ARTIGO ARTICLE
Elaine Tomasi 1 | As mães e suas gestações: comparação de duas coortes de base populacional no Sul do Brasil Mothers and their pregnancies: a comparison of two population-based cohorts in southern Brazil |
1 Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Pelotas. C.P. 464, Pelotas, RS 96001-970, Brasil. | Abstract The study of two birth cohorts in Pelotas (Southern Brazil) in the years 1982 and 1993 allowed for a comparison of maternal characteristics, including biological, socioeconomic, demographic, and reproductive variables. All women living in urban Pelotas and giving birth in the city maternity hospitals were interviewed with a structured questionnaire. There were 6,011 births in 1982 and 5,304 in 1993. Women in the 1993 cohort were of a higher socioeconomic status (as measured by familiy income and years of schooling). They were also significantly taller and heavier than mothers giving birth in 1982. Mean parity did not differ for the two groups, but in 1993 there were fewer primiparae and more women with four or more children. The birth interval was also significantly greater in 1993; one possible reason (in addition to more frequent use of contraceptives) was an increase in the number of previous abortions observed in 1993 as compared to 1982. Key words Maternal Health; Fertility; Contraception; Abortion Resumo Através de duas coortes de nascimentos ocorridos em Pelotas, Rio Grande do Sul, nos anos de 1982 e 1993, uma série de características maternas foram comparadas, incluindo-se as sócio-econômicas, biológicas e reprodutivas. Todas as mulheres que deram à luz nas maternidades da cidade e que residiam na zona urbana foram entrevistadas ainda no hospital através de questionários padronizados e pré-codificados, totalizando 6.011 em 1982 e 5.304 em 1993. As mulheres que tiveram filhos em 1993 apresentaram um perfil bastante diferenciado das mulheres que tiveram filhos em 1982. As mães em 1993 viviam sob melhor situação sócio-econômica, expressa em maior renda familiar e maior escolaridade. Além disso, tinham altura e peso inicial significativamente maiores do que as de 1982. O número médio de filhos tidos não foi diferente, apesar de ter diminuído a proporção de primíparas e ter aumentado a proporção de mulheres com quatro ou mais filhos. Houve um maior espaçamento entre os partos em 1993 e uma possível razão para esta diferença, além do maior uso de contraceptivos, foi a maior ocorrência de abortos prévios em 1993 do que em 1982. |
Introdução
Em 1982, todos os 6.011 nascimentos ocorridos na cidade de Pelotas, RS, foram monitorados e as mães foram entrevistadas ainda nas maternidades. Nesta ocasião, uma série de informações foram coletadas, incluindo variáveis demográficas, biológicas, sócio-econômicas e reprodutivas. Este estudo perinatal subsidiou a realização de um estudo de coorte, cujos resultados principais já se encontram publicados (Victora et al., 1989; Barros et al., 1987; Barros et al., 1984; Barros et al., 1987).
Onze anos depois, com o objetivo de avaliar possíveis mudanças nos indicadores de saúde materno-infantil à luz de transformações sociais e do setor saúde local, realizou-se novo estudo perinatal, desta vez entrevistando todas as mulheres das quais nasceram 5.304 crianças residentes na zona urbana de Pelotas.
Este artigo trata especificamente da comparação das características maternas entre 1982 e 1993 e tenta traçar um perfil destas mulheres. Este perfil certamente contribuirá para o entendimento mais amplo das modificações ocorridas na saúde materno-infantil nesta última década, as quais encontram-se descritas nos demais artigos desta publicação.
Metodologia
Os procedimentos metodológicos do estudo de 1993 e seus principais resultados estão descritos em publicações recentes (Victora et al., 1996; Victora et al., 1996). Como o presente artigo trata de informações selecionadas - características maternas -, cabe destacar a operacionalização das variáveis utilizadas e os métodos de análise utilizados.
Utilizou-se a renda familiar em salários mínimos, recebida no mês anterior ao nascimento da criança. A escolaridade foi medida em anos completos de escola e a presença de marido ou companheiro referia-se à situação da mulher por ocasião do parto.
A cor da mãe era classificada pelos entrevistadores com base em sua observação. As informações sobre a antropometria materna vieram de duas fontes: o peso no início da gravidez era transcrito do cartão de gestante, quando disponível, ou baseado em informação da própria mãe; o peso final e a altura eram obtidos na maternidade, antes do parto.
O intervalo interpartal foi calculado como a diferença de tempo entre aquele parto e o anterior, excetuando-se as primíparas. Nas variáveis de história reprodutiva, considerou-se um ou mais eventos de aborto, natimorto, nascido com peso inferior a 2.500g e nascido por cesariana.
Para as variáveis quantitativas, analisaram-se as diferenças entre as médias, através do teste-F, realizado com o pacote estatístico SPSS 6.0 for Windows. Com este mesmo programa, realizaram-se os testes de Qui-Quadrado para testar as diferenças entre proporções, caso das variáveis qualitativas/categóricas.
Resultados
Em 1993, nasceram 5.304 crianças em Pelotas, uma redução de 12% (707) frente aos 6.011 nascimentos de 1982, e esta redução foi diferenciada entre os grupos de renda. Em 1982, havia 70% de famílias com renda inferior a três salários mínimos e, em 1993, esta proporção caiu para 61%. Grande parte desta diferença traduziu-se na maior proporção de mães no grupo de três a seis salários em 1993 - 23% contra 18% em 1982 (Tabela 1).
A escolaridade média das mães de 1993 (6,7 anos) foi superior à das mães de 1982 (6,4 anos). Este aumento parece ter sido devido principalmente a uma redução da proporção de analfabetas e a um aumento no grupo de cinco a oito anos completos de escola, já que, a partir do segundo grau, não houve diferenças (Tabela 1).
Outra mudança marcante entre as mães de 1982 e as de 1993 foi observada em relação à presença de marido ou companheiro por ocasião do nascimento de suas crianças. A proporção de mulheres chefes de família cresceu de 8,2% em 1982 para 12,3% em 1993 (Tabela 1).
Em razão destas diferenças, as demais características maternas apresentadas neste artigo serão analisadas conforme a renda familiar, uma vez que este indicador tem se mostrado mais potente na explicação dos diferenciais de saúde da população, além de estar fortemente associado com escolaridade e presença do marido ou companheiro.
Não houve diferenças entre as médias de idade materna nos anos estudados, embora tenha se observado uma maior proporção de mães adolescentes em 1993 e um pequeno acréscimo na proporção de mães entre 30 e 39 anos (Tabela 2). Assim como em 1982, em 1993 registrou-se uma tendência linear ao aumento da idade materna com o aumento da renda familiar.
Nas duas populações, a grande maioria das mães era de cor branca. Entretanto, em 1993 observou-se uma maior proporção de mães de cor negra - 22,7% - do que em 1982 - 17,9% (Tabela 2). A exemplo de 11 anos antes, também em 1993 evidenciou-se uma forte associação de cor com a renda familiar, concentrando-se as mães de cor negra nos grupos de renda mais baixa.
Uma das mais fortes diferenças entre os dois grupos de mães foi em relação a sua altura. Os dados indicaram que as mães de 1993 eram significativamente mais altas do que as de 1982 - 160 cm e 156 cm, respectivamente (Tabela 3). No que se refere à renda familiar, não houve diferença entre os dois grupos de mulheres na tendência a maiores alturas com o aumento da renda. De acordo com os dados médios, a proporção de mães com altura inferior a 150 cm caiu drasticamente, de 11% para 5%, em todos os grupos de renda, mantendo a associação observada em 1982.
Assim como a altura, os pesos maternos no início e no final da gestação foram maiores em 1993 do que em 1982 (58,2 kg contra 55,7 kg e 69,9 kg contra 67,6 kg, respectivamente) (Tabela 3). A queda mais acentuada esteve na proporção de mulheres com peso pré-gestacional inferior a 50 kg, passando de 28% para 16%. Os dados revelaram a mesma tendência ao aumento do peso materno com o aumento da renda observada em relação à altura.
O ganho de peso durante a gestação não se mostrou diferente entre os dois grupos (Tabela 3), mas os diferenciais por renda mantiveram-se coerentes, com as mães dos grupos de renda mais baixa ganhando significativamente menos peso do que as de renda mais alta. Se for considerado o ganho de peso maior ou igual a nove quilos como limite aceitável, vemos que igualmente não houve variação.
O hábito de fumar durante a gravidez foi mantido por um terço das mulheres que tiveram filhos em 1993, registrando-se um pequeno declínio nesta proporção em relação a 1982: 33,4% contra 35,6%, respectivamente. A análise deste dado conforme a renda familiar não apresentou nenhuma alteração com os dados de 1982, pois continuou evidenciando maiores proporções de fumantes entre as mulheres de renda mais baixa (Tabela 2).
Embora o número médio de filhos das mulheres de 1982 e 1993 não tenha se alterado, observou-se que a proporção de primíparas diminuiu - 39,2% para 35,2% - e que a proporção de mães com quatro ou mais filhos aumentou de 9,2% para 11,4% (Tabela 4). Os dados revelam também que, em 1982, a maior proporção de primíparas pertencia ao grupo de renda entre três e seis salários mínimos; em 1993, a maior proporção de primíparas esteve entre o grupo de seis a dez salários mensais.
Importantes diferenças foram registradas no que se refere ao tempo transcorrido entre aquela e a última gravidez. O intervalo interpartal, calculado excluindo-se as primíparas, é reconhecido como um sensível indicador de saúde materno-infantil. Os dados revelaram que, no período estudado, caiu pela metade a proporção de mães com intervalo inferior a 24 meses entre as gestações, período no qual o risco de morbi-mortalidade infantil é aumentado (Tabela 4). Os grupos intermediários não apresentaram alterações e no outro extremo, com intervalos iguais ou superiores a 48 meses, registrou-se um aumento de 58%.
Com exceção dos filhos prévios nascidos mortos, as demais variáveis investigadas revelaram um aumento significativo nas proporções de abortos, nascimentos de baixo peso e ocorrência de partos por cesariana.
Discussão
Pode-se garantir a comparabilidade das duas populações pela coordenação de ambos os estudos pela mesma equipe e sob o mesmo rigor metodológico. O principal ponto a destacar é que houve importantes alterações nos perfis das mulheres que tiveram filhos em Pelotas, nos anos estudados. A principal alteração diz respeito à queda da fertilidade, notadamente entre as mulheres de mais baixa renda.
Registraram-se importantes diferenças de renda entre os dois grupos: em 1993, as mães viviam sob melhores condições de renda familiar, além de apresentarem escolaridade mais elevada.
Encontrou-se também uma maior proporção de mães negras e de mães sem marido ou companheiro por ocasião do nascimento de seus filhos.
Chamou bastante a atenção o fato de que, em 1993, as mães eram mais altas e iniciaram a gestação com mais peso do que em 1982. Conseqüentemente, seu peso final igualmente foi maior, não tendo sido observadas diferenças no ganho de peso. As diferenças de altura talvez possam ser, em parte, explicadas pela tendência secular ao crescimento (Victora et al., 1989). Também não houve grandes diferenças em relação à paridade e à proporção de primíparas nas amostras. Entretanto, o intervalo interpartal mostrou-se muito diferente, o que pode ser explicado, parcialmente, pela maior ocorrência de abortos prévios entre as mulheres de 1993.
Assim, as variações encontradas entre os dois grupos apontam para um perfil bastante diferenciado entre as mulheres que tiveram filhos em Pelotas nos anos de 1982 e 1993. Tais diferenças devem ser consideradas na interpretação das alterações observadas nos indicadores de saúde infantil apresentadas nesta publicação e certamente subsidiarão o entendimento da transição da saúde local na última década.
Referências
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VICTORA, C. G.; BARROS, F. C.; TOMASI, E.; MENEZES, A. M.; HORTA, B. L.; WEIDERPASS, E.; CESAR, J. A.; COSTA, J. S. D.; OLINTO, M. T.; HALPERN, R.; GARCIA, M. M. & VAUGHAN, J.P., 1996. Tendências e diferenciais na saúde materno-infantil: delineamento e metodologia das coortes de 1982 e 1993 de mães e crianças de Pelotas, RS. Cadernos de Saúde Pública, 12(supl. 1):7-14.
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