Debate sobre o Artigo de Marques
Debate on the Paper by Marques

 

Paulo Gadelha
Casa de Oswaldo Cruz
Fundação Oswaldo Cruz

O artigo de Marília Marques vem em boa hora. A atualidade do tema, seu tratamento sob a ótica da complexidade e da construção de alternativas metodológicas voltadas para a intervenção no campo da saúde despertam grande interesse, sendo a qualidade do texto incentivo adicional para estimular novas reflexões. Alertamos inicialmente que nossos comentários não terão o sentido de cobrar o atendimento de questões que o artigo não se propôs a desenvolver, mas apenas apontar para aspectos que poderiam precisar melhor a pauta proposta. Face às limitações de espaço, nos restringiremos a algumas questões conceituais e a chamar a atenção sobre a contribuição que os trabalhos históricos têm dado a esse debate.

O surgimento e desaparecimento de doenças infecciosas, tema marcante na historiografia sobre doenças, recebeu tratamento mais abrangente em 1930, com a obra de Charles Nicolle, "Naissance, Vie et Mort des Maladies Infectieuses". Nicolle se interroga sobre o destino das doenças infecciosas, fornecendo explicações para exemplos históricos, e especula sobre o futuro tomando como referencial as interações parasitashospedeiros e o fenômeno de mutação. Suas questões são de grande atualidade, como podemos depreender, para citar um exemplo, do seguinte comentário (op. cit, p. 129):

"Il Y aura donc des rnaladies nouvelles. C'est ura fait fatal. Un autre fait, tout aussi fatal, est que nous nes auroras jamais les dépister dès leur origine que, lorsque nous era auroras notion, elles seront déjà toutes forniées, adultes pourait-on dire (...). il faut donc aussi bien se résignier à l'ignorance des premiers cas évidents. Ils séront méconus, confondus avec des maladies déjà existants et ce n'est qu'après une longue période de tâtonnements qu'on dégagera le nouveau type pathologique du tableau des affections déjà classées."

Desde então, e especialmente a partir da década de 70, contribuições fundamentais para o tema surgiram da interface entre estudos bioecológicos e históricos, a exemplo dos conceitos de unificação microbiana do mundo (Le Roy Ladurie, 1973); imperialismo ecológico, gradiente epidemiológico e processo civilizatório (Crosby, 1986 e McNeil, 1976), e patocenose (Grmek, 1983), que se relacionam às referências recentes de Marília Marques a Morse – "tráfico global de viroses" – e Berlinguer – "intercâmbio de doenças entre o velho e o novo mundo" (p. 3). Uma maior familiaridade com essas vertentes teria enriquecido o texto em pauta.

O conceito de doenças emergentes, por exemplo, veio substituir na historiografia a noção mais restrita de doença "nova". Nesse sentido, o artigo de Marília Marques ganharia mais nitidez caso utilizasse a categorização proposta por Mirko Grmek onde são identificadas cinco situações em que uma doença pode ser considerada emergente: existência prévia, mas ocultada pela impossibilidade de sua conceitualização no passado; mudança qualitativa ou quantitativa que a tornam mais perceptível; introdução a partir de outras regiões; presença anterior restrita aos animais e, finalmente, radicalidade da emergência no sentido em que os agentes ou as condições para sua existência não existiam antes de suas primeiras manifestações clínicas (Grmek, s/d). Além da referência genérica à incidência de doenças, previamente reconhecidas ou não, e do caso específico de disseminação para outras áreas, citados no texto, ficariam melhor evidenciadas relações com novas formas de percepção e conceitualização, mudanças qualitativas e a diferença entre "novidade" e "emergência".

Quanto às explicações adiantadas para a emergência de doenças, acreditamos que o artigo poderia ser também enriquecido. Embora enfatize em vários trechos a complexidade desse fenômeno, referindose especialmente ao Grupo de Harvard, fica a impressão de que a autora valoriza um referencial ecológico mais restrito, relativo à ocorrência de variantes gênicas e/ou contatos com novos nichos em função da degradação de ecossistemas, em detrimento de questões referentes à modificações tecnológicas e conceituais na construção de nosologias, aspectos culturais e comportamentais e mecanismos de sinergia e antagonismo entre doenças. Mesmo quando alguns desses fatores são mencionados (p. 16), é imediatamente reforçada a idéia de novos contatos com reservatórios e vetores.

Sentimos falta também do desenvolvimento de conceitos que procurem organizar sinteticamente os vários fatores citados como causas do fenômeno da emergência. Lembramos novamente neste caso Mirko Grmek e seu conceito de patocenose, onde a freqüência e a distribuição de cada doença em situações de equilíbrio dependem, além de componentes endógenos e ecológicos, da freqüência e distribuição de todas as outras doenças. É assim que verifica-se sempre a existência de um pequeno número de doenças muito freqüentes convivendo com grande número de doenças raras. Certamente o conceito de patocenose é passível de críticas que não podem ser aqui consideradas. De qualquer maneira, sua utilização demonstrou-se pregnante na interpretação da emergência de doenças em momentos de ruptura de "equilíbrio patocenóticos" ao longo da história e foi utilizado por seu autor no debate sobre a emergência (e não "novidade") da AIDS, seguido do apoio de autores como Luc Montaigner (1994) e contrapondo-se, com vantagens, a interpretações reducionistas centradas na hipótese de mutação e novos contatos (Grmek, 1989).

Finalmente, quanto à variabilidade de microorganismos, teria sido oportuno mencionar, na medida em que os aspectos de detecção e vigilância são enfatizados, os desafios colocados pelo reconhecimento de novas formas virais ou subvirais (prions e virions) e sua relação com doenças emergentes (Chastel, 1992).

Há outro aspecto geral do texto que nos aventuramos a comentar e que se refere à questão da complexidade. Aqui o artigo é de grande riqueza quando relaciona delineamentos gerais dessa temática com as diferenças entre predição/prognóstico e projeção/conjecturas e suas conseqüências no estudo das transições epidemiológicas, intervenção na saúde pública e diálogo democrático. Causou-nos a impressão, entretanto, de que o aspecto geral da imprevisibilidade, que dá o mote para considerações sobre temporalidade/risco e a defesa de abordagens prospectivas mereceria maior contextualização. A referência a outras chaves, algumas delas anunciadas nas pp. 11 e 12 (sistemas estáveis e instáveis; ordem, desordem e autoorganização; local, global e história e irreversibilidade) tornaria mais claras as diferenças entre o entendimento da probabilidade no sentido clássico e seu papel nos sistemas instáveis ou a relação entre capacidade preditiva, "leis do caos" e "leis da natureza" que se expressam, por exemplo, na assertiva de que "probabilidade não é ignorância e de que a ciência não se confunde com a certeza" (Prigogine, 1994).

Por sua vez, consideramos um ponto forte o alerta, citando Tarride, de que o paradigma da complexidade não pretende fundar uma "nova ciência" (p. 12). Vale a pena reforçar com Edgar Morin (1990) que a complexidade não "produz" nem "determina" a inteligibilidade, mas fixa uma estratégia dialógica que, entre outros efeitos, estabelece uma tensão entre a totalidade como verdade e não-verdade (Morin, 1990). A complexidade, portanto, não deve inibir o esforço de interpretações totalizantes. Sob essa perspectiva ficam mais claras as relações entre predição, conjecturas e abertura para o imprevisto.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHASTEL, C., 1992. Histoire des Vírus. De la Variole au SIDA. Paris: Édit. Boubée.

GRMEK, 1989. Histoire du Sida: Début et Origine d'une Pandémie Actuelle. Paris: Payot.

__________, 1993.Le concept de maladie émergente. Historv and Philosohhy of the Life Sciences, 15: 281-296

__________, s/d. Décline et émergence des maladies. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, vol. II, n. 2. (no prelo)

MONTAIGNER, L., 1994. Des Vírus et des Hommes. Paris.

MORIN, E., 1990. Science avec Conscience. Paris: Fayard.

PRIGOGINE, I., 1994. Les Lois du Chaos. Paris: Flammarion.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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