RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

CIENCIA E SAÚDE NA TERRA DOS BANDEIRANTES: A TRAJATÓRIA DO INSTITUTO PASTEUR DE SÃO PAULO NO PERÍODO DE 1903-1916. Luiz Antônio Teixeira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 1995. 167 pp.

ISBN 85-85676-14-0

 

Existe a tradição, transformada em senso-comum, que as pesquisas científicas, o ensino e a prestação de serviços laboratoriais, na República Velha, existiriam apenas quando patrocinadas exclusivamente pelos cofres públicos. Mais ainda, os estudiosos tendem a restringir suas análises a um escasso número de instituições, destacando-se do conjunto o Instituto Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro e, em São Paulo, o Instituto Butantã. Em seguida, prevalece a tendência dos textos produzidos na área da história institucional da saúde centrar suas observações sobretudo nas condicionantes internas que permeiam a vida dos estabelecimentos sanitários, tingindo os enfoques com cores ufanistas na linha nascimento, vida e glória das instituições médicas.

O livro do historiador Luiz Antônio Teixeira, intitulado Ciência e Saúde na Terra dos Bandeirantes: a Trajetória do Instituto Pasteur de São Paulo no Período de 1903-1916 (Editora Fiocruz, 1995), mostra-se original por fugir a todos estes princípios que têm esmaecido o interesse mais amplo sobre as pesquisas médico-institucionais brasileiras. Ao invés de repetir as velhas estratégias de observação da organização e funcionamento de um instituto científico, Teixeira rompeu até mesmo para os próprios paulistanos. Neste encaminhamento, o autor chama a atenção para o fato de o paulistano Instituto Pasteur (IP/SP) ter criado, em 1930, como um laboratório de saúde pública inicialmente mantido por doações feitas pela elite estadual, apesar de desde suas origens pleitear por verbas públicas para financiar suas atividades.

Certamente a principal contribuição deste estudo consiste em focar os primeiros treze anos de vida do IP/SP através de uma perspectiva de análise que une tanto a história interna à instituição quanto os fatores externos que ditaram as circunstâncias de seu funcionamento e sua incorporação aos serviços oficiais de saúde no ano de 1916. Apesar de esta vertente de análise já ter sido aconselhada por Gaston Bachelard há mais de meio século, ainda são raros os estudos que a adotam, o que contribui ainda mais para a importância do livro em tela. Neste curso, Teixeira ousou verificar a trajetória do IP/SP ­ recorrendo declaradamente à noção de "campo científico" ensinado por Pierre Bourdieu, que se constitui em uma versão modernizada da proposta bachelardiana ­ como uma teia de atividades científicas diretamente vinculada e concorrente com as demais instituições médico-científicas que no mesmo período atuavam na cidade de São Paulo e também em todo o território nacional. Originou-se disto uma disputa, nem sempre ética, é preciso que o diga, que, iniciada nos institutos, colocava em confronto os principais nomes da ciência brasileira e dos apoios contratados no estrangeiro. Nesta batalha de estrelas e interesses, o IP/SP buscou nomes de peso no Europa, indicando inicialmente para dirigir seus serviços o bacteriologista italiano Ivo Bondie, e, em seguida, o também italiano Antônio Carini.

O empenho do novo instituto, principalmente sob a direção do Dr. Carini, foi mostrar-se como um laboratório de saúde pública independente em suas linhas de pesquisa, ocupando espaços que se apresentavam descobertos ou insuficientemente cobertos pelos órgãos vinculados à administração pública. Neste sentido, a preocupação do IP/SP com diagnóstico e tratamento dos acidentados por mordedura animal e com as questões médico-veterinárias conferia-lhe destaque e verbas necessárias para manter-se em atividade, sem precisar contar para a sua sobrevivência com volumosas doações governamentais por um período relativamente longo no que tange à vida de uma instituição que carecia de constante renovação de laboratórios, equipamentos e materiais.

No entanto, o empenho do autor em arquitetar um estudo sob estas perspectivas contou com limitações. A primeira delas refere-se ao enquadramento superficial do Instituto e dos órgãos científicos em geral no contexto das necessidades de modernização nacional, impostas pela lógica do capitalismo das primeiras décadas deste século. Se certamente havia uma acirrada disputa pelo monopólio da autoridade científica entre os diversos institutos médico-biológicos, tal confronto era estimulado pela burguesia e pelo governo que buscavam soluções para os problemas nacionais através da expansão da proposta "civilizadora" iniciada pela equipe chefiada por Oswaldo Cruz e que incluía a atualização da mentalidade dos grupos sociais, inclusive dos fazendeiros e industriais que compunham a elite econômica paulistana. Em outros termos, a questão que deixou de ser suficientemente explorada corresponde ao papel da ciência ­ representada sobretudo pelas atividades desenvolvidas no Instituto Pasteur de São Paulo ­ num país recém-egresso da escravidão que, tentando superar a fase de "barbárie", buscava a todo custo equiparar-se ao modelo positivista vigente nas nações "civilizadas".

A leitura do livro de Luiz Antônio Teixeira também deixa em aberto os debates alimentados na virada do século sobre os rumos que as ciências médico-biológicas deveriam tomar. Neste contexto, os trabalhos dos funcionários dos institutos de saúde, todos eles tributários dos conceitos pastorianos, eram contestados por uma importante parcela dos médicos e da população paulistana, que via com desconfiança a idéia segundo a qual as doenças humanas e animais eram veiculadas por micróbios, assim como mostrava-se reticente em substituir as fórmulas curativas tradicionais pelas drogas e procedimentos preconizados pelos laboratórios públicos e privados. Uma busca documental mais apurada e que não se restringisse aos artigos estampados nas revistas que já esposavam a doutrina do químico Pasteur poderia contribuir para esclarecer que a "conversão" à medicina moderna não foi um processo imediato e destituído de contestações produzidas não só pelas camadas populares mas também por uma parcela da "elite esclarecida".

É de se questionar também a ausência de um dos principais clínicos concorrentes ao Dr. Antônio Carini: o médico Clemente Ferreira, tisiologista que manteve intenso confronto com os representantes do IP/SP em relação à pesquisa e produção de medicamentos para o tísico e atendimento aos tuberculosos, sobretudo no referente ao monopólio de realização do exame laboratorial de esputo. Cabe ressaltar que esta questão poderia ter sido incluída no estudo assinado por Luiz Antônio Teixeira porque o instituto liderado por Clemente Ferreira, inaugurado em 1899 e que poucos anos depois foi rebatizado como Instituto Clemente Ferreira, tal como o IP/SP, constituiu-se enquanto órgão privado, dispondo para seu funcionamento de verbas obtidas pelos serviços prestados, por doações da elite paulista e também com m irregulares dotações governamentais. Se esta circunstância fosse somada à equação montada por Luiz Antônio, a trajetória do Instituto Pasteur de São Paulo e sua incorporação ao Serviço Sanitário poderia ganhar novas luzes, já que a instituição centrada guardando autonomia até a década de 30, quando foi obrigada a subordinar-se totalmente à administração pública estadual por imposição política e não por falência econômica, como aconteceu com o centro liderado pelo Dr. Carini.

Claro que estas observações aqui registradas em nada depõem contra a qualidade do livro avaliado. As novidades temáticas e metodológicas trazidas por Luiz Antônio Teixeira são bem superiores às lacunas presentes em seu texto. Com esta obra, espera-se a continuidade da renovação dos estudos médico-institucionais brasileiros, o que irá contribuir para um novo questionamento dos (des)caminhos da saúde pública nacional

 

Cláudio Bertolli Filho

Instituto de Ciências Humanas Universidade do Vale do Paraíba.

 

 

A DEMOCRACIA INCONCLUSA. UM ESTUDO DA REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA. S. Gerschman (org.) Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 1995. 203 pp.

ISBN 85-85676-20-5

 

Fruto de sua tese de doutorado, publicada sob a forma de livro pela Editora Fiocruz, este texto de Silvia provoca no leitor uma certa perplexidade. Talvez sejam três os fatores que contribuam para que isso ocorra: o texto está sob a "forma bruta" da sua versão de tese; a perspectiva analítica eleita pela autora é inovadora e instigante, mas defronta-se com uma análise convencional do fenômeno "Reforma Sanitária Brasileira"; e os vários processos e fenômenos analisados dançam uma ciranda por vezes harmônica, por vezes dissonante, o que é próprio da história, mas por vezes de modo absolutamente desconexo entre eles.

A partir das reflexões de Schmitter sobre regimes de democratização parcial, Silvia analisa a Reforma Sanitária Brasileira abarcando três dimensões: o processo de transição democrática e a reformulação da política de saúde, os movimentos sociais ­ aqui distinguindo os movimentos populares de saúde e o movimento médico ­, e o processo de implementação da Reforma Sanitária nos anos 90, privilegiando a dinâmica da relação entre o que denomina de "atores privilegiados". Finaliza a pesquisa, antecedendo as clássicas "conclusões", seis estudos de casos de experiências de gestão municipal de saúde.

O próprio roteiro do texto, portanto, atesta a importância do mesmo para o debate atual sobre os avanços e recuos, impasses e desafios da Reforma Sanitária Brasileira. Mas o leitor vê-se frustrado, por outro lado, pelos argumentos e análises pisadas e já repisadas sobre esse processo, aí em nada auxiliando as proposições analíticas de Schmitter. Talvez os exemplos mais significativos residam no tom de instrumentalização da Universidade (pág. 71) com relação ao movimento sanitário e a falta de clareza, nos distintos momentos em que a análise é dividida, dos reais interlocutores no processo da Reforma Sanitária Brasileira.

Por outro lado, embora exista uma estreita e imbricada articulação entre os distintos atores sociais envolvidos no processo, ao analisar os movimentos sociais, as reformulações na política de saúde e implementação do ideário reformista não é assumida pela autora, em nenhum momento de sua análise, que é o ator privilegiado nesse processo nos distintos períodos estudados. Deixo um exemplo: ao estudar o MOPS, a meu ver a parte mais instigante do texto, a interpretação do fato de ele alterar sua estratégia de busca de uma articulação nacional para a busca de uma articulação estadual como resposta às mudança federais da política de saúde, referendadas na VIII Conferência Nacional de Saúde, encontra respaldo nos próprios dados trazidos pela autora. E neste caso este tipo de análise ganha relevância para os próprios objetivos propostos, que é o de, no fundo, auxiliar no entendimento da natureza do processo democrático por que vimos passando, a contribuição do movimento da saúde para esse processo, e a instigante (embora quase nada aprofundada) questão da relação entre democracia e reforma.

Do mesmo modo é assumida na análise como crucial para a explicação das mazelas da saúde a falta de recursos para o setor. Os dados apresentados, no geral sob a forma de percentual do PIB, são assumidos sem maiores detalhes, mas sobretudo aqui se assume que a questão está no volume de recursos para a saúde, e não no volume mas também na sua forma de financiamento, na medida em que é exatamente a lógica de seu financiamento que vai determinar os padrões de universalidade e eqüidade.

Mas exatamente o que deixa o leitor perplexo ao percorrer este texto é o desnível no desenvolvimento entre as suas várias partes e capítulos. Contrasta, por exemplo, com o que foi registrado no parágrafo anterior a argúcia da análise e da reconstrução das trajetórias do movimento popular de saúde e do movimento médico na constituição de sua identidade enquanto ator social e enquanto sujeito social. Mas talvez aí esteja contribuindo para tanto um fator "externo", vale dizer, o fato de a maior parte da bibliografia aqui utilizada pela autora não provir do próprio meio, isto é, dos próprios "sujeitos políticos" privilegiados da Reforma Sanitária Brasileira.

Mas a essa parte do trabalho, uma vez mais, segue-se outra que de certa forma frustra o leitor. Após mais uma passagem pela política nacional (capítulo VI), a autora dedica-se nos dois capítulos finais à exposição de estudos de caso de experiências locais de saúde e aos Conselhos de Saúde. Trata-se, agora, de enfrentar a questão da descentralização não mais da ótica do Estado Nacional, mas do poder local enfatizando a dimensão da Política e dos Atores. Esses relatos, a maior parte deles compilados de forma resumida de outros estudos feitos por outros pesquisadores, e nem sempre, diga-se de passagem, com os mesmos objetivos, são genéricos e pouco acrescentam às análises já feitas anteriormente pela autora. E quando chegam a dados e conclusões interessantes, estes não são levados adiante. Cito dois exemplos: quando a autora constata que o tamanho do município é um fator que dificulta a implementação da municipalização (pág. 174); ou quando se refere aos Conselhos de Saúde estaduais e municipais e à maior ou menor resistência dos movimentos populares para participarem deles (pág. 184); e diga-se, também de passagem, como reflexo das mudanças da política de saúde no nível federal.

Se do ponto de vista teórico foi extremamente feliz a opção de Silvia, ao recorrer fundamentalmente às reflexões e proposições de Schmitter, e talvez exatamente por isto, não parece ter muito sentido toda a digressão presente no primeiro capítulo. Eis aí um exemplo da "forma bruta" da versão da tese em livro. A discussão então travada pouco contribui para a análise realizada, que aliás a supera, e temas e questões extremamente complexas são tratadas de forma aligeirada e simplista, não cabendo por exemplo nem as avaliações sobre a teoria do Rawls (e aí textos nacionais como o de autoria de Álvaro de Vita são fundamentais, e foram desconhecidos pela autora) nem a junção de Freud na discussão sobre indivíduo/sociedade, uma vez que a questão da individualidade não será retomada adiante.

Finalmente, um último registro. A compreensão do texto é extremamente prejudicada tanto por questões de redação ­ são inúmeros os erros de grafia, concordância e pontuação ­ talvez pelo fato de a autora ser argentina de origem, mas o que requereria imperiosamente uma revisão vigorosa do texto, pois há passagens absolutamente ininteligíveis, quanto também pela ausência de revisão nas provas do livro. São freqüentes, por exemplo, como na página 70, onde se encontra "militares do PT" ao invés de "militantes do PT" ... o que para o leitor pode trazer uma série de confusões. Este último registro, no entanto, vale mais para a Editora, jovem, mas que certamente desempenhará um papel fundamental para o debate brasileiro sobre a saúde, do que para a autora.

Note-se, por fim, que as reações aqui apresentadas ao livro de Silvia Gerschman vão no sentido de valorizar seu texto e sua pesquisa, que certamente representam um sopro novo no debate sobre saúde que ora vem se travando no Brasil, mas que não deixa de frustrar o leitor, sobretudo aqueles mais neurastênicos como eu... e aí uma das causas da frustração talvez resida também no contraste entre os resultados conquistados pela autora e a griffe com que o trabalho é apresentado ­ prefácio de Schmitter, orelha de capa de Ianni.

 

Amélia Cohn

Docente do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP e pesquisadora do CEDEC

 

 

THE HEALTH OF NATIVE AMERICANS: TOWARD A BIOCULTURAL EPIDEMIOLOGY. T.K. Young. New York: Oxford University Press, 1994. 275pp.

ISBN: 0-19-507339-8

 

Os interessados na temática "saúde indígena" no Brasil, sejam pesquisadores, planejadores ou prestadores de serviço, defrontam-se no dia-a-dia com uma recorrente carência de dados epidemiológicos concernentes a essas populações. Indagações básicas no campo da saúde pública, como as relacionadas às causas e aos níveis de morbi-mortalidade, por exemplo, em geral não são passíveis de serem respondidas satisfatoriamente. Isto porque para a imensa maioria dos grupos indígenas, que beira a totalidade, inexistem rotinas de registro de informações de relevância para a caracterização e planejamento das ações em saúde. Este quadro de "silêncio" epidemiológico, por si preocupante já que as condições de saúde destes grupos em geral são precárias, reflete o ineficiente funcionamento dos serviços de saúde na maioria das áreas indígenas do Brasil (vide Santos & Coimbra Jr., 1994).

"The Health of Native Americans" é uma cuidadosa e abrangente análise dos perfis de saúde/ doença das populações nativas situadas no Canadá e nos Estados Unidos. Assim, a despeito do título abrangente, o enfoque é em um conjunto geograficamente delimitado de sociedades. Logo no início do trabalho K.T. Young também delimita as fronteiras teóricas de seu estudo, quais sejam, sobretudo a análise de fatores ligados à biologia humana, ao ambiente e aos estilos de vida. Temáticas como etnomedicina e organização e administração de serviços de saúde não são enfatizadas.

A despeito da especificidade geográfica, este mais recente trabalho de Young é de grande relevância teórico-metodológica para as discussões acerca da saúde de povos indígenas de outras regiões das Américas, incluindo o Brasil. Isto porque, dentre outras razões, constitui-se em um bom exemplo de como a compreensão do quadro saúde/ doença de um dado segmento populacional/ social requer um exercício de contextualização. Ao longo de todo o livro são traçados inúmeros e interessantes paralelos entre a situação dos ameríndios vis-à-vis não-ameríndios na tentativa de situar os primeiros no contexto mais amplo de saúde em nível nacional.

Young baseia sua argumentação em informações oriundas de uma multiplicidade de fontes, incluindo censos, bases de dados de morbidade e de mortalidade, publicações cientifícas, etc. Inquestionavelmente a disponibilidade de dados epidemiológicos para os grupos nativos da América do Norte é considerável, propiciando inclusive discussões acerca de tendências epidemiológicas ao longo do tempo. Não obstante, Young chama atenção para as limitações dos dados. Por exemplo, aqueles referentes à mortalidade cobrem umas poucas décadas (a partir dos anos 50) e os de morbidade são ainda de menor profundidade temporal.

O principal referencial teórico de Young é a teoria de transição epidemiológica, que inclusive norteia a estrutura do livro. Após uma capítulo introdutório no qual é apresentada uma caracterização histórica, geográfica e sócio-econômica dos grupos indígenas do Canadá e dos Estados Unidos, seguem-se outros que cobrem as doenças infecciosas, as crônicas, os acidentes e o que o autor denomina de "patologias sociais". Os dados apontam para uma redução da morbi-mortalidade por doenças infecciosas ao longo das últimas décadas, que veio acompanhada de um substancial aumento das crônicas e dos acidentes. Depreende-se das análises de Young que a evolução do perfil epidemiológico dos grupos nativos da América do Norte comporta-se, em linhas gerais, como sugerido pela teoria proposta por Omran no início da década de 70. Young chama atenção para o fato de que ajustes na teoria precisam ser feitos, já que o crescimento da morbi-mortalidade por doenças crônico-degenerativas não veio acompanhado pelo desaparecimento das doenças infecciosas, que ainda acometem (e em maior intensidade) as populações nativas se comparadas às não-indígenas.

Como já aludido, um dos aspectos mais interessantes do livro diz respeito ao exercício comparativo entre a trajetória epidemiológica das populações nativas da América do Norte vis-à-vis aquela dos não-indígenas. Através desta abordagem Young aponta para as particularidades do quadro epidemiológico dos grupos nativos, que em parte são explicadas por fatores sócio-econômicos. Por exemplo, renda per capita, nível sócio-econômico, condição de moradia e escolaridade dos indígenas são mais baixos que aqueles dos não-indígenas. Apesar destes diferenciais, houve uma acentuada queda na mortalidade infantil das crianças indígenas da América do Norte ao longo das últimas décadas, quase que convergindo com as taxas para o segmento não-indígena na segunda metade da década de 80. Não obstante, permanecem bastante distintos os perfis de mortalidade geral, com os indígenas comparativamente morrendo mais de doenças infecciosas e de acidentes e menos de neoplasmas e doenças do aparelho circulatório. Este tipo de abordagem comparativa, de grande importância para se compreender o quadro geral de saúde de populações indígenas por estar atrelada a uma perspectiva processual, deveria estar sendo mais exercitada no Brasil.

Young questiona em vários momentos a noção, segundo ele bastante disseminada no campo da saúde pública no Canadá e nos E.U.A., das sociedades indígenas como "homogêneas". A propósito, o mesmo se verifica no Brasil. Os dados apresentados no livro demonstram que é bastante diverso o perfil epidemiológico dos grupos indígenas da América do Norte, o que lança dúvidas acerca da validade de estatísticas agregadas para uma dada macro-região e, mais ainda, para um país como um todo. Apesar de estar atento para esta dimensão, Young não explora de maneira aprofundada a questão da diversidade do perfil epidemiológico intra grupos indígenas, o que decorre sobretudo da carência de bases de dados a partir das quais tais comparações poderiam ser efetuadas.

Capítulo particularmente interessante é o que trata do que Young denomina de "patologias sociais". Nele são contempladas diversas temáticas específicas, tais como acidentes (principalmente os automobilísticos), suicídio, homicídio, violência e, finalmente, alcoolismo. Young apresenta uma farta bibliografia que indica incontestavelmente que estas são causas de morbi-mortalidade importantíssimas nas populações indígenas do Canadá e dos Estados Unidos. Em homens jovens, por exemplo, entre 25-40% da morbi-mortalidade (a depender do grupo) está direta ou indiretamente relacionada a acidentes e à violência. A análise apresentada neste capítulo é particularmente informativa para aqueles que trabalham com saúde indígena no Brasil, pois demonstra a magnitude e impacto que estes fatores podem alcançar em sociedades indígenas, sobretudo naquelas atravessando intensos processos de mudança. Apesar de sabermos que estes são problemas que atingem as populações indígenas cada vez em maiores proporções também no Brasil (vide CIMI/ CNBB 1996), as discussões ainda têm privilegiado mais um enfoque descritivo que analítico.

O último capítulo, intitulado "Em direção a uma Epidemiologia Biocultural", é de certo modo um anti-clímax. Isto porque Young disserta sobre a importância de uma melhor integração entre epidemiologia e ciências sociais (e antropologia, em particular), argumentação que, além de receber um tratamento teórico superficial, pouco acrescenta a uma discussão que já alcançou um nível de sofisticação bem maior em outros círculos (vide Johnson & Sargent, 1990). Melhor teria sido se Young houvesse explorado em maior profundidade certas outras questões que ele próprio levanta. Vejamos um exemplo: "a epidemiologia tende a pensar em termos de um homem universal, tipificado através do bom burguês de Framingham, Massachusetts! Tal homem universal pode fumar, beber, ganhar peso e sofrer de ataques cardíacos mas, fora isso, é representado como que destituído de cultura. Além disso, dados derivados de estudos conduzidos com base em pessoas (tidas como) culturalmente não-diferenciadas são então considerados como aplicáveis em outras regiões, a menos que se prove o contrário. Assim, os norte-americanos brancos tornam-se o 'padrão'. Negros, hispânicos, as sociedades ameríndias e diversas outras populações ao redor do mundo tornam-se grupos 'especiais'" (p. 223). Esta crítica às formas através da qual a epidemiologia identifica e passa a trabalhar com certos segmentos sociais como a corporificação da "norma" (e utiliza como exemplo o famoso estudo epidemiológico realizado na cidade de Framingham) é contundente e mereceria tratamento mais pormenorizado. Os dados acerca dos perfis de saúde/ doença das sociedades ameríndias constituem um material particularmente rico a partir do qual se pode erigir uma argumentação crítica sobre esta tendência de homogeneização em epidemiologia.

Em conclusão, o livro de T.K. Young é inquestionavelmente uma importante contribuição à literatura sobre saúde de populações nativas. No geral, é uma combinação particularmente bem articulada de apresentação de dados com discussão teórica. Apesar da especificidade geográfica, trata-se de uma leitura importante para os interessados em saúde de populações indígenas no Brasil. Por mais diferente que seja a realidade sócio-econômica e cultural dos povos indígenas da parte norte do continente americano, são inúmeros os paralelos que podem ser traçados com a situação indígena aqui no Brasil, ao sul do continente. A validade da afirmação de Young de que "o quadro geral de precárias condições de saúde das sociedades ameríndias é bem conhecido e tem sido demonstrado em muitas investigações e em estatísticas oficiais" (p. 216) transcende as fronteiras geográficas de seu estudo, possivelmente podendo ser generalizada para todo o continente americano.

 

Ricardo Ventura Santos

Departamento de Endemias, ENSP/FIOCRUZ e Departamento de Antropologia, Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro

 

CIMI/ CNBB, 1996. A Violência contra os Povos Indígenas no Brasil 1994-1995. Brasília: CIMI.

JOHNSON, T.M. & SARGENT, C.F. (orgs.), 1990. Medical Anthropology: Contemporary Theory and Method. New York: Praeger.

SANTOS, R.V. & COIMBRA Jr., C.E.A. (orgs.), 1994. Saúde e Povos Indígenas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

 

 

PROFISSÕES DE SAÚDE: UMA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA. M. H. Machado (org.) Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 1995. 194 pp.

ISBN 85-85676-17-5

 

Ao tratar de políticas públicas, quando pensamos a relação Estado/Sociedade no Brasil, costumo referir-me a um capítulo de um livro já antigo de Paulo Freire, intitulado "Sociedade fechada e inexperiência democrática". Estão ali descritas as origens de nossa formação social, colonial e escravocrata. Sem retroceder a essas bases, é difícil compreender as características de uma relativa impermeabilidade do Estado brasileiro às demandas populares e às dificuldades que os sujeitos sociais têm para articulá-las. Pois bem, é impossível não traçar um paralelo com a importância da coletânea sobre as profissões da saúde organizada por Maria Helena Machado, para uma melhor compreensão da organização e do funcionamento desses serviços. Parágrafo a história, a trajetória, os movimentos e as mutações por que passaram, e passam, as principais profissões do setor são essenciais não apenas por compreender a conformação dos sistemas de saúde mas também suas atuais tendências de reorganização.

Assim, como entender o papel central que o clínico geral (o famoso "GP/General Parctionner") sempre tem no serviço nacional de saúde inglês? Ou então, como explicar o aparente paradoxo entre uma forte intervenção estatal para garantir a atenção médica e a preservação de um modelo de prática liberal no sistema francês? Os capítulos intitulados "Físicas, sectários e charlatões: a medicina em perspectiva histórico-comparada" e "A evolução das relações entre os médicos franceses e o Estado de 1880 a 1980", escritos por Edmundo Campos Coelho e Claudine Heizlich, esclarecem de forma magistral esta e outras questões. São as grandes transformações sócio-econômicas das sociedades ocidentais do final do séc. XIX, o fio condutor que permite identificar aspectos convergentes em processos tão diversos, mas são extamanente narrativas desse tipo que permitem compreender suas divergências e especificidades.

Estes e os demais capítulos são procedidos por uma síntese teórica das discussões básicas em sociologia das profissões, feito com competência pela própria Maria Helena, enfocando questões tais como, o conceito de profissão, processo de profissionalização, autonomia, mercado de trabalho, relações com o Estado. Os diversos autores retomam essas questões, através de casos concretos, mostrando numa perspectiva internacional comparada, aspectos do desenvolvimento das profissões de saúde na Inglaterra, Estados Unidos, França, México e no Brasil. Os capítulos de Gustavo Nigenda, "Associaciones médicas y política corporativista in México: apuntes sobre alguns câmbios recentes" e de Pedro Miguel dos Santos sobre "A profissão médica no Brasil", são complementares na medida em que chamam a atenção para as tendências nas relações entre mercado, corporação médica e Estado. Essa temática tem sido central nas reformas neo-liberais dos sistemas de saúde dos países centrais.

O trabalho de Pedro Miguel restringe-se à conjuntura pernambucana muito embora suas conclusões "áureo da crescente especialização, perda de autonomia e tendência à proletarização da profissão médica", sejam provavelmente válidas para todo o país. Valeria a pena para o autor, avaliar a possibilidade de incorporar em seu trabalho alguns elementos levantados por Madel Luz em seu livro intitulado "Medicina e ordem política".

Os demais capítulos caracterizam-se pela originalidade das temáticas. Sérgio Rego aborda o ensino médico por um ângulo fundamental e inteiramente novo: o processo de socialização profissional na medicina, este processo é enfocado pelo estudo do ensino prático através de estágios extra-curriculares nos serviços, procurados pelos estudantes para viverem uma verdadeira experiência e consolidarem seu "eu-profissional".

Conclui, alertando para a necessidade de uma maior interação entre as Universidades e os serviços e que, pelo menos no campo formal dos princípios da Constituíção, compete ao Sistema Único de saúde ­ SUS, a ordenação dos recursos humanos. Vale a pena ressaltar que apesar de muitos esforços para estimular a famosa integração docente-assistencial, através da criação de projeto, Redes e realização de encontros, houve no plano prático um certo retrocesso na época das Ações Integradas de Saúde/AIS (estratégia para implementação do SUS); estava prevista a participação da Universidade, nas Comissões Internacionais de Saúde/CIS de cada Estado, enquanto representante do Ministério da Educação. Se a participação já era tímida, perdeu-se totalmente ao longo do processo de institucionalização do SUS, onde nas atuais Comissões gestoras bi-partides, encontram-se representados somente o Estado e os municípios.

Os capítulos que se seguem são escritos por Soraya Belisário tratando de compreender a figura do médico sanitarista, por Maria Ruth dos Santos sobre a profissionalização do farmacêutico no Brasil e em alguns países e, por Maria Teixar, Maria Helena Machado, Maria Vieira e Sérgio Rego, áurea da profissionalização em odontologia.

Além do mérito pela inexistência de trabalhos dessa ordem, levantam questões importantíssimas para a "saúde" do SUS tais como, a inexistência de um controle rígido para abertura de farmácias gerando um comércio que extrapolado com muito, nos grandes centros urbanos, os parâmetros previstos pela Organização Mundial da Saúde (1 para cada 8000/ 10000 habitantes).

Finalmente, o capítulo de Maria Consuelo Agudelo traz elementos complementares para a discussão já em curso do processo de trabalho em enfermagem. E, para aqueles que apreciam a história, a leitura da transcrição de uma Conferência realizada por Lycuryo de Castro Santos Filho, na Fundação Oswaldo Cruz em 1992, é imperdível. Com uma naturalidade que só um estudioso muito familiarizado com o tema pode ter, o autor descreve aspectos de medicina brasileira, contando "causos" pitorescos, dignos de uma boa roda de chimarrão. Vale a pena não deixar passar na próxima edição, alguns erros de revisão, nesse caso, por exemplo, o nome do descobridor do bacilo da tuberculose. É um detalhe insignificante, por uma excelente coletânea.

 

Eleonor Minho Conill

Profª Adjunto do Departamento de Saúde Pública Universidade Federal de Santa Catarina

 

 

OUTCOME-BASED EVALUATION R. L. Schalock. New York: Plenum Press, 1995, 242 pp.

ISBN 0-306-45051-8

 

O livro caracteriza-se centralmente como um guia metodológico para avaliações de intervenções com base nos resultados observados nos indivíduos-alvo. O autor, do Hastings College e do Mid-Nebraska Mental Retardation Services, sistematiza um modelo de avaliação para programas sociais e de educação voltados para a reabilitação em sentido amplo e melhoria da qualidade de vida de pessoas com incapacidades ou deficiências mentais. Este recorte do objeto de avaliação leva a uma definição de resultados assentada na noção de "performance-based assessment". Com isso, os resultados esperados do programa a serem avaliados delimitam-se em dois tipos: 1) indicadores objetivos do nível de comportamento adaptativo ("person's adaptive behavior level"), como o autocuidado e a auto-suficiência econômica, por exemplo e 2) status social normativo para uma específica faixa etária ("role status"), como, para o jovem, a presença na escola, ou o trabalho na comunidade para o adulto, por exemplo.

O texto é dividido em quatro partes. As duas primeiras definem o objeto, os objetivos e três tipos gerais de avaliação baseada nos resultados: a avaliação de efetividade (extensão com a qual o programa atingiu seus objetivos); a avaliação do impacto (diferença atingida entre o programa e uma alternativa, ou o "não-programa") e a avaliação de custo-benefício (peso dos benefícios diante dos custos). A terceira parte discute a coleta, o controle e a análise de dados em vários desenhos metodológicos. A quarta parte aborda a questão da relação da avaliação com o planejamento e a administração dos programas. A parte final repõe os objetivos iniciais do livro e tece considerações sobre as tendências futuras da prática da avaliação de programas em um contexto caracterizado pelo autor como a "era da accountability".

A apresentação é bastante didática, utiliza muitos exemplos, quadros explicativos e "roteiros" para estudo, tornando a leitura fluente e agradável. Esta característica colabora para que o livro, além de sua imediata contribuição para intervenções na área da saúde mental, possa ser aproveitado também na discussão da avaliação de programas em geral. De fato, em que pesem o recorte específico do objeto de avaliação e o limite na definição de "resultados avaliáveis", toda a construção teórico-metodológica que se percebe no texto dialoga com várias das questões mais importantes e atuais da rica produção norte-americana em avaliação de programas. Tomando o livro neste sentido mais geral, pode-se afirmar serem seus principais pontos positivos: 1) o esforço para construir uma aproximação metodológica múltipla; 2) a clareza tanto na explicação dos passos aconselháveis para a avaliação nas várias metodologias, quanto na discussão dos limites e "perigos" de cada uma delas; 3) a ênfase na necessidade da integração efetiva entre a avaliação e o planejamento/gestão de programas e o cuidado em resumir pontos-chave para o sucesso desta integração.

Por outro lado, é preciso lembrar que se trata de um livro exclusivamente dedicado à avaliação de resultados esperados e referidos a indivíduos-alvo de programas bem-estabelecidos e conduzidos segundo as normas previstas. Sua abordagem avaliatória não dialoga, portanto, com pelo menos duas situações bastante freqüentes na prática de avaliação nas quais: 1) os resultados esperados do programa têm múltiplas naturezas e/ou são parcialmente nebulosos e/ou são dificilmente mensuráveis; 2) a operação do programa é normativamente nebulosa e/ou sua operação concreta está distante da estabelecida.

Entendendo estes limites, o livro pode ser visto tanto como um guia didático para avaliações de resultados esperados de programas de intervenção, quanto como uma importante contribuição para o debate teórico-metodológico acerca da avaliação de programas sociais em geral e de saúde em particular, infelizmente ainda pouco desenvolvido no Brasil.

 

Maria Ines Baptistella Nemes

Departamento de Medicina Preventiva; Centro de Saúde Escola Samuel Pessoa; Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br