Qualidade de Vida: Compromisso Histórico da Epidemiologia. Maria Fernanda F Lima e Costa & Rômulo Paes de Sousa (organizadores). Belo Horizonte: Coppmed/Rio de Janeiro: Abrasco, 1994. 290 p.
ISBN 85-85002-11-5
Organizado por Maria Fernanda F. Lima e Costa e Rômulo Paes de Sousa, o livro "Qualidade de Vida: Compromisso Histórico da Epidemiologia" constitui-se nos Anais do II Congresso de Epidemiologia, realizado em Belo Horizonte, 1992. A variedade de tópicos abordados nas conferências, mesas-redondas, painéis e grupos de discussão propicia, a nosso ver, um apanhado compreensivo da teoria e da prática corrente da Epidemiologia, particularmente no Brasil e nos países da América Latina. É uma produção científica benvinda, que demonstra o sucesso e vigor deste evento, com os textos agrupados por grandes temas, conforme explicitam os próprios organizadores.
Por se tratar de uma coletânea que reúne apresentações em um fórum de discussão, portanto com características dinâmicas, trabalhos rigorosamente escritos do ponto de vista editorial se entremeiam com versões preliminares de artigos ainda com bibliografia parcial ou inexistente, além de alguns deslizes de citação e de ortografia. Não importa, é justamente na agregação de textos heterogêneos, que se pode apreender a força das idéias, a expressão das "inteligências", as peculiaridades das contribuições individuais e de grupos, e, principalmente, a rede de interações geradas durante o Congresso de Epidemiologia.
A obra dividida em 13 partes, incluindo relatórios de grupos de discussão e sumário das publicações cientificas dos dois primeiros Congressos de Epidemiologia, apresenta, no capítulo de abertura, os artigos: "Qualidade de vida: compromisso histórico da epidemiologia"; "Repensando a associação entre indicadores de saúde e de qualidade de vida", "Quantitativo e qualitativo em indicadores de saúde: revendo conceitos". Ruffino Netto faz uma retrospectiva histórica correlacionando a qualidade de vida com o conhecimento em diferentes períodos, e exemplifica através de indicadores econômicos e epidemiológicos as desigualdades sociais no Brasil. C. G. Victora F. C. Barros apresentam criativas pesquisas recentes sob o perfil epidemiológico da mortalidade infantil, utilizando os clássicos indicadores de saúde adaptados às novas condições de urbanização. M. C. S. Minayo discute com vigor a complementariedade entre o quantitativo e o qualitativo em saúde, bem como os equívocos de compreensão arraigados nesta área.
As doenças infecto-contagiosas e crônicas, tradicionalmente objeto de estudo da Epidemiologia, compõem os dois capítulos seguintes. Doença de Chagas, AIDS/HIV e Cólera são abordadas no seu aspecto histórico, na complexidade da dinâmica da população e no processo de disseminação infra-urbano pelos textos: "Doença de Chagas no Brasil situação atual e perspectivas", J. C. P. Dias; "Epidemiologia da AIDS/HIV no Brasil", M. D. C. Guimarães; "Cólera situação atual e tendências", M. Libel. Sobre o tópico Epidemiologia das Doenças Crônico-Degenerativas o artigo "Câncer no Brasil: um risco crescente", G. A. S. Mendonça enfatiza a expressão do câncer no quadro nosológico dos países em transição demográfica, demonstrando as diferenças regionais através das taxas de incidência dos seis registros brasileiros. Discorre; ainda, sobre fatores de risco, incluindo o acidente radioativo ocorrido em Goiânia. Em "Bases epidemiológicas para o controle do diabetes mellitus", L. J. Franco traça o perfil epidemiológico no Brasil e registra o despreparo do sistema de saúde como um todo para atendimento da demanda e controle.
Abordando os temas de nutrição e morbimortalidade são incluídos os artigos: "O estado nutricional das crianças brasileiras: a trajetória de 1975 a 1989", C. A. Monteiro et al. e o "The impact of vitamin A supplementation on child mortality and morbidity", D. A. Ross. Trazem os resultados de pesquisas epidemiológicas, conduzidas dentro do rigor metodológico e com implicações práticas, ressaltando o impacto de deficiências nutricionais na população infantil no Brasil e países de terceiro mundo.
Isolado no capítulo Causalidade na Epidemiologia e polêmico no conteúdo, o artigo "Caos e causa da Epidemiologia", N. Almeida Filho, tem o grande mérito de ser provocador ao distinguir a Epidemiologia inferencial da Epidemiologia referencial, fatores de risco e cenários de risco, questionando conceitos já estabelecidos. Traz ao final da mesa-redonda a transcrição da fala dos participantes, que parecem atraídos pelas possibilidades de incorporação de uma Epidemiologia com poder de transformação na prática dos serviços de saúde.
Abrindo a parte intitulada As Concepções do Coletivo em Epidemiologia, o cuidadoso e fundamentado artigo de M. L. Barreto e P. C. Alves "O coletivo versus o individual na Epidemiologia: contradição ou síntese?" tem como objetivo central analisar a concepção de coletivo utilizada na epidemiologia e a influência de outras disciplinas na construção deste conceito. Em "Dialectiea de lo colectivo en Epidemiologia", autor estrangeiro, J. Breilh, resgata na poesia do grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, a metáfora atual de um marxista que compreende os novos tempos, mas lembra que as desigualdades no terceiro mundo podem não ser resolvidas com os modelos políticos neoliberais tão em moda.
Reunidos sob o tema "Epidemiologia no terceiro mundo", os artigos de três especialistas de países latino-americanos vão do âmbito mais geral dos conceitos e da produção científica recente, ao particular da Epidemiologia da velhice enquanto desafio adicional neste contexto. S. Franco, da Colômbia, discute em "para estudiar la slaud del tercer mundo. Anotaciones preliminares" as categorias tradicionalmente utilizadas para dividir os países e critica a inadequação de tais definições econômicas que camuflam as desigualdades sociais internas de cada região do mundo. H. P. P. Zuñiga, em "Epidemiologia no terceiro mundo", analisa a produção científica da América Latina, em 1991, comparando-a com a internacional e incluindo um perfil do Chile em relação à Epidemiologia nos serviços de saúde e no ensino. R. P. Veras, em "Envelhecimento desafios e perspectivas: um estudo de prevalência na cidade do Rio de Janeiro", congrega resultados de pesquisas de campo, com extenso e atual referencial teórico, inovando por apresentar a discussão da mudança do perfil demográfico no contexto terceiro-mundista. Enfatiza que estes novos desafios de atividades e pesquisa em saúde em relação ao idoso, devem ser incorporados no compromisso histórico da Epidemiologia com a qualidade de vida.
"A Epidemiologia na organização dos serviços de saúde" é tema de mesa-redonda. As discussões sobre os marcos teóricos e sobre os efeitos das políticas institucionais na organização social dos serviços é introduzido por G. R. Silva que aponta o modelo proposto por Castelhano como uma boa aproximação para este tipo de análise. Segue-se a exposição sobre "A reforma sanitária e os modelos assistenciais: a epidemiologia na organização dos serviços de saúde", J. S. paim que apresenta, de forma didática, as mudanças dos modelos assistenciais vigentes e as propostas alternativas, bem como os fundamentos do processo de municipalização e distritalização em saúde na atual conjuntura brasileira. O enfoque da estratificação epidemiológica como instrumental metodológico para avaliar o impacto das desigualdades de vida sob as condições de saúde é abordado por N. Nuñes em "Perfiles de mortalidad según condiciones de vida en Venezuela". P. J. N. Chequer, em "Epidemiologia e serviços de saúde", discore sobre a importância da criação de um Centro Nacional de Epidemiologia do Ministério da Saúde como locus de formulação de propostas nacionais no campo da epidemiologia.
O tema ecologia e sua relação com os modelos de crescimento econômico é contemplado na conferência de P. M. Buss, "Desenvolvimento, ambiente e saúde". Traça um panorama da América Latina nas últimas décadas, incluindo desde aspectos relativos à organização do espaço, migração rural-urbano, mobilidade continuada e pauperização a exemplos específicos sobre o uso de agrotóxicos, mercúrio e poluição do ar.
Embora sob ângulos diferentes, os artigos incluídos no item Ética e Epidemiologia reforçam a necessidade de definição de regras de conduta, nas ações do Estado, nas pesquisas e nas atividades de .prestação de serviços, devido à natureza coletiva da epidemiologia. A preservação dos direitos humanos sem nigligenciar o dado local, a busca do bem-estar social e o respeito ao indivíduo são os pontos comuns aos artigos: "Etica de 1 desarrolo y papel del sector salud" R. Rodriguez, "Ética sanitária", S. G. Dallari; "Ética e epidemiologia", M. B. Debert-Ribeiro.
A análise da produção científica dos dois primeiros Congressos de Epidemiologia, feita em "Temas e métodos de Epidemiologia: análise da produção científica dos congressos brasileiros de epidemiologia, 1990 e 1992" evidencia o número crescente de participantes e de trabalhos. Vale destacar o que diz M. L. S. Souza et al.: "participar em Congresso representa a oportunidade para exposição de experiências que estavam escondidas no dia-a-dia do trabalho institucional. Por isso pode significar, não somente expressão de interesses individuais, mas de reflexos do clima de prioridades e incentivos que predominam no campo da Epidemiologia". Como parte final do livro, quatro relatórios: "Fundamentos conceituais em epidemiologia", "Repensando a vigilância epidemiológica", "Epidemiologia na pós-graduação stricto sensu" e "Utilização de grandes bancos de dados" representam a opinião de especialistas de diferentes situações.
Os congressos de Epidemiologia, através de seus rituais de confraternização, possibilitam a discussão de idéias inovadoras e polêmicas e o reconhecimento de conceitos e bandeiras que irão frutificar e influenciar a produção científica e a prática de saúde nos próximos anos. Este livro, por disseminar tais debates, merece ser lido e utilizado como fonte de consulta na área acadêmica e nas atividades de saúde.
Celina Maria Turchi Martelli
Departamento de Saúde Coletiva
Universidade Federal de Goiás