Debate sobre o Artigo de Melo-Filho
Debate on the Paper by Melo-Filho

 

Maria Cecília de S. Minayo
Vice-Presidência de Ensino e Informação
Fundação Oswaldo Cruz

Repensando os Desafios de Ulisses e Fausto

O texto de Djalma A. Melo Filho promove um encontro dos que atuam na área de saúde com os ideais e as entranhas de sua práxis. Utilizando-se das metáforas de Ulisses (Homero) e Fausto (Goethe) o autor defende a tese de que o setor saúde no Brasil, mesmo na sua expressão considerada mais progressista, o movimento sanitário, não conseguiu ultrapassar, em sua proposta, o nível das “necessidades existenciais”. Por extensão, não tem contribuído para a construção do “indivíduo” que exigiria para se constituir, a “satisfação de necessidades propriamente humanas”. O artigo é provocador porque de um lado coloca uma tese de forma incisiva; de outro, no seu desdobramento de metáforas e entrecortado exercício de hermenêutica, permite infinitas interpretações: é um texto polissêmico.

Quando o autor, no decorrer do trabalho, vai progressivamente conceituando saúde – “salute”; “salvação”; “passar por cima e saltar”; “prazer dos sentidos”; “prazer do equilíbrio”; “realização de qualidade e não apenas quantidade”; “liberdade aliada à socialidade”; “trabalho como componente da essência humana”; assim por diante – fica claro que sua formulação não pode ser reduzida a um conceito privativo do setor. Pelo contrário, talvez em estrito senso, seja este um campo de conhecimento e de práticas onde menos militam os profissionais de saúde. No amplo espetro do prazer, da socialidade; da contemplação, da liberdade, do trabaIho criador, possivelmente os artistas, os poetas, os monges, e quem sabe? os boêmios, sejam os atores mais significativos e definidores do âmbito e dos “ilimites” da saúde.

Na área considerada profissional, a barreira cerácea, dada pelas várias estruturas de pensamento e ação, contra o canto da sereia do diletantismo acadêmico ou contra a pulverização de ações, permitiu colocar como meta apenas “a conservação da vida” enquanto limite de possibilidades. E quanto a isso se podem produzir várias ilações.

A primeira é de que, do ponto de vista pragmático, a área da saúde foi sempre caudatária da hegemônica ideologia médica e a medicina sempre atuou dentro da causalidade biológica em função da doença e da ameaça da morte, portanto, para a “conservação da vida”. Em segundo lugar, o movimento sanitário, como detecta o autor, fundamentou-se numa corrente mecanicista do marxismo, capitaneada por Althusser, que realizou duas cisões no campo do conhecimento e das práticas: menosprezou os atores e as relações sociais, separando-os das responsabilidades com as mudanças estruturais; negou a história e ressaltou os determinismos das forças produtivas. Essas barreiras ceráceas nos ouvidos de Ulisses, colocadas talvez para atender aos conselhos da feiticeira Circe receosa dos maviosos cantos da sereia aqui, no entanto, encontraram a tentação do vôo fáustico como forma de praticar a política. A cisão teórico-prática entre estruturas e relações foi acompanhada pela negação das individualidades, do papel dos atores e do peso da cotidianeidade na produção e na reprodução. A questão era investir nas mudanças das estruturas a para isso na participação do poder oficial.

Esses problemas já levantados pelo autor poderiam ser ampliados para se entender a prática das esquerdas brasileiras, nas quais nos incluímos como contemporâneos e patícipes. A cera nos ouvidos contra o canto das sereias acabou por criar barreiras de comunicação ou contraditória e involuntariamente levou-nos para o espaço dos personalismos exarcebados, para o deslocamento entre teoria a vida, para a incompetência de promover a isonomia das forças em oposição.

Mas esse texto, Djalma o escreveu pare comemorar os 40 anos da Escola Nacional de Saúde Pública, esta jovem senhora, emblemática da saúde pública e do movimento sanitário. Olhando-a enquanto ator e personagem, Ulisses e Fausto se misturam. De um lado, o pragmatismo da área a envolve mais que a qualquer outra instituição do setor. Da mesma forma é lhe constante a tentação do retorno ao passado do carisma e do mito. De outro lado, a sedução fáustica da “negação de qualquer limite”, “de apoderarse do que parecer”, “e de fazer a sua moda” promove a sua “volta” ao futuro temerário universalista que se confunde com o retorno ao passado. Porém sua madura juventude há de encantar-se corm o logos e fazêla transpor a soleira do instinto para se institucionalizar na socialidade, na consciência, no trabalho a na universalidade. É verdade que estamos no mundo das metáforas e dos símbolos. Mas mesmo assim, vale lembrar, parafraseando o poeta Thiago de Melo, que talvez “não exista um caminho novo. O que existe de novo é o jeito de caminhar”.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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