DEBATE DEBATE

 

 

 

 

 

Madel T. Luz

Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.


Debate sobre o artigo de Gil Sevalho

Debate on the paper by Gil Sevalho

 


A preocupação do artigo de Sevalho é ­ como o autor declara desde o início ­ o tempo. A confrontação de três tempos (da História, da Física e da Epidemiologia) através de autores paradigmáticos fornece a ocasião para que ele tematize e questione o problema central da racionalidade científica moderna, manifesta ainda atualmente na Epidemiologia: como controlar o tempo, ou mais exatamente, como conceituar um tempo previsível?

À primeira vista esta parece uma questão que não pode ser fundamentada do posto de vista filosófico (epistemológico e ontológico), pois o fato de conceituar de certo modo a dimensão da temporalidade ­ no caso humano, portanto, também dimensão da contingência ­ não significa que se possa de fato mensurá-la conforme a proposta científica da modernidade: criar através da conceituação formal, um tempo controlável, previsível. O que significa criar um tempo potencialmente estático.

O tempo previsível, estático, supõe, por sua vez, o universo, isto é, um mundo finito, ordenado por leis decifráveis segundo um código específico (no caso, a linguagem matemática), portanto um mundo determinado. Sem esta concepção cosmológica, que atravessa a razão clássica e chega aos nossos dias, torna-se impossível compreender porque o tempo foi concebido durante três séculos como unidade de mensuração e previsão por diversas disciplinas científicas, inclusive pela medicina e seus diversos ramos, dos quais a Epidemiologia tornou-se progressivamente um dos mais importantes (Luz, 1988).

Deste ponto de vista, o tempo das ciências naturais, o tempo da prevenção, tornado abstrato através da linguagem matemática, é parte fundamental do paradigma que compõe a racionalidade científica vigente ainda hoje, o qual somente será ultrapassado na medida em que o próprio paradigma que lhe serve de fundamento seja superado (Luz, 1988).

Outro tempo concebido, através de Braudel, é o tempo da história, em que duração e ritmo conferem a esta dimensão da contingência uma plasticidade bem destacada no artigo de Sevalho. Tempos longos, médios, ou curtos, tempos sazonais, que parecem repetir-se, ou tempos eventuais, que se afiguram únicos e irreversíveis, conferem à representação da temporalidade histórica um dinamismo ausente do tempo das ciências naturais, que o autor definiu como tempo da Física. O tempo da História é mais duração do que sucessão de instantes, trajetória de momentos deslocados segundo uma escala de previsão, por isso torna-se possível propor uma dialética da duração ao conjunto das ciências humanas. Mas poderão as ciências naturais ­ sobretudo a Epidemiologia, que se debruça sobre o adoecimento coletivo no perspectiva de nele intervir, controlando a doença no mais curto espaço de tempo possível ­ absorver, como deseja Sevalho, uma concepção do tempo em que a indeterminação do acaso, da liberdade, seja possível? O tempo da intervenção e do controle será compatível com o tempo da dialética da duração, que supõe uma razoável interiorização da subjetividade? Do meu ponto de vista, esses tempos são irreconciliáveis sob uma perspectiva analítica.

Um terceiro tempo definido no artigo é o tempo da Física contemporânea, através da contribuição de Prigogine, muito bem analisada pelo autor. O tempo da Nova Aliança, o tempo Flexa, irreversível, rompe com a concepção mecânica ainda vigente no conjunto das ciências naturais, pois supõe um mundo indeterminado, em expansão rumo à complexidade, um tempo que poderíamos definir como multidimensional por oposição à unidimensionalidade do tempo newtoniano, do tempo previsível. O tempo de Prigogine repõe a noção de Cosmos na macrofísica devido à interação de todos os seres, concebidos como sistemas interativos, inacabados, em constante evolução, portanto, em constante movimento.

Aqui também é muito grande o papel que pode ter a liberdade ­ portanto, a imprevisibilidade ­ ausente do modelo clássico que caracteriza até o momento a Epidemiologia. Não consigo ver esta disciplina adotando tal representação do tempo sem abandonar seu velho paradigma. Uma outra Epidemiologia deveria nascer deste abandono e da adoção do novo modelo, fruto da opção pelos dois tempos propostos por Sevalho. Mas, neste caso, estaríamos ainda diante da disciplina Epidemiologia?

Haveria ainda outro tempo a ser considerado, que gostaria que o autor do presente artigo tivesse analisado. É o tempo da Psicanálise, o tempo dos sujeitos, que é pura duração, que tem seus próprios ritmos. Do meu ponto de vista, não é sem importância para a Epidemiologia examiná-lo, uma vez que sua intervenção se dá sempre sobre sujeitos individuais, embora sua perspectiva seja a de coletividades. Mas os sujeitos não são coleções de indivíduos. São pessoas. A dimensão fundamental que vivem como seres contingentes é a da duração, não a do tempo mecânico. Esta representação de tempo também teria que ser interiorizada pela Epidemiologia se a disciplina se propusesse a flexibilizar "seu tempo".

Finalmente, há um problema básico quando se reflete sobre a questão do tempo. É que não se pode repensá-lo sem levar em conta, simultaneamente, a questão do movimento no seu sentido mais amplo, isto é, o de transformação. O tempo irreversível de Prigogine, assim como os tempos da História e da Psicanálise, supõe uma realidade em movimento, isto é, instável, em constante transformação. Ora, o tempo da Psicanálise presume uma realidade estável, ordenável, em que o movimento, do mesmo modo que o tempo, é previsível, controlável. Tempo e movimento são irmãos gêmeos na racionalidade clássica mecânica. Romper com a noção do tempo, ou mesmo "abri-la", supõe descerrar a noção de movimento e adotar a concepção de um mundo sujeito ao caos, imprevisível até certo ponto. Poderá a Epidemiologia abrir mão de uma das suas bases fundamentais, do ponto de vista social e epistemológico, isto é, "ordenar" a sociedade quanto à questão da doença coletiva? Segundo meu ponto de vista, não em uma operação analítica. Nem mesmo sintética, como propõe o autor deste belo artigo. Mas nada impede que o realize em uma operação sincrética, como já o vem fazendo, através da incorporação de contribuições das ciências sociais, tornando possível a coexistência no seu campo, lado a lado, às vezes de modo conflituoso, os dois paradigmas de tempo.

 

LUZ, M. T., 1988. Natural, Racional, Social ­ Razão Médica e Racionalidade Científica Moderna. Rio de Janeiro: Ed. Campus.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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