RESENHA/RESENHA

 

 

Guilherme S. L. Brito

Escola Nacional de Saúde Pública; Fundação Oswaldo Cruz

 

 

Food of the Gods: The Search for the Original Tree of Knowledge. A Radical History of Plants, Drugs and Human Evolution. Terence McKenna. New York:Batam Books, 1993. 331 p., figs, biblio. ISBN 0-553-37130-4

É comum nos dias de hoje, à despeito dos grandes golpes sofridos pelos entusiastas do Criacionismo Teológico — ao perderem o monopólio explicativo da origem da vida e do homem no mundo —, lançar-se mão do texto bíblico do Gênesis como metáfora mítica antecipatória do pensamento evolutivo inaugurado por Darwin/Wallace. Com efeito, o texto do profeta Esdras é fecundo ao apresentar em trinta e um versículos, a obra de Deus, realizada em seis dias, numa seqüencia de eventos que muito se parece com o sugerido pelo atual pensamento cosmológico e evolucionista. Hipóteses de concepção divina e probabilidades no tempo geológico à parte, a Bíblia certamente tem suas razões.

Ao criar o homem à sua imagem e semelhança, Deus dispõe sobre aquele o poder de denominar e de dominar sobre toda sua obra: "tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para cultivar e guardar. E lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente" (Gênesis II, 15 e 16). Porém advertiu ao homem: "mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás" (Gênesis II, 17).

Daqui em diante, a maioria de nós conhece a estória: seduzidos pelas artimanhas da serpente, o casal primevo toma do fruto proibido e se percebe nu, sob vergonha. Condenados à ira divina, são expulsos do Éden, tendo que lutar pela sobrevivência num mundo hostil. Deus, em Seus caprichos, assim justifica a punição: "então disse o Senhor Deus: eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal; assim, para que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente, o Senhor Deus, por isso, o lançou fora do jardim do Éden, a fim de lavrar a terra de que fora tomado" (Gênesis IV, 22 e 23).

O leitor poderia estar se perguntando o porquê de uma visita ao texto bíblico, na introdução de uma resenha crítica de uma obra que versa sobre plantas e substâncias psicoativas. É que o autor do livro, o etnobotânico Terence McKenna, longe de pretender uma exegese bíblica, sugere uma hipótese fascinante: o fruto proibido — que despertou o casal primevo para o livre-arbítrio, a autopercepção e consciência de si, possibilitando o alcance de compreensão dos desígnios de Deus — não era uma maçã, como querem representações artísticas ou a vulgata cristã: o fruto proibido poderia ter sido plantas ou cogumelos alucinógenos! Embora o autor não se seduza por esta hipótese como sendo axial para a seleção do "primata que pensa", dá a ela uma característica catalizadora do processo de consolidação dos aspectos mentais superiores do homem, aquisição decisiva para o sucesso evolutivo. Através de achados do "mainstream" científico da arqueologia, da antropologia, da bioquímica e da botânica, entre outros, McKenna nos oferece um olhar em estado-de-arte do papel jogado pela relação dos homens com as substâncias capazes de proporcionarem "estados alterados de consciência". Além das inferências histórico-culturais, o autor reflete sobre as relações de potencialização, antagonismos, semelhanças físico-químicas etc, entre tais substâncias e importantes mediadores neuroquímicos presentes na fisiologia do sistema nervoso humano. A hipótese de que a relação imemorial do homem com vegetais e fungos alucinogênicos pode ter sido decisiva para o sucesso evolutivo daquele, pode ser sintetizada nas próprias palavras do autor:
"Alkaloids in plants, specifically the hallucinogenic compounds such as psilocybin, dimethyltryptamine (DMT), and harmaline, could be the chemical factors in the protohuman diet that catalized the emergence of human self-reflection" (p. 24).

Mckenna é um humanista. Um humanista contemporâneo. Longe de se alistar nas fileiras daqueles que prepararam o corte renascentista da análise e "controle" da natureza, dos quais herdamos tanto os benefícios como as conseqüências nefastas, McKenna propõe uma nova visão. Um novo "ethos". Não uma postura de dominação e controle, e, sim, uma postura de mutualidade entre homem e natureza. Um resgate que o contato entre o homem e algumas substâncias psicoativas pode revelar, como assim o foi com os antigos xamãs e feiticeiros.

Ao estilo de um Erasmus moderno, seu livro é dividido à maneira de um Dante: um coquetel bem equilibrado entre o "Elogio" e a "Comédia". McKenna nos convida para uma viagem entre um Paraíso, passando por um Paraíso Perdido, um Inferno, e, finalmente, um Paraíso Redescoberto.

Na parte intitulada Paraíso, o autor nos apresenta suas especulações sobre o uso milenar pelo homem de substâncias psicoativas, desde a dietética e o xamanismo até histórias épicas de civilizações antigas.

Segue-se a parte intitulada Paraíso Perdido onde o autor aponta os primórdios da curiosidade humana pela busca dos "estados alterados da mente", através do cultivo e uso de plantas ou fungos especiais, em aspectos sociais, terapêuticos ou recreativos. A parte aqui dedicada ao álcool e sua relação com os primórdios da manipulção química é emblemática: uma Alquimia do Espírito. Para além de uma transmutação material; uma transmutação do espírito.

Ao Inferno são lançados açúcar, café, chá, chocolate, ópio, tabaco, cocaína, heroína e até televisão! Aqui se fala de comércio, colonialismo, guerras, escravidão, sínteses químicas, artistas, loucos e doentes. É o palco mundano das substâncias psicoativas. Freud descobre Mr. Hide. A Metrópole domina o Admirável Novo Mundo.

Se libertando do Inferno, o leitor alcança o Paraíso Redescoberto. Aqui o fundo musical apropriado é "My Sweet Lord", de George Harrison. Encontramos Leary apologizando o LSD em Harvard; Huxley (o neto Aldous, do "advogado" de Darwin, T. H. Huxley) escrevendo sobre sua experiência com mescalina; contracultura e revolução interior no seio intelectual dos anos 60/70. Finalmente, dá-se o nascimento da etnopsicofarmacologia de Richard Evans Shultes, de Harvard.

A obra de Terence McKenna nos brinda com elegância documentação histórica, etnografias, revisão bibliográfica, bem como com um "novo manifesto" por um estilo de vida mais saudável para a comunidade humana. Stricto sensu, menos por sua contribuição especulativa, no início exposta, McKenna nos mostra a face ideológica do entendimento do fenômeno do uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas. Nos mostra que por trás de um conjunto de aspectos macroeconômicos, sanitários, jurídicos e até mesmo morais, ainda assim, o consumo de substâncias psicoativas pelo homem tem suas raízes em recônditos profundos de sua própria subjetividade: é uma das tentativas de re-conhecer sua existência no mundo, de religare, de dar algum sentido ao seu vir-a-ser. Sem se render ao piegas ou ao francamente outsider, o autor nos lembra que o fenômeno do uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas tem de ser tratado com metodologias para além da tabulação estatística, do dispositivo médico-legal ou do binômio capital-trabalho.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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