuldade de distinguir entre estes dois tipos de relação (causalidade e pré-disposição) é o frenesi gerado pela idéia da medicina ortomolecular. A idéia que sustenta este campo da medicina é que muitas doenças são causadas por radicais livres e portanto dietas ricas em vitaminas antioxidantes (que neutralizam o efeito de radicais livres) seriam benéficas à saúde, diminuindo chances de câncer e retardando o próprio processo de envelhecimento. Há resultados experimentais tanto a favor como contra estes argumentos. Por um lado existem provas claras de que vitaminas realmente atuam como antioxidantes; por outro lado há estudos empíricos que mostram que fumantes que não ingerem vitaminas têm menos câncer de pulmão do que pessoas que as ingerem. Verifica-se um cenário complexo, no qual respostas que se relacionam a radicais livres, câncer e a necessidade de uma dieta antioxidante, de maneira causal e linear, devem ser encaradas com cautela.

De maneira semelhante, a predisposição de um indivíduo a doenças, devido a genes que ele possui, é facilmente deturpada para dar supore à idéia de que "genes causam doenças". Finalmente, há as doenças ditas "causadas" por microorganismos. A noção de causalidade pode mascarar o fato do micróbio ser um fator necessário mas não suficiente para desencadear a doença, atrasando assim a possibilidade de descobrir outros fatores que levam ao quadro patológico.

A iniciativa de chamar a atenção para implicações de uma visão que releva complexidade anteriormente mencionada, é um ponto importante do artigo. Este tema é um bom exemplo do tipo de discussão que vai passar a ser necessária no repertório de um profissional de Saúde Pública, argumenta Luís David Castiel.

Detectada uma área que necessita desenvolvimento, cabe perguntar, como de fato fez o autor, se esta é prioritária. A própria negação da possibilidade de se estabelecer prioridades, devido à natureza intricada das relações que compõe o cenário com o qual se depara, faz parte da resposta dada ao artigo. Esta me parece uma visão extremada: dentre as novidades que a visão molecular de Saúde Pública pode trazer, há tamanha heterogeneidade de temas, que julgo ser possível delinear quais serão mais relevantes para nosso contexto. A própria necessidade de poder estabelecer prioridades, portanto, deve ser considerada um desafio. No momento, há um repertório intelectual limitado para estabelecer prioridades. A reversão deste quadro levará a uma utilização muito mais eficiente de verbas disponíveis.

Em um país que apresenta problemas de Saúde Pública tão básicos, que requerem solução imediata, uma discussão como a apresentada por Luís David Castiel pode ganhar um tom (enganoso) de distanciamento da realidade. Acho importante enfatizar, em função desta possível crítica ao seu trabalho, que vejo como um cenário bastante provável para o futuro um rápido desenvolvimento tecnológico da Biologia Molecular no contexto da Saúde Pública, sem paralelo na área de formação de recursos humanos que possam utilizá-la criticamente. Justifica-se assim a preocupação em trazer este tema para uma posição mais central nas discussões de Saúde Pública.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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