Debate sobre o Artigo de Marques
Debate on the Paper by Marques

 

José Carlos Serufo
Núcleo de Pesquisa e Apoio Diagnóstico
Universidade Federal de Minas Gerais

Aos cientistas ligados à área da saúde talvez sejam aqueles de quem mais se deva cobrar um posicionamento claro a respeito das questões políticas, ou seja, do estudo profundo acerca dos sistemas políticos e suas implicações na qualidade de vida de todo o planeta, especialmente do ser humano.

Isto para não cairmos em erros de simplificação, muitas vezes expressos em textos científicos de formulação erudita, mas que todavia tergivesam, apresentando uma análise esterilizada das implicações dos avanços tecnológicos, dos desflorestamentos, das guerras, da ação predatória do homem em relação à natureza, do empobrecimento da qualidade de vida da população, como se fossem fatos ocorridos ou provocados pela humanidade, fruto de uma "desorganização" ou desconhecimento, e não pela decisão de governos, de interesses políticos e econômicos, sobre os quais a maioria das populações de todos os países não têm a menor responsabilidade, uma vez que não são chamadas a colaborar nas decisões, mas pelo contrário, são mantidas mal-informadas ou desinformadas com o intuito de que não os percebam e não reajam.

É um escândalo político, econômico e social o reaparecimento de doenças como a cólera e a tuberculose que, sabemos, ocorrem como conseqüência da deterioração das condições de vida das populações.

A dengue é um bom exemplo da falência do modelo de controle de vetores, centrado no uso de inseticidas em larga escala que faz dos "países periféricos" clientes cativos da indústria de pesticidas cuja lógica desconsidera a agressão ao meio ambiente e os distúrbios para o ecossistema e para a saúde das pessoas que essa prática resulta. O investimento em educação resolveria este problema em caráter definitivo. E por que não é feito? Certamente que uma população que tem conhecimento para resolver o problema da dengue seria também capaz de compreender outras coisas e de exigir amplamente seus direitos.

Da mesma forma, doenças como a AIDS não podem ser enfrentadas sem se atacar a questão social, a questão moral, especialmente a cultural. Ou seja, sendo uma doença que não afeta apenas as populações carentes, a AIDS põe a nu a falsa moral das classes dominantes que incentivaram ao longo dos séculos a ignorância, o desconhecimento do próprio corpo, em todas as camadas sociais, sendo essa, sem dúvida, uma das principais causas da proliferação das doenças sexualmente transmissíveis.

Desta maneira, se queremos dar um enfoque epistemológico, não há como discutirmos a emergência e a reemergência de doenças infecciosas sem levarmos em conta esta abordagem, sem nos pronunciarmos sobre as questões políticas mais emergentes, nacional e internacionalmente.

É impossível deixar de enfocar o papel que têm cumprido organismos internacionais como a ONU, que mostra nem sempre se direcionar pelas boas intenções de enfrentar os "novos desafios, e de redirecionarmos as agendas de pesquisa e escolha de tecnologias estratégicas"(vide texto).

A discussão sobre a previsibilidade do risco de ocorrência de eventos, longe de orientar a intervenção no rumo do controle e da erradicação das doenças, tem servido muito mais à propaganda dos planos de saúde e ao comércio, com sucateamento da saúde pública, exacerbada em tempos de política neoliberal.

Torna-se necessário realizar uma análise profunda e responsável da situação da saúde. onde esta questão deveria ser vista como uma questão social e não como um mercado valioso de venda de medicamentos, aparelhos e insumos para diagnóstico de doenças evitáveis.

Creio ser necessário um posicionamento aberto e corajoso da comunidade científica para denúncia dos abusos. dos escândalos, dos infanticídios cometidos com a fome, a miséria e as guerras. que ceifam a vida de milhares de seres humanos todos os anos, mas que não têm sido a preocupação dos governos e de muitos que crêem, enganosamente, não serem estes motivos de risco universal e, portanto, não os relacionam com as doenças emergentes e re-emergentes.

Sabemos, e não podemos fugir à responsabilidade de divulgar, que é possível alterar com a ação humana as condições préhistóricas ainda vividas pela maioria esmagadora da humanidade. Ao discutirmos a ecologia, é fundamental que nos lembremos que não são os homens e mulheres de todos os países os que desmatam, os que queimam, os que matam os rios e destroem os ecossistemas, e sim aqueles movidos pela ganância, cuja satisfação imediata e selvagem de seus desejos é seu único compromisso.

Assim, para discutirmos "desequilíbrio ambiental e alterações climáticas, explosão de populações humanas, crescente mobilidade de bens, serviços e pessoas, avanços técnicos, mudanças comportamentais e guerras" é fundamental que nos posicionemos politicamente no sentido de interferir na política global do nosso país e internacionalmente, pois a "imprevisibilidade" não é assim, como pode ser observado nos exemplos acima e no texto, tão imprevisível quanto alguns querem fazer crer.

Parabéns à autora do texto "Doenças Infecciosas Emergentes no Reino da Complexidade: Implicações para as Políticas Científicas e Tecnológicas", que enriquece essa discussão indo além da relação agente-hospedeiro, saindo da ótica da mídia atual, que veicula uma imagem onde os micróbios ressurgem como grandes vilões e estão ameaçando toda humanidade. O caminho é este, atacar a questão, buscar todos os seus ângulos, apontar as causas que se julgam verdadeiras, sem medo de errar ou de ser criticado. Parabéns, também aos Cadernos de Saúde Pública.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br