DEBATE DEBATE

 

 

 

 

 

Fermin Roland Schramm

Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.


Debate sobre o artigo de Gil Sevalho

Debate on the paper by Gil Sevalho

 


Por que não introduzir o tempo (ou melhor "os tempos") em epidemiologia para entender melhor o processo do adoecimento de indivíduos, grupos e populações humanas?

É com este tipo de preocupação que Gil Sevalho começa seu perguntar acerca da possibilidade de se pensar uma epidemiologia menos "positivista" e mais preocupada com a história vivida, menos quantitativa e mais qualitativa, em suma, mais complexa.

Para tanto, o autor parte da constatação de que a epidemiologia não medita suficientemente (nem apropriadamente) sobre as "representações que faz do tempo", ficando implícito que uma correta reflexão acerca da temporalidade permitiria "melhor entendimento do adoecer humano", não redutível nem à mera contagem de doentes em populações nem à mera medição da ocorrência de doenças (que é o que a epidemiologia em substância faz e é legitimada a fazer). Em seguida, o autor recorre a dois operadores conceituais tirados da "caixa de ferramentas" (como diria Wittgenstein), tidos como indispensáveis para reformular a problemática "complexa" da epidemiologia: 1) a dialética da duração, do historiador Fernand Braudel; 2) a concepção de tempo irreversível (sintetizada pela metáfora da flecha do tempo), teorizada pelo Prêmio Nobel de Química, Ilya Prigogine.

Trata-se de autores que aparentemente têm uma preocupação comum: a de ultrapassar os limites estreitos do seu âmbito disciplinar específico mediante a incorporação de novos territórios de conhecimento e através de uma abordagem que poderíamos chamar genericamente de "interdisciplinar". Braudel, pela diferente periodização dos fatos históricos em tempo longo, tempo médio e tempo curto e incorporando dados vindos da geologia e geografia; Prigogine por meio da tentativa de estabelecer uma "nova aliança" entre disciplinas científicas e disciplinas humanísticas. Braudel e Prigodine, contudo, defendem de fato concepções de tempo opostas. Braudel ­ um destacado representante das Ciências Humanas preocupado em introduzir na sua disciplina (a História) os elementos das assim chamadas Ciências Exatas ­ permite, por um lado, pensar um tempo composto, formado por estrutura, conjuntura e evento (que são a outra formulação de tempo longo, médio e curto), ao passo que Prigogine ­ um destacado cientista das Ciências Exatas ou naturais ­ ao insistir sobre a irreversibilidade do tempo, sintetizada pela metáfora da flecha do tempo, permite pensar, antes de qualquer consideração, em um padrão objetivo do tempo: o tempo que passa, cronológico, que preexiste às concepções/construções e até constitui, kantianamente, uma das condições a priori do conhecimento, quer dizer, "a representação necessária que sustenta todas as intuições" (Kant, I. Crítica à Razão Pura. Est. Transc., par. 4), inclusive as intuições sobre o próprio tempo.

Neste panorama nasce, portanto, a indagação de como conciliar, em uma eventual integração da temporalidade na epidemiologia, a concepção "complexa" e basicamente "histórica" do tempo com a concepção "objetiva" do mesmo, considerando que até hoje a legitimidade reconhecida à epidemiologia decorreu sobretudo dos seus aportes quantitativos. Ou seja, como integrar, em um mesmo campo problemático, a concepção construtivista defendida, por exemplo, por Henri Bergson, segundo a qual o tempo é pura invenção do espírito, com a concepção objetivista de um Jaques Monod, para quem o tempo existe em si e é indiferente às nossas tentativas de interferência (como bem expressa sua afirmação de que o universo é indiferente ao humano). Existem, evidentemente, várias maneiras de enfrentar esta questão.

Uma maneira pragmática de responder talvez seja a de não escolher nenhum a priori, aceitando (segundo o conselho do epistemólogo Feyerabend: anything goes) que existe uma pluralidade legítima de concepções da temporalidade, e, em particular, a oposição entre um tempo objetivo e um tempo subjetivo. Assim, dependendo do ponto de vista adotado, o tempo pode ser concebido de várias maneiras, aparentemente todas pertinentes, para dar conta de determinados acontecimentos que, de uma forma ou outra, dizem respeito à vida humana no seu contexto (formado de outros humanos, outros sistemas vivos e artefatos materiais e virtuais etc.). Desta maneira, teríamos um conjunto de tempos físicos (ou várias concepções físicas do tempo conforme a teoria física envolvida: newtoniana, einsteniana, prigoginiana); um conjunto de tempos biológicos (que não respeita algumas leis da termodinâmica clássica porque relativo à autopoiese dos sistemas vivos); um conjunto de tempos histórico-sociais (também com características pertinentes que não aparecem nas outras concepções); tempos psicológicos, tempos narrativos, tempos filosóficos etc. Em suma, uma multiplicidade de concepções de tempo servindo para finalidades diferentes. E porque não introduzir então o tempo em epidemiologia, com especificidades próprias?

Porém, do ponto de vista epidemiológico (se é que se pode utilizar esta expressão no singular), será que as concepções "objetivistas" e "subjetivistas" de tempo são igualmente utilizáveis? E ainda, qual seria uma concepção específica de tempo para a epidemiologia, se é que deve existir, para supostamente dar conta de fenômenos específicos da disciplina?

Existe, evidentemente, uma maneira filosófica de enfrentar a questão do tempo, à qual em princípio é sempre possível recorrer. Da mesma forma, neste caso, as coisas não são mais simples, pois deve-se fazer as contas com pelo menos três sentidos gerais de tempo, a saber: a ordem de sucessão entre eventos (o tempo como Kronos), o contexto em que se desenvolvem coisas e aquele dos fenômenos.

Pode-se recorrer, também, à própria teoria científica da segunda metade do séc. XIX, quando Darwin, por um lado, e Boltzman, por outro, introduziram a noção de evolução em populações (de indivíduos de uma espécie submetidos à pressão da seleção para Darwin, de partículas submetidas a colisões para Boltzman). Ou seja, como bem percebeu Prigogine (1994. ) El fin de la ciencia? In: Nuevos Paradigmas, Cultura y Subjetividad. [D. F. Schnitman, org.] pp. 37-60. Buenos Aires-Barcelona-México: Paidos), mesmo em Boltzman a direcionalidade do tempo (sua irreversibilidade) aparece ao nível populacional e não individual, o que o aproxima de certa "objetividade", tal como a entenderíamos hoje (depois da crise dos fundamentos), e de determinada vivência que nos assegura não ser o tempo uma ilusão, mas algo bem real, independente do fato de existirem vários pontos de vista pertinentes sobre ele que co-habitam em nossos espaços conversacionais. Neste caso, dever-se-ia talvez indagar acerca das relações entre tempo e complexidade, além de seus aportes para uma epidemiologia "complexa" e "evolutiva". Mas isso fica para outro número especial.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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