DEBATE DEBATE
Naomar de Almeida Filho Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. | Debate sobre o artigo de Gil Sevalho Debate on the paper by Gil Sevalho
|
O texto de Gil Sevalho abre uma discussão de extrema relevância neste momento de reconstrução teórica da ciência epidemiológica. Reconhecendo a ousadia e pertinência do texto-provocação, que certamente deverá constituir importante referência na literatura conceitual na área da Saúde Coletiva, trago um breve comentário sobre os tempos epidemiológicos, esperando poder modestamente contribuir para o debate em questão.
À semelhança de outras ciências constituídas a partir da invenção das probabilidades e da revalorização do campo observacional, são três os tempos da epidemiologia: tempo real, tempo lógico e tempo simbólico. A incorporação do tempo real nas medidas epidemiológicas pretende fazer referência a uma dimensão externa, hipoteticamente invariante (como uma constante física), a dimensão do tempo físico. Este uso, digamos, superficial do tempo, apenas replica estratégias heurísticas de todos os campos disciplinares de inflexão quantitativa, nostálgicos de uma suposta "dureza" epistemológica que compõe parte da mitologia das ciências ditas naturais.
Entretanto, pode ser interessante explorar outros sentidos do tempo na epidemiologia, na medida em que, desta forma, podemos interrogar-nos acerca da lógica e da ontologia que estruturam o pensamento dominante na área, pomposamente denominado de "raciocínio epidemiológico". Em outra oportunidade (Almeida Filho, 1994) tentei organizar algumas reflexões preliminares em torno de tal questão. Como Sevalho não incorpora este material na sua discussão, isto pode indicar que eu não teria atingido suficiente clareza na argumentação de então, reforçando a necessidade de retomá-la neste contexto.
A práxis humana é regida por uma racionalidade ou meios de categorização que Castoriadis (1982) denomina lógica conjuntista-identitária. Esta lógica baseia-se na categoria de 'conjunto', que envolve a agregação de coisas não idênticas em categorias homogêneas, bem como sua incorporação em hierarquias, com propósitos cognitivos ou pragmáticos. Apesar de se observar alguma forma de racionalidade operando através de instituições discursivas e práxicas em todas as culturas, a sociedade moderna desenvolve ao extremo a lógica identitária na linguagem matemática formalizada da ciência. Inclui-se, nesta perspectiva, o processo de fragmentação do mundo, que separa temporal e topologicamente as causas dos efeitos ou, o que nos interessa particularmente, os fatores de risco do risco em senso estrito. Neste sentido, não se torna fácil de refutar a insistência dos pré-teóricos (ou ideólogos) da ciência epidemiológica em apresentar correlações como se fossem laços causais e causas como processos naturais (e, portanto, anistóricos), porque tal abordagem representa a aplicação de teorias de causalidade do senso comum. Efetivamente, a não complexidade da lógica causal garante, desse modo, a credibilidade do seu poder antecipatório (base do saber tecnológico da produção moderna), integrando-a na formação econômico-social e nas redes de poder que a constituem (Stengers, 1989).
O tempo lógico da epidemiologia implica dois elementos de discussão, ambos concernentes à questão fundamental da causalidade. Primeiro, o lugar da temporalidade na lógica seqüencial do determinismo epidemiológico. Trata-se, neste caso, de um tempo linear, irreversível, produtor de nexos assimétricos, um tempo unívoco, eventual (no sentido preciso de "por referência à noção de evento"). Segundo, o emprego do tempo como elemento de base para a inferência preditiva não só no campo epidemiológico, mas, por extensão, a toda a área da Saúde Coletiva, em particular na planificação da saúde. A partir do conhecimento a respeito dos eventos em certa amostra é possível predizer, para o futuro, a ocorrência, no tempo, de novos eventos naquela amostra (ou sua população de referência), efetuando-se uma predição "verdadeira", porém ilegítima em sentido filosófico rigoroso. Por outro lado, podemos também predizer não para um futuro, ainda não ocorrido, mas na direção do desconhecido, do não investigado, em uma variação que poderíamos denominar transversal. Chamei a este caso de "pseudo-predição" (Almeida Filho, 1994), porque, paradoxalmente, embora não constitua antecipação, é legítima no sentido de que, ao menos em certo âmbito, há uma lógica subjacente que a fundamenta. Em síntese, a temporalidade não é critério de validação e sim elemento constitutivo de uma predição verdadeira na aplicação do conhecimento epidemiológico.
Vejamos agora o terceiro tempo, o tempo simbólico, a temporalidade como resultante de um processo particular de construção metafórica do sentido do tempo. Nesta etapa, desde já nos defrontamos com um elemento metafórico essencial do tempo: aqui, ou agora, o sentido de 'sentido' é duplo: significação (ou construção identitária, para usar o termo castoriadiano) e direção.
Deleuze, em Logique du sens (1969), partindo da matriz filosófica grega, traz duas leituras paradoxais e contraditórias do tempo: o eterno confronto entre Chronos e Aion. Sempre havia o Aion. O Aion será desde sempre o reino da ação, das forças, dos efeitos e das causas. O tempo do Aion é uma linha reta feita de instantes. No Aion, o presente não existe, é apenas divisão, refeita a cada instante, entre um passado e um futuro. Ou melhor, trata-se do presente "sem densidade", feito de momentos, "o presente do ator, da dançarina ou do mímico, puro 'momento' perverso" (Deleuze, 1969:197). Por sua vez, Chronos inventa o 'evento', presente singular que instaura os fatos, os estados, as coisas e os corpos (Zourabichvili, 1994). Aí (ou então) só o presente existe, já que passado e futuro são dimensões relativas ao presente. O tempo é o movimento do presente, movimento circular em torno de presentes singulares, os eventos. No Aion, os eventos só ocorrem se "efetuados ou performados" por atores, sujeitos do ato. Para Chronos, os eventos são puros, puras singularidades impessoais, ocorrências pré-individuais.
Devemos recuperar a noção de evento a partir de uma perspectiva complementar àquela da Nouvelle histoire indicada por Sevalho. Na perspectiva metafórica de Chronos, o 'evento' carrega a conotação de algo discreto, isolado, distinto, descolado do resto das coisas, o evento enquanto fragmento de uma realidade mais ampla (Castoriadis, 1992). O mundo (real ou virtual) é metaforicamente traduzido como universo de entidades individuais (os eventos chamados ironicamente de fatos) que podem ser potencialmente incluídos ou excluídos de agregados denominados 'conjuntos'. O evento deve ser identificado como tal, quer dizer, como singularidade pré-individual, diferente do resto das coisas, do que ele não é; em síntese, visto como "outra coisa" (Zourabichvili, 1994). Neste processo, inevitavelmente são fabricados limites arbitrariamente estabelecidos, dado que, para configurar-se como objeto de conhecimento, a coisa-fato-processo-fenômeno deve tornar-se parte isolada da totalidade indiferenciada.
De volta à epidemiologia, a operação mais fundamental e necessária para pensar a determinação epidemiológica consiste na distinção entre causa e efeito. Aí, é preciso que a causa, o evento C (chamemos de antecedente, determinante), seja distinto do restante das coisas, diferente do indiferenciado, C seja diferente de C (não C). Da mesma forma, outro evento significativo D (escolhi D por doença, mas pode-se ler também efeito, resultado) terá que ser diferente do indiferenciado. Ora, ambos se distinguem e se destacam do [C, D] (não C, não D), da "massa sem forma", do magma (Castoriadis, 1982), por atribuições de natureza distinta e definida. Assim, C é diferente de D, não se confunde nem se reduz a D. Constrói-se, desta forma, a diferença entre a causa e o efeito, sem o que estes termos jamais encontrariam uma definição, ou seja, sua identidade enquanto eventos singulares.
A flecha do tempo. O rio do tempo. Correnteza, fluxo irreversível. Metáfora espacial do tempo como direção. Eis a temporalidade tomada como assimetria, direcionalidade, fluxo (de eventos). Tomemos esta série metafórica basicamente como expressão da representação espacial ou linear do tempo, talvez o traço mais fundamental do modo moderno de pensar, parte essencial da nossa lógica subjacente mais primitiva (Castoriadis, 1982; 1987). Uma determinada relação de ordenação temporal entendida como abstração espacial do tempo, parte da lógica conjuntista-identitária. Para Castoriadis (1982), o pensamento convencional acerca do tempo adota, por referência, lugar ou espaço, porque isto é o que "permite a identidade do diferente". Definido como ordem (de sucessão), o tempo é referencial e assim possibilita ao "idêntico diferenciar-se de si mesmo" pela retenção de um espaçamento temporal, ainda assim vinculado ao passado. Cada momento, no entanto, pode também ser visto como tempo-instante em si, momento no qual se permite a emergência do que não estava determinado ocorrer.
Segundo Castoriadis, tornar-se "outro" não é o mesmo que se tornar "diferente de". Emergir como outro constitui gênese ontológica quer dizer, a própria criação da alteridade, do imprevisto, do novo. A noção de ontogênese radical compreende os fenômenos da emergência referidos pelas propostas das novas alternativas paradigmáticas para a ciência contemporânea (Morin, 1980). Assim, o tempo é a verdadeira manifestação do fato de que algo "outro" em relação ao existente está sendo trazido à existência, e que este "outro" não é simplesmente conseqüência ou exemplar diferente do "mesmo" (Castoriadis, 1982:185).
Considerar a determinação do objeto de conhecimento como sua propriedade essencial, fazendo assim equivaler causalidade a "coisidade", implica a adoção da tese metafísica da essência-substância, por referência à "instituição social-histórica da coisa", uma expressão de Castoriadis (1982). Em outras palavras, a ontologia ocidental mais básica, a noção do que é uma coisa, é a cada momento do tempo inscrita em uma ontologia conjuntista-identitária. Como resultado, reifica-se as propriedades da determinação. Ao tomar determinações parciais e limitadas como substância coisas integralmente determinadas, enfim, como objetos , a racionalidade ocidental moderna obscurece o princípio de que a ontogênese, a alteridade-alteração, a emergência, ocorre continuamente no Aion, em todos os instantes do tempo.
O determinismo inerente à lógica conjuntista-identitária, por isso característico do chamado raciocínio epidemiológico, é incapaz de lidar com a ontogênese radical na medida em que, ao aderir estritamente a cadeias preexistentes de categorias, pode somente reconhecer as diferenças nos mesmos mas nunca a emergência do "outro". Por este motivo, pode-se responsabilizar esta forma de pensar pela paralisia dos modelos explanatórios da situação da saúde, pois trata-se de um pensamento que opera pela imobilização das categorias básicas do ser. Tais categorias são fechadas em sua existência, bloqueadas perante a própria historicidade, assumidas como universalmente existentes, sem incorporar os mínimos requisitos das representações culturais e sociais.
A tradição de uma história cultural recuperada por Sevalho mostra que as categorias fundamentais do pensamento ocidental (as "mentalidades") modificam-se com o tempo e que a sucessão de eventos históricos não poderá nunca ser vista simplesmente como resultado de cadeias de causalidade. "Causalidade não significa 'irreversibilidade' nem algum tipo de ordenamento temporal e menos ainda (...) uma mera sucessão regular, empiricamente estabelecida, de um fenômeno para outro" (Castoriadis, 1982:65).
Se aceitamos a leitura da causalidade como uma série de eventos do passado, é porque assumimos que um modelo de referência conjuntista-identitário instituído reflete certo tempo natural. Uma posição epistemologicamente mais atraente pode ser a de considerá-lo como tempo socialmente instituído. A instituição social do tempo traduz tanto uma temporalidade explícita (tempo marcante e significativo) quanto uma temporalidade implícita, produtora de alteridade-alteração. A dimensão social-histórica do tempo como alteração pode referir-se a uma temporalidade natural (estações, ciclo lunar, dia-noite). Entretanto, dado que os atores sociais-históricos filtram sua percepção do tempo através das próprias instituições, o "tempo natural" nunca poderá ser como tal diretamente percebido ou apreendido. A temporalidade social-histórica implícita de uma dada sociedade (assim como sua relação a uma "temporalidade natural") engendra e é por sua vez sujeita a uma dimensão particular do "imaginário social", imensa meta-metáfora da cultura e da história.
Em síntese, a temporalidade da epidemiologia estrutura-se usando como base uma metáfora do evento e uma série significante metafórica do fluxo. Não é outro o sentido da função de ocorrência, base da própria definição do objeto epidemiológico, segundo Miettinen (1985). Também não estamos longe dos critérios de causalidade de Sir Bradford Hill (Weed, 1989) ou do sistema de lógica de Mill, conforme traduzido por MacMahon & Pugh (1970), ícones do chamado raciocínio epidemiológico. Trata-se aqui de uma temporalidade fragmentária, conforme intuitivamente se pode verificar na fixação dos limites temporal e corporal no processo de identificação de caso nos estudos epidemiológicos. Os casos são definidos por referência a eventos relativos à saúde-doença, reconhecidos enquanto ocorrências singulares. Enfim, a análise da natureza do tempo na desconstrução do discurso epidemiológico termina por revelar os principais pontos-cegos do paradigma dominante no campo da epidemiologia: por um lado, a negação dos "momentos perversos" em que irrompe a subjetividade (Castiel, 1994); por outro lado, sua incapacidade "chronica" de dar conta dos fenômenos emergentes (como, por exemplo, no campo da saúde, as epidemias de AIDS, do vírus Ebola, da drogadição, da violência, e os paradoxos da mortalidade infantil, do sistema unificado de Saúde...). Enquanto isso, no Aion, eventos novos se produzem a todo instante, desafiando a vã temporalidade da epidemiologia.
ALMEIDA FILHO, N., 1994. Caos e causa na epidemiologia. In: Epidemiologia e Qualidade de Vida. Anais do II Congresso Brasileiro de Epidemiologia. (M. F. F. L. Costa & R. P. de Sousa, orgs.) pp. 117-126. Belo Horizonte: Coopmed/Abrasco.
CASTIEL, L., 1994. O Buraco e o Avestruz: a Singularidade do Adoecer Humano. Campinas: Papirus.
CASTORIADIS. C., 1982. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
CASTORIADIS C., 1987. As Encruzilhadas do Labirinto. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
CASTORIADIS, C., 1992. As Encruzilhadas do Labirinto/3 (O Mundo Fragmentado). São Paulo: Paz e Terra.
DELEUZE, G., 1969. Logique du Sens. Paris: Les Éditions du Minuit.
MACMAHON, B. & PUGH, T., 1970. Epidemiology: Principles and Methods. Boston: Little, Brown & Co.
MORIN, E., La Méthode. Tome II. La Vie de la Vie. Paris: Seuil.
MIETTINEN, O., 1985. Theoretical Epidemiology. New York: John Wiley & Sons.
STENGERS, I., 1989 Quem tem Medo da Ciência? Ciência e Poderes. São Paulo: Siciliano.
WEED, D., 1989. Causal criteria and popperian refutation. In: Causal Inference. (K. Rothman ed.) pp15-32. Chestnut Hill: Epidemiologic Resources Inc.
ZOURABICHVILI, F., 1994. Deleuze Une Philosophie de l'Évènement. Paris: PUF.