ARTIGO ARTICLE

 

 

 

 

 

 

Cora L. Post 1
Cesar G. Victora 1
Fernando C. Barros 1
Bernardo L. Horta 1
Paula R. V. Guimarães 2


Desnutrição e obesidade infantis em duas coortes de base populacional no Sul do Brasil: tendências e diferenciais

Infant malnutrition and obesity in two population-based birth cohort studies in southern Brazil: trends and differences

1 Departamentos de Nutrição e Medicina Social, Universidade Federal de Pelotas, C.P. 464, Pelotas, RS 96001-970, Brasil.
2 Prefeitura Municipal de Crisciúma, SC.
Rua Domênico Sônego, 542, Crisciúma, SC, 88804-050.
  Abstract Prevalence of anthropometric deficits and of obesity were studied in two population-based birth cohort studies in the city of Pelotas in Southern Brazil, in 1982 and 1993. All hospital delivered babies in each one-year period were identified, and samples of approximately 20% were visited at home at around 12 months of age, totalling 1,449 children submitted to anthropometric examination in 1982 and 1,359 in 1993. Losses and refusals accounted for 20% of the children in 1982 and 7% in 1993. In this 11-year period, prevalence of weight/age deficits (below -2 standard deviations of the NCHS reference) fell from 5.4% to 3.8%, while that of weight/height dropped from 1.3% to 0.8%. Height/age deficits increased slightly, from 5.3% to 6.1%, while the proportion of obese children increased from 4.0% to 6.7%. The increase in weight at 12 months was due to a more rapid weight gain in the first year, since birthweights remained unchanged. About 10% of the children from the lowest income group had weight/age or height/age deficits, compared to 3% or less of those with a high family income. On the other hand, obesity showed a direct association with income, except for the wealthiest group, where the prevalence dropped, possibly due to concern among these families about the consequences of infant obesity.
Key words Child Nutrition Disorders; Obesity; Anthropometry; Birth Weight; Sex  

Resumo Prevalências de déficits antropométricos e de obesidade foram medidas em duas coortes de nascimento de base populacional na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, em 1982 e 1993, quando as crianças tinham cerca de um ano de idade. Identificados todos os nascimentos hospitalares em cada ano, cerca de 20% das crianças foram visitadas e submetidas a exame antropométrico, totalizando 1.449 crianças em 1982 e 1.359 em 1993. Houve 20% de perdas em 1982 e 7% em 1993. Em onze anos, a prevalência de déficit de peso/idade (< -2 desvios-padrão da refe-rência NCHS) caiu de 5,4% para 3,8%, a de peso/comprimento reduziu-se de 1,3% para 0,8%, enquanto que a de comprimento/idade aumentou discretamente (5,3% para 6,1%). A obesidade cresceu de 4,0% para 6,7%. Em 1993 houve um ganho ponderal médio maior, aos 12 meses, do que em 1982, já que o peso ao nascer permaneceu inalterado. Crianças de mais baixa renda apresentam prevalências de cerca de 10% de déficits de peso/idade e comprimento/idade, enquanto que nas categorias de renda superior estes déficits são de 3% ou menos. Os progressos em alguns indicadores, portanto, não lograram eliminar diferenciais sociais. Por outro lado, a obesidade apresentou uma tendência crescente com o nível de renda familiar.
Palavras-chave Distúrbios da Nutrição Infantil; Obesidade; Antropometria; Peso ao Nascer

 

 

Introdução

 

A monitorização regular dos indicadores de saúde e nutrição infantis é essencial para se acompanhar o desenvolvimento sócio-econômico e o impacto das políticas assistenciais (OPS, 1986; Batista Filho & Rissin, 1993). Estudos realizados em nível nacional (IBGE, 1982; INAN/FIBGE/IPEA, 1990), regional (UNICEF, 1995), estadual (UNICEF, 1991) e municipal (Monteiro et al., 1989), mostram tendências decrescentes nas prevalências de déficits nutricionais em nosso meio.

O presente artigo avalia as mudanças nos indicadores antropométricos ocorridos entre 1982 e 1993 na cidade de Pelotas, RS, com um delineamento inédito em nosso país. Em ambos os anos, todas as crianças nascidas nos hospitais da cidade foram estudadas, e amostras das mesmas acompanhadas durante o primeiro ano de vida. O estudo permitiu, portanto, comparar não apenas as prevalências de déficits durante este período de 11 anos, mas também separar o crescimento intra-uterino - expresso pelo peso ao nascer - do extra-uterino, além de evidenciar os diferenciais sócio-econômicos, segundo o gênero e o peso ao nascer.

 

 

Metodologia

 

A metodologia de coleta de dados utilizada em 1982 e 1993 foi similar, permitindo comparações entre os resultados. Ambos os estudos iniciaram com a identificação dos nascimentos hospitalares durante todo o ano - totalizando 6.011 em 1982 e 5.304 em 1993 - e prosseguiram com o acompanhamento de amostras destas crianças. No início de 1983, tentou-se examinar todas as 1.820 crianças nascidas nos meses de janeiro a abril de 1982, sendo colhida uma série de dados antropométricos. A metodologia do estudo de 1982 encontra-se descrita em outras publicações (Victora et al., 1989; Barros et al., 1990).

As crianças estudadas em 1982 encontravam-se com idades entre nove e 15 meses; destas, 787 (54%) estavam na faixa de 11 a 13 meses. Já em 1993, 1.347 (99%) crianças tinham de 11 a 13 meses, sendo que a idade mínima foi de 11 meses, e, com mais de 15 meses, havia apenas cinco crianças.

Em 1993, as cinco maternidades da cidade foram visitadas diariamente entre 1º de janeiro e 31 de dezembro. As mães eram entrevistadas e se obtinha a descrição detalhada de seus endereços para permitir os acompanhamentos posteriores. As crianças foram pesadas pela equipe hospitalar imediatamente após o nascimento, sendo as balanças utilizadas para este fim calibradas semanalmente pela equipe da pesquisa. Durante a entrevista com a mãe, obtiveram-se informações sobre uma série de variáveis, incluindo a renda familiar (soma das rendas das pessoas que residiam no mesmo domicílio e que participavam das despesas domésticas, convertida em salário mínimo).

Acompanhou-se uma amostra das crianças nascidas em 1993 com as idades de um, três, seis e doze meses. Os resultados do presente artigo dizem respeito ao último acompanhamento, que incluiu uma amostra sistemática de cerca de 20% dos nascidos vivos, além de todas as crianças com um peso ao nascer inferior a 2.500 g. A inclusão dessas últimas crianças deveu-se ao desejo de aumentar o poder estatístico no estudo das conseqüências do baixo peso ao nascer. Para este artigo, a amostra foi ponderada para reproduzir a freqüência de baixo peso ao nascer na população geral.

Neste acompanhamento, as mães foram entrevistadas e tomaram-se o peso e o comprimento das crianças. Os entrevistadores (estudantes e profissionais das áreas de Nutrição, Enfermagem e Medicina) utilizaram balança portátil, modelo CMS, tipo Salter, com capacidade de 25 kg e precisão de 100 g, aferida semanalmente com pesos-padrão; o comprimento foi medido na posição supina com infantômetro portátil, modelo AHRTAG, com precisão de 1 mm. Dez por cento das entrevistas foram repetidas pelo supervisor, utilizando uma versão reduzida do questionário.

A avaliação antropométrica foi realizada utilizando-se os indicadores comprimento para idade, peso para idade e peso para comprimento. Para identificar crianças com déficit, utilizaram-se como ponto de corte dois desvios-padrão abaixo da mediana da referência norte-americana do National Center for Health Statistics (NCHS, 1977). Para determinar obesidade, o ponto de corte foi igual a dois desvios-padrão acima da mediana de peso para comprimento. O ganho de peso no primeiro ano foi calculado através da diferença entre o peso aos 12 meses de idade e ao nascer.

Os testes estatísticos utilizados (Qui-Quadrado para heterogeneidade e para tendência linear) indicam a probabilidade de que as diferenças encontradas entre as categorias das variáveis independentes, em 1982 ou em 1993, sejam devidas ao acaso. Quando a variável ordinal possuía mais de duas categorias, os valores representavam a significância da tendência linear nas proporções.

 

 

Resultados

 

Em 1982, foi possível localizar 82,3% da amostra de 1.820 crianças, com a idade média de 11,2 meses (desvio-padrão 1,3 meses). Em 1993 as perdas foram reduzidas a 6,6%, sendo a idade média das crianças 12,2 meses (desvio-padrão 0,5 meses). Uma vez que os escores-z já levam em conta a idade das crianças, as eventuais diferenças entre as idades médias e os desvios-padrão não devem afetar as comparações no que se refere ao estado nutricional.

Os números de crianças estudadas com média de idade de aproximadamente um ano em cada coorte encontram-se na Tabela 1, discriminadas conforme o gênero, a renda familiar e o peso ao nascer.

 

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Em 1993, as prevalências de déficits antropométricos foram de 6,1% de comprimento/idade, 3,7% para peso/idade e 0,9% para peso/comprimento. A comparação destas prevalências com aquelas das crianças nascidas em 1982, apresentadas na Tabela 2, mostra uma discreta elevação no déficit comprimento/idade, embora esta diferença não seja estatisticamente significativa. Por outro lado, as prevalências dos outros dois indicadores caíram praticamente pela metade, sendo que apenas a diferença na relação peso/idade apresentou diferença estatisticamente significativa (p=0,02). A freqüência de obesidade teve um aumento de cerca de 40% na década, passando de 4,0% para 6,7% (p<0,001). As Figuras 1-3 mostram a distribuição dos escores-z de comprimento/idade, peso/idade e peso/comprimento para as crianças nascidas das duas coortes, assim como alguns parâmetros destas curvas.

 

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O ganho médio de peso nos primeiros 12 meses de vida aumentou de 6.101 g (desvio-padrão = 1.131 g) em 1982 para 6.706 g (DP = 1.200 g) em 1993. Embora, em ambas as coortes, os meninos ganhassem cerca de 450 g a mais do que as meninas durante o primeiro ano, o aumento na média de ganho de peso durante a década foi similar para ambos os sexos.

Na Tabela 3, observa-se que os meninos tenderam a apresentar maiores prevalências de déficits do que as meninas. As tendências nestas prevalências durante a década, no entanto, foram semelhantes em ambos os gêneros. As prevalências de obesidade entre meninos e meninas foram de 4,3% e 3,6% em 1982 e 6,7% para ambos os sexos em 1993.

 

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Tal como ocorreu em 1982, observou-se em 1993 uma forte associação linear inversa entre as prevalências dos déficits antropométricos e a renda familiar, exceto para peso/comprimento (Tabela 4). Na faixa de menor renda (um salário mínimo mensal ou menos), observa-se redução nas freqüências de déficits para os três indicadores, mas estes permanecem, em 1993, substancialmente mais altos do que para as demais categorias, com exceção do peso/comprimento.

 

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Devido ao menor número de crianças nas duas últimas categorias de renda, em relação às demais, foram reunidos os três grupos de mais alta renda familiar. Obtiveram-se, assim, para 1982, prevalências de 2,8% para comprimento/idade, 0,9% para peso/idade e 0,2% para peso/comprimento. Para 1993, as prevalências são, respectivamente, 2,8%, 1,1% e 1,2%, permanecendo, portanto, praticamente inalteradas na década. Em 1982, as famílias de renda igual ou inferior a um salário mínimo apresentavam 4,5 vezes mais crianças com déficit de comprimento/idade; em 1993, este diferencial caiu ligeiramente para 3,9 vezes. Para peso/idade, o mesmo diferencial reduziu-se de 15,8 para 8,4 vezes, e para peso/comprimento de 14,0 para 1,3 vezes. Estes últimos resultados devem ser analisados com cautela, devido às baixas prevalências, mas em geral os dados apontam para uma discreta redução nos diferenciais sociais.

A Figura 4 mostra que, para todas as categorias de renda, o ganho de peso durante o primeiro ano foi maior em 1993 do que em 1982. Por outro lado, é importante chamar a atenção para as diferentes idades médias das crianças em ambas as coortes. A associação direta entre ganho de peso e renda se manteve em 1993 e 1982.

 

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Em relação à obesidade segundo a renda familiar (Figura 5), observa-se que as prevalências aumentaram durante a década nas quatro primeiras categorias de renda, sendo esta tendência invertida no grupo de renda familiar de 10 salários mínimos ou mais. A associação direta entre obesidade e renda observada em 1982 (p=0,02) desapareceu em 1993 (p=0,6).

 

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Na Tabela 5, observam-se fortes associações inversas entre o peso ao nascer e as prevalências de déficits antropométricos, com exceção para o peso/comprimento em 1993. Entre 1982 e 1993, houve reduções nos déficits antropométricos em quase todas as categorias de peso ao nascer, sendo que, para as crianças nascidas com baixo peso, esta queda foi particularmente importante para os três indicadores.

 

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  * Qui-Quadrado para tendência linear

 

Quanto ao ganho de peso durante o primeiro ano, as crianças nascidas em 1982 com mais de 3.000 g cresceram 370 g a mais do que as nascidas com menos de 2.500 g. Em 1993, esta diferença caiu para 200 g. Comparando as crianças nascidas com baixo peso, as de 1993 ganharam 820 g a mais no primeiro ano do que as de 1982, sendo a diferença de 650 g para as nascidas com 3.000 g ou mais.

A comparação das freqüências de obesidade conforme o peso ao nascer entre 1982 e 1993, mostra um aumento de prevalência para todas as categorias de peso de nascimento (Tabela 6). Tanto em 1982 quanto em 1993, observa-se uma clara tendência linear de elevação nas prevalências conforme aumentam os níveis de peso de nascimento.

 

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Discussão

 

A oportunidade de dispor de dados sobre duas coortes de nascimentos com base populacional é única em nosso país. Não só em 1982, como também em 1993, as coortes incluíram mais de 99% das crianças nascidas na cidade. O índice de perdas de acompanhamento em 1982 foi bastante superior ao de 1993, mas a análise destas perdas mostra que houve pouca variação conforme o nível sócio-econômico (Victora et al., 1996). Em 1982, por exemplo, localizaram-se 81% das crianças do grupo de renda familiar inferior a um salário mínimo, comparadas com 83% daquelas com renda familiar superior a 10 salários. Os respectivos percentuais para 1993 foram de 92% e 96%.

A comparação entre as coortes de 1982 e 1993 mostra um comportamento distinto das prevalências de déficits antropométricos. Enquanto ocorre uma redução de aproximadamente 50% nos déficits de peso/idade (p=0,02) e peso/comprimento (p=0,1) , observa-se uma discreta piora no indicador comprimento/idade (p=0,18) durante a década (Tabela 2). Considerando-se o critério adotado (abaixo de -2 DP para déficit e igual ou superior a +2 DP para excesso), esperar-se-ia que, no máximo, 2,5% de uma população saudável apresentasse tais desvios. Na coorte de 1993, observa-se que o indicador peso/comprimento esteve dentro desta prevalência aceitável, sendo que para peso/idade o déficit foi ligeiramente superior. A prevalência de retardo em termos de comprimento/idade foi cerca de duas vezes maior do que o esperado, sugerindo um processo de crescimento linear deficiente já aos 12 meses de vida. Este tipo de déficit é caracteristicamente mais acentuado a partir do segundo ano de vida, tendendo a diminuir novamente a partir da idade de três anos (Victora et al., 1989). A possível ausência de progresso no crescimento linear durante a década é algo preocupante, pois questiona se a própria tendência secular de crescimento continuará a ser observada em nosso meio. Entretanto, cabe salientar que esta aparente piora no indicador comprimento/idade (Tabela 2) poderia ser devido ao fato de que as crianças de1993 possuem um mês a mais de idade média em relação àquelas de 1982. Esta hipótese é reforçada quando se observa a Figura 1, que apresenta a distribuição dos escores-z do comprimento ajustados para as idades tanto em 1982 como 1993, evidenciando um nítido deslocamento da curva de 1993 para a direita, sugerindo melhora deste indicador. Além disso, o teste de associação estatística mostra uma diferença significativa (p=0,01) entre as médias de escores-z de 1982 e 1993.

Se comparados com outros estudos brasileiros, no entanto, os valores obtidos em Pelotas são  razoavelmente baixos. Por exemplo, as prevalências de déficit de altura/idade em menores de  cinco anos nos estados nordestinos variaram entre 14% no Rio Grande do Norte e 31% no  Maranhão durante o período de 1987-1992 (UNICEF, 1995). Por outro lado, tal indicador para  o Município de São Paulo apresentou freqüência semelhante ao padrão NCHS para a faixa   etária de um ano (Monteiro, 1988).

A prevalência de déficit de peso/idade (3,7%), em 1993, foi inferior aos valores encontrados   pela Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN) (Monteiro et al., 1993) para a   população brasileira de menores de um ano (6,0%). A substancial redução em relação aos    déficits peso/idade e peso/comprimento, nas coortes de Pelotas, coincide com a tendência   verificada nas duas pesquisas nacionais realizadas em 1974-1975, no Estudo Nacional de    Despesa Familiar (ENDEF), e em 1989, de acordo com análise realizada por Monteiro   (Monteiro et al., 1993), quando a redução na prevalência de déficit peso/idade nesta faixa etária   foi de 47%. Vale notar que, em Pelotas, o aumento de peso/idade tenha se dado a partir de um     maior ganho de peso no primeiro ano de vida, uma vez que o peso ao nascer manteve-se     inalterado durante a década, como mostra artigo incluído no presente suplemento (Horta et al.,   1996, a). Os estudos mencionados acima não puderam discriminar entre o peso ao nascer e o   ganho de peso no primeiro ano devido a sua natureza transversal.

Em termos de peso/comprimento, embora já em 1982 a prevalência (1,3%) fosse inferior ao  esperado, houve uma pequena redução adicional para 0,9% em 1993. Isto está de acordo com  inúmeras outras pesquisas brasileiras que mostram ser este tipo de déficit muito raro em nosso  meio. Na verdade, o achado de uma redução nesta prevalência já inicialmente baixa, juntamente   com a manutenção ou aumento nas taxas de comprimento/idade confirmam a idéia de que os  determinantes do ganho de peso e do crescimento linear sejam - pelo menos em parte - distintos  (Victora, 1992). Por exemplo, é possível que um maior aporte calórico resulte em melhorias na  relação peso/idade, mas que a baixa estatura persista em função de outros fatores limitantes,  como o conteúdo de micronutrientes na dieta.

Em relação a 1982, a vantagem observada em 1993 quanto ao ganho de peso durante o  primeiro ano de vida deve ser analisada considerando-se que em 1993 a média de idade das  crianças foi superior em um mês àquela de 1982. Entretanto, tomando-se para comparação apenas as crianças com 12 meses de idade em ambas as coortes, a diferença entre as médias de ganho ponderal diminui de 605 g (todas as crianças) para 375 g. Com esta análise, poder-se-ia interpretar que em 1993 as crianças tiveram um efetivo ganho médio de peso em relação a 1982. Este fato deve ser levado em conta na interpretação da Figura 4.

A comparação dos dados de 1982 e 1993 mostra que a desnutrição está sendo substituída pela obesidade  como o principal problema nutricional das crianças pelotenses. Isto é motivo para  crescente preocupação, em virtude da associação entre a obesidade infantil e na vida adulta,   com suas conseqüências sobre a incidência de doenças crônico-degenerativas (Bray, 1991).

Em ambas as coortes, houve uma clara relação inversa entre a renda familiar e a prevalência de  déficit (Tabela 4). Tendências similares foram encontradas nos estudos ENDEF e PNSN  (Monteiro et al., 1993), nos quais os 25% mais pobres da população brasileira apresentaram   déficits peso/idade iguais a 30% e 14%, respectivamente, enquanto que o quartil superior  apresentou déficits de 6% e 1%. Os importantes diferenciais sociais foram confirmados nos estados nordestinos (UNICEF, 1995) e no Município de São Paulo (Monteiro, 1988).

As prevalências de déficit nos três grupos de maior renda familiar (superior a três salários  mínimos), em ambos os anos, foram de 2,8% ou menos, evidenciando que estes grupos já  haviam alcançado, em 1982, a população norte-americana, em que se baseia a referência  NCHS. Assim, progressos adicionais neste grupo são pouco prováveis. Por este motivo, os  diferenciais entre os mais pobres e os mais ricos tenderam a reduzir-se discretamente durante a   década, uma vez que houve alguma melhora entre os grupos de menor renda. No entanto, os  déficits de peso/idade e comprimento/idade entre crianças de famílias recebendo até um salário  mínimo permanecem em torno de 10%, um índice inaceitável, em função do nível de  desenvolvimento da região e da prevalência global observada na cidade. Embora a associação  entre nível sócio-econômico e desnutrição esteja amplamente documentada, é necessário  continuar a demonstrá-la enquanto persistirem tais diferenciais, provando que a mera redução   global nas prevalências de déficit não leva automaticamente à eliminação das diferenças sociais.

A relação entre obesidade e renda familiar, por outro lado, ocorre em sentido inverso, sendo que as prevalências aumentaram com a renda e, dentro de cada grupo de renda, foram maiores em 1993 do que em 1982. A exceção foi o grupo com renda superior a 10 salários mínimos, o qual, em 1982, havia apresentado a mais alta prevalência e em 1993 apresentou a mais baixa. Embora o número de crianças nesta faixa de renda seja relativamente pequeno, pode-se especular se esta tendência poderia ser explicada, entre outros fatores, pela maior duração mediana do aleitamento materno neste grupo privilegiado (Horta et al., 1996, b). Outra possível explicação seria um início de conscientização das mães mais ricas, por terem maior acesso às informações sobre saúde e disporem de pediatras particulares, sobre os perigos da obesidade na infância.

Os diferenciais nas prevalências de déficit quanto ao peso ao nascer confirmaram o importante papel do baixo peso como determinante da desnutrição. Os diferenciais no estado nutricional entre as crianças de baixo peso e as demais parecem ter-se reduzido durante a década. Isto se deve ao fato de que, comparativamente a 1982, as crianças de baixo peso nascidas em 1993 ganharam 820 g a mais durante o primeiro ano de vida. Não estão claras quais seriam as razões para tal progresso. Outros artigos no presente suplemento mostram que, durante a década, houve aumento na duração do período de aleitamento, e melhora no saneamento básico, havendo também reduções nas hospitalizações e na mortalidade por diarréia. E é possível que o aumento na duração mediana do aleitamento tenha melhorado as condições nutricionais das crianças, embora exista ampla discussão na literatura sobre a relação entre aleitamento e ganho de peso no primeiro ano de vida (WHO, 1995). Por outro lado, tanto a amamentação quanto as melhorias observadas no saneamento básico podem ter contribuído para reduzir a incidência de diarréia severa, doença que afeta marcadamente o crescimento infantil (Victora et al., 1990).

Crianças nascidas com peso igual ou superior a 3.000 g apresentam risco quase três vezes superior de serem obesas aos 12 meses de vida do que aquelas nascidas com baixo peso. Estas crianças merecem, portanto, especial atenção dos serviços de saúde para a prevenção da obesidade. Chama a atenção o fato de que em 1982 não houve nenhum caso de obesidade aos 12 meses entre os nascidos de baixo peso, enquanto que em 1993 esta prevalência atingiu 3%.

A comparação das duas coortes de nascimento mostra resultados paradoxais em termos de estado nutricional: houve melhora em termos de déficit de peso, o déficit de altura não apresentou evidência de alteração e pioraram os índices de obesidade. As razões para o possível estacionamento nas prevalências de baixa estatura precisam ser mais bem investigadas, e a tendência crescente na obesidade infantil deve passar a ser motivo de intervenção pelos profissionais de saúde. Os diferenciais sociais, que se mantiveram durante a década, propiciam uma reflexão sobre o modelo de desenvolvimento seguido pelo país, e enfatizam aos profissionais de saúde que, embora os níveis globais de déficits antropométricos possam ser relativamente baixos, existem subgrupos populacionais onde o problema da desnutrição permanece presente.

 

 

Referências

 

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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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