Vozes do Meio Fio. Silva, H. & Milito, C. Editora Relume & Dumará, Rio de Janeiro: 1994. 192 p. ISBN 85-7316-016-0.

 

Com o propósito de contribuir para a ampliação das discussões sobre a realidade dos meninos de rua e pensar as ações voltadas para esta população, Silva & Milito mergulharam no universo de crianças e jovens que vivem nas ruas de alguns bairros da cidade do Rio de Janeiro.

Orientados por uma perspectiva antropológica e mediados por educadores de rua, os autores buscaram compreender as necessidades e interesses destes meninos, a partir de contatos, convivência e do estabelecimento de cumplicidades.

Através desta aproximação ao longo de treze meses, foi observado que o sexo masculino predomina entre as crianças e jovens que moram na rua. Identificou-se também, que, apesar de as atividades consideradas de domínio privado serem realizadas no domínio público, os espaços públicos são divididos em territórios onde não é permitida a circulação livre. A entrada em terreno alheio é considerada uma invasão, sendo castigada com violência.

A constatação de que a maioria dos meninos tem família é outro aspecto interessante de ser ressaltado, pois aponta para as atrações e/ou alternativas da vida fora do domínio doméstico como a busca de vantagens e autonomia. A formação de grupos de jovens, conforme foi identificado na Candelária, expressa, por exemplo, as "redes de apoio mútuo e de pares que, sob o comando de uma liderança, apossam-se de um espaço..." (1995:29). No interior deste universo da rua, caracterizado por carências e pela luta pela sobrevivência, foi atestada, ainda, uma "recomposição familiar", onde o travesti muitas vezes assume o papel materno e o homossexual o lugar do patriarca.

Dentro deste eixo de análise, cabe chamar a atenção para as considerações dos autores sobre os constantes atos de violência praticados no âmbito doméstico destes menores. Considerados desumanos pelos pesquisadores, tais comportamentos têm uma função educativa quando associados à necessidade de sobrevivência nas ruas, onde um descuido pode ser fatal. Nesta realidade "todos são inimigos em potencial". Para ilustrar esta constatação, os autores citam a declaração de Lígia Costa Leite: "a demonstração de afeto é sinal de fraqueza no universo dos menores de rua e é na base da pancada que eles endurecem e sobrevivem nas ruas" (Jornal do Brasil, 25.7.1993). Neste sentido, a violência doméstica deve ser compreendida com base na realidade e nos valores compartilhados neste contexto e não julgados isoladamente.

A caracterização do universo pesquisado seria insuficiente caso não fosse complementada com as observações das atitudes de policiais e da população em geral. em relação aos meninos de rua. Tal olhar indicou que as vozes que defendem os meninos de rua são constantemente silenciadas pelo "coro agressivo das ameaças". Dentro desta perspectiva, evidenciou-se uma "subcultura da evitação", segundo denominação dos autores, expressa pelo incentivo ou passividade diante de atos violentos, como a repressão policial, o extermínio e agressões físicas e verbais. O reflexo destas manisfestações pode ser observado na divisão entre os perigos da rua e a segurança dos espaços privados e entre os marginalizados e os integrados. Tais evidências estimulam uma reflexão acerca do papel da sociedade em relação ao futuro desta população que vive nas ruas.

As reações de medo e evitação frente aos meninos "molambentos" fomentam a criação de infratores, que se diferenciam dos meninos de rua por se vestirem bem, portarem armas, dormirem em hotéis e manter boas relações com os policiais. Sugere-se, assim, que os atos de ameaça dos meninos "franzinos" podem ser contidos com gritos e pitos. Segundo os autores, "a responsabilidade para com ele talvez implique não compactuar com a aposta que faz com seu pobre caco de vidro" (1995:51). O clima de medo e pânico generalizados e a "violência imaginária" potencializam o conflito.

A reflexão sobre o futuro dos meninos de rua inclui necessariamente uma análise do papel das Casas de Acolhida de menores. A dificuldade de adaptação ao trabalho e/ou escola e a falta de autonomia dos jovens que freqüentam tal instituição foram constatadas pelos profissionais das mesmas, pelos educadores de rua e pela literatura acerca do menor institucionalizado.

Com o objetivo de lançar luzes sobre este cenário, pouco promissor, os autores inseriram um debate em relação ao papel do educador de rua. As dúvidas acerca das reais possibilidades de entrada no mercado de trabalho destes meninos e do seu retorno à família, assim como a constatação da criação de uma "autonomia deste grupo em outro código" – entremeadas pelas discussões referentes às relações entre o educador e as instituições empregadoras – indicam a complexidade desta temática e a relevância da continuação do diálogo.

Por outro lado, apontam, principalmente, para a necessidade de se reformularem os programas e estratégias dirigidas para esta população. As sugestões de que a ação pedagógica voltada para crianças a jovens que moram na rua deve ser estruturada, visando à construção da identidade através do resgate da auto-estima e indo além da escolaridade, foi uma das questões apresentadas no debate. O desenvolvimento e o aumento da auto-estima foi considerado o primeiro passo do trabalho de rua.

Frente a estas análises, os autores ressaltaram a importância da função do educador de rua, definindo-o como: "um sócio do menino, em sua plena expressão, tradutor de seus silêncios, instaurador de sua voz, articulador de seus itinerários tumultuosos, não tanto os da superfície da cidade, mas sobretudo os das profundezas de suas subjetividades errantes, presente, claro e falante" (1994:149). A ação desses educadores foi avaliada como de grande alcance pedagógico, tanto para os meninos como para a população em geral, sendo proposta a fundação de uma associação de classe de educadores de rua.

Após a leitura do livro, conclui-se que o estudo de Silva & Milito cumpriu seu objetivo ao fornecer dados interessantes e inovadores sobre a vida dos meninos de rua e, desta maneira, fomentou um questionamento acerca das atuais políticas voltadas para este segmento social. Neste sentido, chamou a atenção para o papel do governo e da sociedade civil na mudança desta situação. A população, ao se sentir vítima e refém destes meninos, não considera a origem, as causas e as possíveis soluções para o problema. Afinal, conforme afirmação dos autores, os meninos de rua estão sendo "produzidos para a mendicância e a criminalidade; ... não são vítimas de si mesmos nem de um fato perverso. Trazem em si as marcas de um fracasso coletivo, um fracasso social, um fracasso político (1994:30). "Não se pode construir um futuro claro com crianças socializadas obscuramente"(1994:39).

Ao fazer uma etnografia do mundo da rua, os autores criaram um discurso que foi construído com base na interação e na convivência. Tal perspectiva imprime uma legitimidade nas suas falas a amplia as visões acerca deste fenômeno. Despido de abordagens preconceituosas e da intolerância, foi possível perceber o universo de uma população marginalizada, silenciada, excluída e alimentada pela injustiça social.

Vozes do meio fio exemplifica a riqueza e a importância dos estudos etnográficos para a compreensão da complexidade da realidade social e, assim, colabora para uma conscientização do nosso papel na transformação da sociedade.

 

Simone Monteiro
Laboratório de Educação Ambiental e em Saúde
Departamento de Biologia Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br