ARTIGO ARTICLE |
Rivaldo Mendes de Albuquerque 1 | Mortalidade materna em Recife. 1. Avaliação da subenumeração de estatísticas oficiais Maternal mortality in Recife.
|
1 Fundação Universidade de Pernambuco. Rua Hélio Falcão 495/403, Recife, PE 51021-070, Brasil. 2 Departamento de Tocoginecologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. C. P. 6181, Campinas, SP 13081-970, Brasil. 3 Centro de Pesquisas das Doenças Materno-Infantis de Campinas. C. P. 6181, Campinas, SP 13081-970, Brasil.
| Abstract This study analysed maternal deaths occurring in 1992 and 1993 in the city of Recife, Pernambuco State, Brazil, among all deaths of females aged 10 to 49 years, and to compare the results with vital statistics records. Information was obtained from 1013 death certificates and was supplemented through an analysis of medical records, anesthesia forms, nursing reports, results of autopsies performed by the Forensic Medicine Institute, necropsy reports from the Death Investigation Service, and interviews with both attending physicians and the women's relatives. Maternal mortality rates were calculated for the city of Recife for each year and for the total period studied. Twenty deaths were identified by Death Certificates as reported maternal deaths, and they represented 2% of cases among women in this age group. After the investigation proccess, 22 additional maternal deaths were identified for the entire period. According to vital statistics records, the maternal mortality rate was 37.0 per 100,000 live births; however, after adjustment, this figure increased to 77.7. This difference represents an under-recording rate of 52.4%. The study concluded that in the case of Recife, the 3.0 correction factor recommended by the Ministry of Health for the Northeast Region of the country was not applicable, since it would lead to an overestimation of the maternal mortality rate. Key words Maternal mortality; Mother and Child Health; Vital Records Resumo Este estudo analisou os óbitos de mulheres com idade entre 10 a 49 anos, ocorridos em Recife, Pernambuco, nos anos de 1992 e 1993, com a finalidade de identificar os óbitos maternos neste período e confrontá-los com as estatísticas oficiais. As informações foram obtidas a partir de 1.013 declarações de óbito, sendo complementadas com consultas aos prontuários médicos, fichas de anestesia, relatórios de enfermagem, perícias tanatoscópicas do Instituto de Medicina Legal, relatórios das necrópsias do Serviço de Verificação de óbitos e por meio de entrevistas com os médicos que assistiram estes óbitos ou com familiares das mulheres que faleceram. Calcularam-se as razões de mortalidade materna (RMM) para o Município de Recife para cada ano e para o período total do estudo. As 20 mortes maternas declaradas representaram 2% dos óbitos entre mulheres nessa faixa etária. Após a investigação encontraram-se mais 22 casos para todo o período. A RMM pelas estatísticas oficiais era de 37,0 por 100.000 nascidos vivos, passando a 77,7 após a correção. Esta diferença representou uma subenumeração de 52,4%. Conclui-se que, no caso de Recife, não se poderia aplicar o fator de correção de 3,0 recomendado para a Região Nordeste pelo Ministério da Saúde, porque a mortalidade materna estaria sendo então superestimada. |
Introdução
Os profissionais de saúde, médicos e enfermeiros, são os que mais se defrontam diariamente com a morte. Entretanto, muitas vezes não têm preparo suficiente para compreendê-la no seu sentido mais amplo, na formulação de sua história, ou na compreensão de sua formalidade legal, para a qual são considerados autoridades (Goodson, 1989). Tal despreparo para a compreensão da morte e de suas implicações legais tem levado os médicos a situações constrangedoras quando são solicitados a explicar o ocorrido diante da família ou de colegas, ou pelo simples ato de preencher o documento formal do óbito. Quantos profissionais não se vêem diante do primeiro atestado de óbito apenas quando já médicos?
Apesar de o modelo internacional de atestado de óbito proposto pela Organização Mundial de Saúde, aprovado na Sexta Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças, datar de l948 e, desde 1976, ser utilizada no Brasil uma declaração de óbito padronizada, estudos nesta área ainda mostram não ser de boa qualidade as informações contidas nas declarações (Fonseca & Laurenti, 1974; Laurenti et al., 1990; Cecatti, 1992).
A falta de fidedignidade das informações contidas nas declarações de óbito, em particular das causas de morte em mulheres no ciclo gravídico-puerperal, reflete a existência de subenumeração destas mortes (Laurenti et al., 1990). O grupo de causas que definem morte materna é considerado como o mais mal informado pelos médicos nas declarações de óbito. Para estes autores, características sociais, religiosas e psicológicas, além dos problemas legais para as mortes por aborto, podem levar ao falseamento da real causa de morte, destacando-se ainda que os médicos não gostam de declarar mortes maternas como causa de morte, visto que a gestação, parto e puerpério são eventos normais, ou assim deveriam ser, na vida de uma mulher.
O problema da subenumeração das mortes maternas não é exclusivo do Brasil. Estudos norte-americanos demonstraram que tal subenumeração em dezenove regiões estudadas foi de 39% (Koonin et al., 1988).
Conforme definição da Organização Mundial de Saúde, desde 1975 conceitua-se morte materna "como a morte da mulher durante a gestação ou num período de até 42 dias após seu término, independente da duração ou localização da gravidez, e por qualquer causa relacionada ou agravada pela gestação, excetuando-se porém as causas acidentais ou incidentais" (Royston & Armstrong, 1989; WHO, 1989).
Recentemente, no Brasil, tem-se proposto considerar também, para o cálculo da razão de mortalidade materna (RMM), os óbitos ocorridos após o 42o dia de puerpério, até um ano do término da gravidez, desde que relacionados à gestação, parto ou puerpério (Laurenti, 1988). Estes óbitos seriam considerados como mortes maternas tardias. Esta recomendação já foi aceita pela OMS e passou a fazer parte da 10a revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID), vigorando a partir de 1995 (WHO, 1989).
Definido o que seja morte materna, esta pode ser classificada em dois grupos, os óbitos por causas diretas e os por causas indiretas (Royston & Armstrong, 1989). Definem-se como diretas, as mortes obstétricas na gravidez, parto e puerpério, causadas por intervenções, omissões, tratamento incorreto ou por seqüência de eventos resultantes de qualquer uma destas situações. As mortes obstétricas indiretas são aquelas que resultam de doenças existentes antes da gravidez ou que se desenvolvem durante a mesma e que não se devem a causas obstétricas diretas, mas que são agravadas pelos efeitos fisiológicos da gravidez.
Para efeito de padronização, atualmente recomenda-se que o nível de mortalidade materna seja medido através da Razão de Mortalidade Materna (RMM), que é obtida pela relação entre o número de óbitos maternos e o número de nascidos vivos (NV), para uma mesma área num mesmo período, multiplicado por 100.000. Esta razão não é um verdadeiro coeficiente, como habitualmente utilizado, pois, para tanto, o denominador deveria apresentar o número de mulheres que engravidaram, ou seja, o número exposto ao risco de morrer por causas associadas à gestação (Graham & Airey, 1987; Royston & Armstrong, 1989).
O conhecimento atual sobre o número de mulheres que morrem por complicações da gestação, parto e puerpério no Brasil é obtido, na grande maioria das vezes, por estatísticas oficiais ou por estudos em instituições hospitalares, que não refletem a real magnitude do problema, quer pela má qualidade dos registros oficiais, quer por apresentarem situações que não se aplicam à população geral, como é o caso dos hospitais de referência dos grandes centros urbanos. É unânime, em todo o País, a constatação das dificuldades de obtenção de dados oficiais confiáveis sobre a mortalidade materna (Faúndes et al., 1985). Chega-se a afirmar que o problema ocorre por não ser encarado com a importância que lhe é devida (Costa, 1985).
Em Recife, Região Nordeste, encontrou-se uma razão de mortalidade materna de 190 por 100.000 nascidos vivos, no período de l974 a 1979 (Costa et al., 1981). Porém, esta razão foi obtida de uma instituição hospitalar, não representando, portanto, a situação da mortalidade neste município.
A falta de informações confiáveis sobre a mortalidade materna nas diversas regiões do Brasil fez com que o Ministério da Saúde (1994) propusesse diferentes fatores de correção para serem multiplicados às RMM obtidas das estatísticas oficiais, sendo de 2,04 para a Região Sul, 2,24 para a Região Sudeste e 3,0 para as demais regiões do País.
A necessidade de se conhecer a dimensão do problema da morte materna numa região pobre, como é o Nordeste brasileiro, e dentro de uma cidade, onde se dispõe apenas de dados de instituições hospitalares, fundamenta a realização deste estudo descritivo de base populacional, que é o primeiro do Nordeste a utilizar este método. Os dados obtidos permitirão conhecer a situação da morte materna em Recife, bem como orientar sobre o nível de subenumeração destes óbitos nos registros oficiais.
Casuística e método
Estudaram-se todos os óbitos de mulheres de dez a 49 anos de idade, residentes em Recife, os quais ocorreram neste município, no período de janeiro de l992 a dezembro de l993 (Albuquerque, 1994).
Após esta etapa, procedeu-se à codificação da causa básica de morte e classificação das declarações de óbito (DO) em quatro grupos: morte não materna, morte materna declarada, morte materna presumível e morte inconclusiva. Definiu-se como "morte não materna" aquela cuja causa básica de óbito, constante na DO, era neoplasia maligna; como "morte materna declarada" aquela cujas causas de óbitos, constantes na DO, permitiam associá-la ao estado gravídico-puerperal; como "morte materna presumível" aquela cujas causas de óbito, constantes no DO, não identificavam uma doença ou incidente como causa da morte, mas geralmente representavam uma complicação ou situação terminal; como "morte inconclusiva" aquela cujas causas de óbito, constantes na DO, incluindo-se as violências, não permitiam associá-las ao estado gravídico-puerperal; como "morte materna não obstétrica" aquela ocorrida durante a gravidez, parto ou puerpério, porém por causas incidentais ou acidentais e como "morte materna tardia" aquela ocorrida por causas obstétricas diretas ou indiretas, entre 43 dias e um ano após o término da gravidez.
As mortes maternas declaradas, as presumíveis e as inconclusivas mereceram investigação complementar com a finalidade de se identificarem mortes maternas não declaradas e conhecer a história destes óbitos.
Os dados foram obtidos a partir das declarações de óbito, dos prontuários médicos, das fichas de anestesia, dos relatórios de enfermagem, das perícias tanatoscópicas do Instituto de Medicina Legal (IML), dos relatórios de necrópsias do Serviço de Verificação de óbitos (SVO) e das entrevistas com médicos ou familiares das mulheres que faleceram.
Selecionaram-se as declarações de óbito na Secretaria Estadual de Saúde/PE e identificaram-se os locais de preenchimento das mesmas. Após esta identificação, para esclarecimento da causa básica e preenchimento dos instrumentos de coleta, foi necessário, em alguns casos, realizar investigação hospitalar e/ou no serviço de necrópsia e/ou entrevista com médico assistente e/ou visita domiciliar. Obteve-se acesso às informações constantes nos prontuários, registros de admissão e livros de anotação das ocorrências médicas e de enfermagem, quando necessário, para esclarecimento do caso.
Nos óbitos ocorridos no domicílio, inicialmente procurou-se conversar com o médico que preencheu a DO e, quando não se obtiveram mais informações que esclarecessem o caso, realizou-se visita domiciliar à residência da falecida. Estas visitas foram feitas pelo investigador com o intuito de obter, junto aos familiares da falecida, informações que pudessem elucidar as causas e circunstâncias do óbito.
Uma vez obtidos os dados básicos sobre os óbitos maternos, e com dados fornecidos pelo Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos, Secretaria da Saúde de Pernambuco, sobre o número de recém-nascidos vivos, a partir dos óbitos maternos declarados calcularam-se as razões de mortalidade materna (RMM) "oficiais" e a partir do número total de óbitos maternos identificados calcularam-se as RMM "confirmadas" para o município de Recife para cada ano e para o período total do estudo.
Resultados
Identificaram-se 1.013 óbitos de mulheres de dez a 49 anos, residentes no Município de Recife e que faleceram nesta cidade, no período de 1o de janeiro de l992 a 31 de dezembro de l993. As mortes maternas declaradas representaram 2% (20) dos óbitos femininos nessa faixa etária, enquanto 6,2% (63) foram classificadas como mortes maternas presumíveis (Tabela 1).
A Tabela 2 apresenta, para os anos de 1992 e 1993 e para o período total, o número de mortes de mulheres entre dez e 49 anos de idade, os óbitos maternos declarados e os confirmados após processo de investigação, o que correspondeu a uma porcentagem de subenumeração de 65,0% e 40,9% respectivamente para os dois anos. As razões de mortalidade materna "oficiais" foram de 25,1 e 49,7 por 100.000 nascidos vivos para 1992 e 1993 respectivamente. Quando se incluíram todas as mortes maternas identificadas, declaradas e após processo de investigação, calcularam-se as RMM "confirmadas" de 71,8 e 84,1 mortes maternas por 100.000 nascidos vivos para 1992 e 1993, respectivamente.
As mortes por complicações da gravidez, parto e puerpério (mortes maternas) representaram a nona causa de morte neste grupo populacional. Entretanto, estas complicações corresponderam à segunda causa da morte no grupo de vinte a 29 anos de idade. No que se refere ao local de ocorrência, a maioria dos óbitos maternos ocorreu em hospitais (33 óbitos que correspondem a 78,6% do total), sendo o restante em domicílios (21,4%).
Ocorreram 22 mortes maternas não registradas como tais nas declarações de óbito, mas identificadas após processo de investigação. A Tabela 3 fornece todas as causas básicas inicialmente declaradas para esses óbitos, bem como o tipo de causa básica confirmada após o processo de investigação. Destas mortes, 12 (54%) foram inicialmente classificadas como mortes maternas presumíveis. As demais foram identificadas com a investigação dos óbitos inicialmente classificados como de causa inconclusiva. Embora não todos os casos de mortes maternas presumíveis e inconclusivas tenham seguido todas as etapas no processo de investigação adicional sobre a causa básica, não houve nenhuma perda de seguimento desses casos.
Foram elevadas as porcentagens de subenumeração dos óbitos ocorridos em diferentes momentos do ciclo gravídico-puerperal, à exceção dos ocorridos na época do parto. A maior subenumeração observou-se nos óbitos ocorridos por complicações da gravidez e do aborto (Tabela 4).
Discussão
Os resultados desse estudo confirmam a suspeita de que as cifras oficiais de mortalidade materna estão grandemente subenumeradas, sendo que menos da metade dos óbitos maternos identificados para Recife no período estudado estava registrada nas estatísticas oficiais.
Em estudos realizados nos Municípios de São Paulo (Laurenti, 1990) e Campinas (Cecatti, 1992), e no Estado do Paraná (Braga et al., 1992), encontraram-se, como fatores de correção para se chegar ao verdadeiro índice de morte materna, valores de 2,24, 1,55 e 2,04 vezes respectivamente. Na presente investigação para a cidade de Recife, este fator de correção estimado foi de 2,10.
Se fosse aplicado o fator de correção de 3,0, recomendado pelo Ministério da Saúde (1994) para as regiões do País que incluem o Nordeste, a razão de mortalidade materna para o biênio 1992-1993 no Município de Recife seria de 111 mortes maternas por 100.000 nascidos vivos. Esta cifra estaria provavelmente superestimada, já que, após cuidadosa investigação de todos os óbitos de mulheres com idade entre dez e 49 anos, encontraram-se 42 casos de morte materna, o que representa uma razão de mortalidade materna de 77,7 por 100.000 nascidos vivos, valor menor que o da estimativa recomendada.
Não é provável, entretanto, por algumas razões, que esta diferença permita afirmar que a recomendação do Ministério da Saúde esteja incorreta. Primeiro, porque as recomendações referem-se a todas as demais regiões do País, excetuando as Regiões Sul e Sudeste, não considerando as diversas diferenças regionais e incluindo as áreas urbanas e rurais. Nesse sentido, é possível que o Município de Recife não seja representativo de toda a Região Nordeste, já que, por constituir um grande conglomerado urbano, acaba tendo características próprias no que diz respeito à organização do sistema de atenção à saúde. É conhecido que, nas áreas rurais, há um significativo número de mortes que ocorrem sem assistência médica, portanto sem o conhecimento da causa básica de óbito, o que aumenta o número de subenumerações. Embora sem uma avaliação fundamentada em números, atribui-se tal fato também à possibilidade de mortes não declaradas, sem declaração de óbito, cujos sepultamentos aconteceriam em cemitérios clandestinos.
Em segundo lugar, é possível ainda que alguma morte materna tenha ficado sem identificação, apesar da investigação complementar realizada. Não é impossível que algumas das outras mortes possam ter sido maternas e que a insuficiência de informações disponíveis sobre elas não tenha permitido identificá-las adequadamente, o que elevaria dessa maneira a razão.
É interessante notar ainda que, considerando apenas o ano de 1992 e a correção proposta pelo Ministério da Saúde (1994), a razão oficial de 25,1 passaria a ser de 75,3, muito próxima da obtida após a investigação, de 77,7 por 100.000 NV.
Chama também a atenção a aparente elevação da razão de mortalidade materna "oficial", de 25,1 em 1992 para 49,7 no ano de 1993, o que representaria praticamente uma duplicação das mortes maternas. Após o estudo, verificamos uma variação pequena, de 71,8 em 1992 para 84,1 em 1993, o que é mais um indício de pouca confiabilidade dos registros oficiais e da impossibilidade de utilizá-los como instrumentos orientadores de políticas de saúde.
É plausível que o aumento observado entre 1992 e 1993 tenha sido devido a um melhor registro dos óbitos. No primeiro ano estudado, foram declaradas sete das vinte mortes maternas apuradas após a investigação, enquanto em 1993 foram registrados oficialmente 13 de um total de 22 óbitos. Portanto, a porcentagem de subenumeração diminuiu consideravelmente quando comparados estes dois anos. A menor subenumeração observada em 1993 poderia ser um indício de uma melhoria no preenchimento das declarações de óbito. Entretanto, deve-se esperar o comportamento destes índices nos próximos anos, antes de se chegar a conclusões otimistas e precipitadas a respeito deste assunto.
Esta observação exige a atenção para o fato de que uma melhoria da qualidade das informações oficiais, ou seja, um maior e melhor registro das mortes maternas nas declarações de óbito pode representar uma elevação artificial da razão de mortalidade materna, sem que necessariamente esteja ocorrendo um aumento desses óbitos por alguma situação específica.
Entre as causas de óbitos maternos que tiverem maior subenumeração, destacam-se o aborto (60%) e as mortes por complicações na gravidez (69%). Em todos os casos (5) de óbitos por aborto, as interrupções da gestação ocorreram por motivos próprios da mulher, sendo, portanto, considerados ilegais ou criminosos. A necessidade de ocultar a realização do aborto transcende o momento da interrupção, indo à internação hospitalar e ao preenchimento da declaração de óbito, onde o motivo e a forma de interrupção não são revelados, por se tratar de procedimento sujeito a punição pelo Código Penal vigente no País. Assim, para o médico, acaba sendo preferível omitir sua realização e declarar apenas uma causa de morte considerada seqüencial. Em relação aos óbitos por complicações na gravidez, a elevada porcentagem de subenumeração explica-se porque o médico, ao preencher a DO, registra o diagnóstico ou complicação da patologia associada à gravidez, omitindo o estado gravídico, talvez por desconhecer a influência da gestação sobre o agravamento da doença existente ou não lhe dar a devida importância.
Ao se avaliarem as causas de morte materna não declaradas nas declarações de óbito, verifica-se que as "máscaras" encontradas neste estudo têm uma melhor correspondência com as listadas pelo Comitê do Estado do Paraná (Braga et al., 1992). Aproximadamente 73% dos diagnósticos encontrados em Recife também o foram naquele Estado. Se tivéssemos utilizado a relação de causas de morte relatada por Cecatti (1992) para busca ativa do óbito materno, encontraríamos o mesmo percentual (54%) deste estudo. Este fato demonstra a necessidade de se conhecerem regionalmente as causas de óbito que ocultam, com maior freqüência, uma morte materna, como recomendam Braga et al., (1992). Provavelmente estas "máscaras" são conseqüências de características próprias de morbidade da população estudada, além de refletir elementos da formação profissional dos médicos.
Um outro aspecto a ser considerado é o que diz respeito à conceituação da razão de mortalidade materna. Esse índice inclui no seu numerador apenas as mortes de mulheres em conseqüência de complicações da gravidez, do parto e do puerpério, ocorridas até o 42o dia após o parto ou aborto. Com o desenvolvimento da tecnologia na área médica, mesmo casos com complicações graves, podem sobreviver ao período puerperal e falecer após os 42 dias por causa materna. Na presente investigação, verificou-se que, dos 42 casos de morte materna, três ocorreram após o 42o dia do término da gestação, por complicações cardíacas iniciadas na gestação ou puerpério. Caso a razão de mortalidade materna tivesse sido calculada ignorando-se estes casos, esta teria sido de 72,2 por 100.000 nascidos vivos. A utilização destes óbitos maternos tardios para o cálculo da razão segue uma orientação da própria Organização Mundial de Saúde, passando a constar da 10a revisão da Classificação Internacional de Doenças, adotada a partir de 1995.
Outro aspecto refere-se ao denominador dessa razão de mortalidade materna. Habitualmente os valores disponíveis até poucos anos para RMM utilizavam o número de nascidos vivos registrados de maneira convencional, por meio dos nascimentos vivos nas instituições hospitalares, independentemente da procedência da gestante. Nesse estudo, utilizaram-se os dados do Sinasc para o número de nascidos vivos, obtidos de informações mais cuidadosamente coletadas do registro civil sobre os nascimentos por procedência da gestante. Pode-se supor, portanto, que o número de nascidos vivos assim obtido seja mais correto e menor que o obtido convencionalmente, o que também ajudaria a aumentar a razão de mortalidade materna.
Conclui-se que, apesar da mortalidade materna em Recife manter-se alta, a subenumeração das estatísticas oficiais é menor que a estimada para a Região Nordeste, além de estar sujeita a grandes variações de um ano para outro. Esta informação deve servir para orientar as políticas de saúde e estimular a repetição periódica deste tipo de estudo.
Referências
ALBUQUERQUE, R., 1994. Estudo da Mortalidade Materna no Município de Recife. 1992-1993. Tese de Doutorado, Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas.
BRAGA, L. F. C. O.; NAZARENO, E. R.; FANINI, M. L.; CARVALHO, M. T. W.; SOARES, V. M. N. & HIRATA, V. M., 1992. Relatório do comitê de morte materna do Paraná 1990. Femina, 20:186.
CECATTI, J. G., 1992. Análise da Mortalidade Materna no Município de Campinas, no Período de 1985 a 1991. Tese de Doutorado, Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas.
COSTA, C. F. F., 1985. Mortalidade materna na Região Norte-Nordeste. Femina, 13:504.
COSTA, C. F. F.; MAIA, V. O. & LOMANCHINSKY, G., 1981. Mortalidade materna na Maternidade Prof. Monteiro de Moraes, de 1974 a 1979. Parte II. Fatores causais. Jornal Brasileiro de Ginecologia, 91:339.
FAÚNDES, A.; HERMANN, V. & CECATTI, J. G., 1985. Análise da mortalidade materna em partos cesáreos, no Município de Campinas, 1979-1983. Femina, 13:516-524.
FONSECA, L. A. M. & LAURENTI, R., 1974. A qualidade da certificação médica de causa de morte em São Paulo. Revista de Saúde Pública, 8:210.
GOODSON, P., 1989. Uma Breve Reflexão Acerca da Filosofia da Educação Médica Hoje: A Morte como Sintoma. Dissertação de Mestrado, Campinas: Faculdade de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
GRAHAM, W. & AIREY, P., 1987. Measuring maternal mortality: sense and sensitivity. Health Policy Planning, 2:323.
KOONIN, L. M.; ATRASH, H. K.; ROCHAT, R. W. & SMITH, J. C., 1988. Maternal mortality surveillance, United States, 1980-1985. Morbidity and Mortality Weekly Report, 37:19.
LAURENTI, R., 1988. Marcos referenciais para estudos e investigações em mortalidade materna. Revista de Saúde Pública, 22:507.
LAURENTI, R.; BUCHALLA, C. M.; L"LIO, C. A.; SANTO, A. H. & MELLO JORGE, M. H., 1990. Mortalidade de mulheres em idade fértil no Município de São Paulo (Brasil), 1986. I. Metodologia e resultados gerais. Revista de Saúde Pública, 24:128.
MS (Ministério da Saúde), 1994. Manual dos Comitês de Mortalidade Materna. Brasília: Secretaria de Assistência à Saúde, Departamento de Assistência e Promoção à Saúde, Coordenação Materno-Infantil.
ROYSTON, E. & ARMSTRONG, S., 1989. Preventing Maternal Deaths. Geneva: WHO.
SOUZA, M. L., 1983. Coeficiente de mortalidade materna segundo o tipo de óbito, grupo etário, paridade, local de residência e tipo de parto. Obituário hospitalar, 1975 a 1979. Florianopólis, SC (Brasil). Revista de Saúde Pública, 17:279.
WHO (World Health Organization), 1989. Recommended Definitions, Standards and Reporting Requirements for ICD-10 Related to Maternal Mortality. Geneva: WHO.