DEBATE DEBATE

 

 

 

 

 

Wilmar do Valle Barbosa

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.


Debate sobre o artigo de Gil Sevalho

Debate on the paper by Gil Sevalho

 


O tempo, como questão que não diz respeito apenas a relógios e relojoeiros, é sem dúvida um tema fascinante. Mais fascinante ainda se torna ao sabermos que as propriedades atribuídas ao que usualmente chamamos de "realidade" não são senão aquelas que o observador ­ nós, humanos ­ pôde estabelecer a partir dos seus sentidos e da sua capacidade de construção de significados. Na verdade, somos uma espécie observadora que, ao longo do seu próprio itinerário, vai elaborando as formas da realidade, que nos encanta descobrir a posteriori. É neste processo de construção de esquemas de realidade, a começar dos dados proporcionados pelos sentidos e da designação de significados por via da linguagem mesma, que também nos construímos como seres pensantes. Esta cadeia de significados leva-nos a crer na existência de um tempo que flui continuamente em direção à morte.

Mas trata-se apenas de uma crença? Cremos que o tempo flui constantemente, quando, na verdade, o mundo que se encontra lá fora ­ chamemo-lo "natureza" ­ seria imóvel, quieto, mas devido a alguma misteriosa "propriedade" da nossa mente, se nos afigura em contínuo e incessante movimento? Obviamente não se trata disto. Estamos apenas humildemente tentando sugerir que o ato de demonstrar a existência de um tempo que flui sem cessar ao exterior de nós constitui tarefa tão gigantesca que até o presente não se pôde fazê-lo a contento.

Podemos estabelecer o compasso do tempo através, por exemplo, da água que escorre por uma torneira, pois sabemos que o que flui é a água com relação à pia, digamos, à razão de x metros cúbicos por dia. Mas quando se trata do próprio tempo, o que é que flui incessantemente? Flui relativamente a que? Quanto flui por segundo, minuto, hora? Como o tempo pode medir o próprio tempo? Afinal de contas, o que é este tempo que seguramente sentimos fluir, sentimento sem o qual não podemos pensar nem atribuir significados ao que chamamos de realidade?

Justamente por ser difícil elaborar uma definição unívoca é que não mais supomos que haja um tempo, mas tempos. Já os antigos, como nos ensina Mircea Eliade, possuíam dois tipos de tempo: aquele incessantemente repetível, divino, o do cosmos, e aquele da duração profana, o do cotidiano, trivial e sem nenhuma transcendência. Para os antigos gregos, o universo surge a partir do ordenamento do caos, e um dos seus primeiros deuses é justamente Kronos (KronoV, deus fundador), que se transforma em Cronos (KronoV, deus do tempo), e é desta visão de mundo que emerge a controvérsia, muito remota, entre o paradigma do "transformar-se e modificar-se" e o do "permanecer e ser", que anima a imaginação dos filósofos gregos sobretudo a partir de Heráclito e Parmênides. Por sua vez, a ciência moderna, com Einstein, descartou definitivamente a noção newtoniana de tempo absoluto, fazendo-nos ver que o tempo é um aspecto da relação que se estabelece entre o universo e um observador, sendo, na verdade, um sistema de referências.

No nosso entendimento, ao buscar aproximar o "tempo da história" ao "tempo da epidemiologia", Gil Sevalho corretamente procura rever uma tendência constitutiva da ciência moderna que se manifesta por meio de dois procedimentos básicos: (a) afastar-se da "natureza-tal-como-percebemos-pelos-sentidos", isto é, descartando, quando não desqualificando, a mudança e a diferença e (b) observar e descrever as relações imutáveis que supostamente existem sob as mutáveis, privilegiando, desta forma, o paradigma do "permanecer e ser".

Tais procedimentos estão na base do vocabulário tanto do "materialismo" quanto do "idealismo" modernos, pois, por um lado, se o primeiro tenta compreender o mundo perguntando-se sobre aquilo que o constituiria de modo definitivo, por outro, o idealismo indaga-se sobre a forma definitiva que foi dada a um fenômeno x para que ele se diferenciasse daquilo que o produziu, isto é, de um fenômeno y (ou não-x). A controvérsia tipicamente moderna entre idealismo e materialismo tende a perder sua relevância cultural, pois o ambiente em que floresceu e adquiriu seu importante sentido, tem sofrido modificações significativas. Isto porque ­ a partir de meados do séc. XIX e por via de reflexão sistemática sobre os processos civilizatórios humanos, que se encontram em constante mutação ­ instituiu-se a história como ciência de um "objeto" que só pode ser entendido sob o paradigma do "transformar-se e modificar-se", já que não possui nenhuma "lei imutável" por detrás das suas constantes mudanças, tornando-se refratário, portanto, a todo pressuposto determinista.

Este certamente constitui o grande desafio que temos pela frente e que Sevalho indica com propriedade: compreender os processos humanos e os do universo em uma relação dinâmica de interdependência entre o cultural, o histórico, o social e o biológico (o "natural"). Procura-se articular os tempos da natureza, da sociedade, da história e da cultura, de modo a promover uma renovada inteligibilidade do mundo tal como nós o experimentamos.

Se de fato, como quis Bacon, saber é poder, o desconhecimento é fonte de insegurança e temor. Por isto mesmo, a espécie humana, observadora que é, busca incessante e necessariamente segurança. E essa procura significa para os homens uma busca de significados. Saber que há tempos, e não um tempo, e sentir que estes tempos fluem em direções irreversíveis e desconhecidas, obriga-nos mais do que nunca a pensar. Porém, pensar significa escolher aspectos da nossa experiência e ordená-los. Pensar é, de fato, construir, e construir significa inventar. "Inventar é preciso", diríamos, parafraseando o lema dos antigos argonautas, sabendo, juntamente com Sevalho, que, no entanto, não há invenção definitiva, assim como não há tempo definitivo.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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