RESENHA/RESENHA
Maria Aparecida B. Marques
Universidade São Francisco
Infância e Violência Doméstica: Fronteiras do Conhecimento. Maria Amélia Azevedo & Viviani N. de A. Guerra (Orgs.). São Paulo: Cortez, 1993.
O livro Infância e Violência Doméstica: Fronteiras do Conhecimento, organizado por Maria Amélia Azevedo e Viviane N. de A. Guerra, conhecidas por suas pesquisas e inúmeras publicações nessa temática, apresenta originalidade em relação aos trabalhos anteriores.
Primeiro, reúne coletânia de textos de especialistas em diferentes áreas do conhecimento, previamente discutidos, em encontros realizados no Lacri Laboratório de Estudos da Criança órgão vinculado ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Em seus trabalhos os especialistas revisam as áreas de sua competência, estabelecendo algumas fronteiras do conhecimento entre aquelas e a violência doméstica; realizando, portanto, uma abordagem multidisciplinar.
Em segundo lugar, propõem-se ao desafio de apresentar uma abordagem histórico-crítica na área da violência familiar contra crianças e adolescentes, contrapondo-se à abordagem hegemônica em nível nacional e internacional que tem por base o modelo interativo, ancorado na teoria sistêmica. Caracteriza-se, segundo as próprias autoras, "como primeiras aproximações, primeiras leituras do fenômeno, dentro de uma perspectiva que se pretende criticar no nível epistemológico e emancipatória a nível político, o que permite caracterizar a coletânia de textos como obra aberta", como material de estudo e reflexão.
Os textos foram organizados em blocos temáticos. O primeiro bloco trabalha com os temas família e violência contra crianças e adolescentes. Define a família através do seu significado ao longo dos tempos, mostrando que sua constituição é socialmente construída, a partir de exigências de uma determinada sociedade e de seu momento histórico específico.
Buscando compreender os caminhos trilhados pela família no Brasil aponta a necessidade de transpor as abordagens realizadas em pesquisas anteriores, pensando a família como um espaço possível de mudanças, onde a completa harmonia e a unidade familiar não existe.
A abordagem da violência familiar numa perspectiva crítica fundamenta-se numa teoria crítica da infância, na teoria crítica da família, da sexualidade, da criminalidade e da violência. O texto aponta as exigências epistemológicas básicas para a construção de uma teoria crítica da violência contra crianças e adolescentes.
O segundo bloco temático discute o abuso ritualístico, contendo textos sobre o Satanismo, os crimes sexuais bárbaros contra crianças e adolescentes, e o "famigerado" cromossomo Y.
O abuso ritualístico é pouco conhecido no mundo, e pode estar ou não vinculado à violência doméstica uma vez que pode ocorrer tanto dentro quanto fora dos laços familiares. São apontadas práticas desse tipo de violência.
Na discussão dos rituais satânicos é traçado um paralelo entre a sexualidade humana, enquanto uma construção cultural e dialética, e a repressão da mesma por parte da Igreja Católica, encarando o "desvio sexual" como heresia, vinculando-o ao diabolismo e à feitiçaria. Aborda, ainda, os registros existentes acerca da morte de crianças como parte integrante de determinados rituais, e os diferentes motivos que cada cultura possui para cometer tais sacrifícios.
Ressalta a necessidade de se investigar e punir severamente os autores de casos comprovados de sacrifícios de seres humanos especialmente o de crianças, em rituais religiosos.
Falando sobre o significado do sangue nos rituais satânicos o texto afirma que o "Diabo Pós-Moderno", tem nome e sobrenome atualizados: Droga e Violência.
Os textos tratam, ainda, das penalidades para os delitos cometidos tanto em rituais satânicos quanto para crimes sexuais bárbaros praticados contra crianças e adolescentes, apontando as contradições da sociedade brasileira, as dificuldades de punição e a necessidade de alterações na legislação vigente.
Finalmente o texto procura desmistificar a relação entre genética e criminalidade, esclarecendo sua relação com o cromossomo Y quando encontrado em dose dupla no homem. Recorrendo a pesquisas, a obra salienta que muitos criminosos investigados eram portadores de um cromossomo Y a mais.
O terceiro bloco temático concentra-se nos maus tratos físicos e no incesto contra crianças e adolescentes. Os maus tratos físicos são tratados por especialista espanhol na área, que trabalha os aspectos epidemiológicos dos maus tratos no Estado Espanhol, e suas formas de prevenção.
A questão do incesto é tratada especificamente na relação pai-filha, enquanto abuso sexual. Os autores apresentam suas diferentes modalidades e suas conseqüências para as vítimas.
O quarto bloco trata das políticas sociais e a violência contra crianças e adolescentes, fazendo incursão no panorama internacional, sobretudo em programas desenvolvidos nos Estados Unidos. Assinala de forma objetiva seus pontos fortes e os limites desses programas.
Os estudos realizados pelas autoras ressaltam a política social no tocante a violência sexual e a violência física. A primeira começou a ser efetivamente estruturada nos E.U.A. a partir de 1970. O abuso sexual sofrido por parte significativa das meninas norte-americanas oriundas de diversas classes sociais e grupos étnicos distintos, pressionaram a expansão de instituições e programas destinados ao combate da violência doméstica.
A análise apresentada no texto sobre programas de combate à violência sexual doméstica está baseada em levantamento feito através de correspondência enviada a programas em andamento nos Estados Unidos. Destes, apenas 13 programas foram contactados. Quatro cartas foram devolvidas pelo correio: a taxa de não-resposta foi de 38 em 55 (de 70%). Os progra-mas que responderam à Survey apontam a falta de continuidade de vários programas devido a falta de verbas.
Concluindo a análise do programa de atendimento ao abuso sexual as autoras enfatizam que a sociedade americana foi capaz de tirar da clandestinidade o tema do abuso sexual doméstico de crianças e adolescentes, graças as denúncias corajosas das feministas. A redução dos índices desse tipo de abuso não tem sido significativa. Segundo o texto, "tudo isto porque têm faltado dois ingredientes fundamentais: de um lado, uma compreensão crítica do processo de produção desse tipo de violência no contexto sócio-econômico político e cultural da sociedade americana; de outro, uma política realmente emancipatória, que previna e combata a violência em contexto de uma política maior de resgate da cidadania de mulheres e crianças no contexto da mesma sociedade americana".
Finalizando, o livro analisa os programas de atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica no Brasil, tomando como exemplo, os desenvolvidos no Estado de São Paulo tanto ao nível de Estado quanto da sociedade civil.
Observa-se que da década de 80 para frente, o Brasil procura acompanhar o influxo internacional pela defesa dos direitos da criança e do adolescente.
Além das conquistas no aspecto da legislação, voltada para necessidade da criança e do adolescente, surgiram vários programas dirigidos especificamente ao combate da violência doméstica.
São descritos os papéis da Igreja através da Pastoral do Menor, das organizações não-governamentais e do Estado através da Secretaria do Menor.
Ressalta-se o interesse despertado pela problemática no âmbito nacional, demonstrada através das diversas intervenções realizadas e com as publicações de caráter acadêmico que procuram enfatizar o problema da violência doméstica em nosso meio. A continuidade dos programas e dos estudos deverá permanecer em nossa sociedade para resolver a contradição entre o discurso e a prática à respeito da proteção à infância na sociedade brasileira. Acredito que o trabalho organizado por Maria Amélia Azevedo e Viviane N. de A. Guerra dá uma grande contribuição ao avanço do estudo da questão da violência contra crianças e adolescentes.
Alguns textos são elaborados em uma linguagem e complexidade que pressupõem domínio de conceitos da teoria crítica, da mitologia, por parte de seus leitores.