Through Amazonian Eyes. The Human Ecology of Amazonian Populations. E. F. Moran. lowa City: University of lowa Press, 1993. xix + 230 p., índice, biblio., figuras
ISBN 0-87745-417-5 (capa dura)
ISBN 0-87745-418-3 (brochura)
Embora a comunidade antropológica e arqueológica nacional tenha ficado completamente à margem do pensamento ecológico sistêmico que se desenvolveu nas suas respectivas áreas maiormente nos Estados Unidos, graças ao esforço de dezenas de cientistas norte-americanos, a Amazônia se tornou, por certo, nas décadas de 60, 70 e 80, a principal região do planeta estudada sob a ótica do materialismo cultural. Às pesquisas pioneiras de Meggers, Carneiro e Cross, concentradas, basicamente, sobre fatores ubiqüitos limitantes ao desenvolvimento social na Amazônia, seguiu-se uma nova geração de investigadores, interessados, agora, não mais numa concepção de homogeneidade para a floresta tropical, homogeneidade essa cada vez mais contestada pelos estudos de ecologia de sistemas. Pode-se dizer que a década de 80 testemunhou uma grande mudança nas abordagens antropológico-ecológicas na Amazônia. Se, por um lado, os pioneiros concentraram-se sobre fatores limitantes de larga escala, a geração dos anos 80 investiu exatamente naquilo que a Amazônia tem de mais importante: na sua extrema heterogeneidade de sistemas naturais e, por conseguinte, na extrema sociodiversidade apresentada por suas populações nativas e tradicionais, resultado, obviamente, de respostas adaptativas, de cunho social, a essa miríade de possibilidades de sustentação material à produção e reprodução das sociedades envolvidas.
O primeiro grande avanço dessas pesquisas voltadas para respostas adaptativas a fatores locais na Amazônia foi brilhantemente esboçado no obra seminal de Hames & Vickers (1983). Mas se, por um lado, os pioneiros falharam ao assumir uma pretensa homogeneidade, esses últimos acabaram adotando uma outra extremidade na escala analítica: concentraram suas atenções a pesquisas exclusivamente puntuais. Em outras palavras, os primeiros generalizaram a partir de idéias preconcebidas, sem sustentação numa casuística de detalhe, enquanto que os últimos preferiram concentrar-se em estudos de casos para, somente num segundo momento, empreender tentativas de generalizações em escala e profundidade empiricamente justificadas. Creio que o maior mérito da obra de Moran, entre tantos outros, é exatamente o de preencher o gap entre esses dois extremos da escala. Se, por um lado, Moran parte de um conhecimento detalhado da variabilidade ecológica e social da Amazônia, e isto implica, necessariamente, num conhecimento enciclopédico da literatura ecológica, antropológica e arqueológica, por outro tenta organizar suas correlações não mais em espaços pontuais, mas em amplos espaços, que poderíamos denominar os grandes ecossistemas amazônicos já reconhecidos como tais. A obra é, portanto, a síntese mais completa e epistemologicamente mais consistente sobre como as distintas paisagens amazônicas interferiram na formulação das organizações sociais de suas populações humanas, organizações sociais aí entendidas como soluções adaptativas para o enfrentamento de questões de sustentabilidade material.
No primeiro capitulo, além do autor apresentar um breve resumo da história recente das populações nativas da Amazônia, apresenta um quadro extremamente didático sobre a variabilidade ecológica da região, demonstrando claramente que ela é bastante superior às tradicionais várzea e terra firme. A partir daí, organiza seu livro em torno daquilo que denomina os quatro grandes ecossistemas já reconhecidos na região: os ecossistemas de rios de águas negras, os de florestas altas, os de várzeas e os de savanas. Moran não assume, em absoluto, que sua compartimentação ecológica esgota a diversidade ecossistêmica da região. Na verdade, em quase todos os capítulos, o autor enfatiza que qualquer um desses ecossistemas apresenta grande variação interna. Ocorre, entretanto, que essa variabilidade "intraecossistemas conhecidos" ainda está por ser melhor estudada e organizada. Falta uma tipologia aceitável sobre a qual trabalhar. Exatamente por isso, o autor.prefere adotar uma postura conservadora, porém prudente, ao restringir suas análises antropo-ecológicas a apenas quatro grandes ecossistemas.
Certamente dos quatro capítulos onde a adaptação e a adaptabilidade social são tratadas, o mais elegante e com maior coerência intrínseca é o que trata dos ecossistemas de rios de águas negras, também publicado isoladamente pelo autor, sob a forma de artigo, em American Anthropologist. Qualquer antropólogo, por mais ideacionista que possa ser, rende-se às evidências incontestes, apresentadas por Morar, de como as características oligotróficas desses ecossistemas influenciaram diretamente na morfologia social das populações nativas que ali se estabeleceram ao longo dos séculos. Mas o próprio autor admite que o mérito é menos seu do que da própria situação de campo. Afinal, são os ecossistemas de águas negras que apresentam, na Amazônia, os maiores obstáculos ao assentamento humano, em termos de sustentabilidade material. A Antropologia Ecológica prevê claramente que é sob situações de extrema indisponibilidade de recursos materiais que as populações humanas apresentam menor flexibilidade de organização social, gerando, dessa forma, morfologias extremamente idiossincráticas.
Mas Moran não adota uma postura naive diante das relações entre meio ambiente e organizações sociais humanas. Tão pouco restringe a variabilidade paisagística somente àquela que foi captada pelo exercício da ciência. Durante todo o livro, Moran tenta demonstrar não somente como as sociedades humanas são capazes de agir sobre ecossistemas naturais, forjando aquilo que William Balée denomina "florestas culturais" mas também como determinados compartimentos reconhecidos pela ecologia ocidental desdobram-se em nuances de diversidade, quando lidos à luz do conhecimento nativo.
O último capítulo, "Human Ecology as a Critique of Development", deveria ser de leitura obrigatória àqueles que se encarregam de gestões de políticas públicas para a Amazônia. Se personalidades regionais, como Gilberto Mestrinho (só para citar o mais polêmico embora o mais transparente deles) o lesse e fizesse um esforço honesto de entendê-lo, muitos dos erros cometidos no passado no intento de desenvolver a região mostrar-se-iam desnecessários e, certamente, o futuro poderia ser poupado do vexame internacional de vê-los repetidos e da miséria social e natural por eles produzidas. Ainda que a Ciência e a observação sistemática do etnoconhecimento estejam longe de gerar soluções para todos os problemas que afligem a região, longe estamos da ignorância completa sobre a bio e a sociodiversidade amazônicas. Pelo menos suficientemente longes para evitarmos meia dúzia de erros banais, cuja ocorrência não merece outra classificação que desídia e cuja re-ocorrência não merece outra classificação que crime contra a humanidade.
Em síntese trata de uma grande obra, escrita por um grande especialista em assuntos amazônicos. Certamente entrará para o futuro como uma das principais obras realizadas sobre a ecologia das populações humanas amazônicas. Com a diferença que, neste caso, poderemos nos orgulhar de ter visto, pela primeira vez na história da Antropologia Ecológica Brasileira, se é que existe uma, uma obra gerada pelo pensamento materialista publicada primeiramente no país, em português, já que a mesma pode ser encontrada nas prateleiras das livrarias e bibliotecas nacionais sob o título de "A Ecologia Humana das Populações da Amazônia", editora Vozes, desde 1990. Ignorá-la, seja na sua versão em português, seja na sua recente versão em inglês, poderá redundar num grande atraso para a produção antropológica, enquanto ciência, e em graves equívocos desenvolvimentistas para aqueles responsáveis pelos destinos geo-políticos da região.
Walter Neves
Instituto de Biociências
Universidade de São Paulo
Referências Bibliográficas
BALÉS, W., 1989. Cultura na vegetação da Amazônia brasileira. In: Biologia e Ecologia Humana na Amazônia: Avaliação e Perspectivas (W. A. Neves, org.), Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi.
HAMES. R. & VICKERS, W. (Eds.), 1983. Adaptive Responses of Native Amazonians. New York: Academic Press.
MORAN, E. F., 1991. Human adaptive strategies in Amazonian blackwater ecosystems. American Anthropologist, 93: 361-382.