NOTA RESEARCH NOTE


Moacyr Scliar 1
O exame pré-nupcial: um rito de passagem da Saúde Pública  

Premarital examination: a rite of passage in Public Health

 


1 Departamento de Medicina Preventiva, Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre. Rua Santa Cecília 2129, Porto Alegre, RS 90420-041, Brasil.

 

  Abstract In the first decades of this century, pre-nuptial examination, designed to protect descendants from risks attributed to heredity, worked as a true rite of passage in Public Health routine. An educational text concerning this issue is discussed.
Key words Eugenics; History of Medicine; Premarital Examination  

Resumo Nas primeiras décadas deste século, o exame pré-nupcial, concebido para proteger a prole de riscos atribuídos à hereditariedade, funcionou como um verdadeiro rito de passagem na rotina de Saúde Pública. Um texto educativo a respeito é discutido.
Palavras-chave Eugenia; História da Medicina; Exame Pré-nupcial

 

 

Introdução

 

Na memória da Saúde Pública, um lugar especial terá de ser reservado às formas pelas quais eram detectadas doenças estigmatizantes e/ou dotadas de conteúdo emocional e simbólico. Particularmente exemplar desse tipo de triagem era o exame pré-nupcial, que fez parte da rotina de atendimento nos postos de saúde até bem recentemente. As autoridades sanitárias dedicavam considerável esforço a motivar a população para um procedimento que seguramente chocava a conservadora sociedade das primeiras décadas deste século. O material de propaganda usado para este fim é muito ilustrativo da mentalidade então reinante.

Em abril de 1940, o Departamento Estadual de Saúde (DES), órgão de Saúde Pública do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, publicou o segundo número de seu mensário Educação e Saúde, de distribuição gratuita e dirigido à população em geral. A matéria de capa (figura 1) tinha como título Exame prenupcial (a grafia da época será mantida nesta e em outras expressões). A análise deste texto, muito simples, mas paradigmático, constitui o objeto do presente trabalho.

Exame prenupcial é dividido em tópicos. Um deles, "O que o exame nupcial vos trará", menciona, como vantagens do procedimento, quatro certezas:

"1) Certeza de que não levareis ao vosso esposo ou esposa alguma doença transmissível. 2) Certeza de que tudo fizestes pela felicidade de vossa futura prole. 3) Certeza de terdes contribuído com vossa parcela para o engrandecimento da Pátria. 4) Certeza de que praticastes um ato de humanidade, evitando a degeneração da espécie."

"Alguma doença transmissível" refere-se, na realidade, a sífilis e tuberculose, que "representam um papel salientíssimo na degeneração da raça", porque "o sifilítico é o grande causador de anormalidades e o tuberculoso transmite a predisposição à doença." Não se tratava de pessoas com sífilis ou com tuberculose; os pacientes transformavam-se em entidades, o sifilítico, o tuberculoso (como se fala hoje no aidético). Havia uma explicação para tal: na ausência de tratamento eficaz, tuberculose e sífilis eram condições que acompanhariam o doente pelo resto dos seus dias. A preocupação maior era, contudo, com a prole que podia ser gerada pelo sifilítico ou pelo tuberculoso. "Ninguém", diz o texto, "tem o direito de entregar ao mundo seres infelizes, aleijões (sic), tarados mentais." Razão: "Apuram-se as raças bovinas, equinas, etc.", mas "o homem tem sido, para com sua espécie, de imperdoavel negligência." Tanto mais que "a ciência médica, com seus estudiosos de eugenia, já demonstrou amplamente que as boas condições de saúde de ambos os cônjuges são indispensaveis à formação de filhos sadios."

É, pois, de eugenia que se trata. Na linha direta do maltusianismo, a eugenia, introduzida por Francis Galton (1822-1911), teve como baluarte, no Brasil, a Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1923 pelo psiquiatra Gustavo Riedel, seu primeiro presidente. Em 1931, o também psiquiatra Renato Kehl funda a Comissão Central de Eugenia. O momento não poderia ser mais propício: os anos trinta viram, na Europa, a ascensão do nazi-fascismo e, no Brasil, a consolidação da ditadura Vargas, cuja simpatia pelas idéias totalitárias de Hitler e Mussolini era evidente. A eugenia transformou-se, no Brasil, em instrumento teórico de crítica ao sistema democrático-liberal da Primeira República (Costa, 1976), e o exame pré-nupcial se transformaria, por sua vez, em instrumento de implantação das idéias eugênicas.

No Rio Grande do Sul, terra de Vargas e sede de um apreciável movimento nazi-fascista, a eugenia teve numerosos adeptos, como se constata examinando as teses apresentadas à Faculdade de Medicina de Porto Alegre. Na verdade, já antes dos anos trinta, a preocupação com a transmissão hereditária de doenças e das chamadas taras era bem visível. Em 1909, o doutor Pedro Escobar apresentava tese intitulada Da Hereditariedade na Etiologia da Tabes Dorsualis, defendendo a idéia de que a sífilis é hereditária (Escobar, 1909); em 1921, o doutor Hory Falcão Coutinho publica Da Hereditariedade na Tuberculose, sustentando que "...foi sempre um facto quasi universalmente admitido o de deverem os paes tuberculosos transmitir aos filhos a herança fatal" (Coutinho, 1921). A 'herança fatal' abrangia outras condições, entre elas o alcoolismo. Na tese Moderna Concepção da Medicina Preventiva (1927), o doutor Walther Castilhos cita Miguel Couto: "A beberronia dos paes prolonga-se nos filhos através do óvulo: paes bebedores, filhos beberrazes, netos criminosos" e Lasègue: "Não bebe quem quer; bebe quem traz comsigo o sangue de quem bebeu" (Castilhos, 1927).

Como impedir a degeneração da espécie? Tarefa difícil, diz o doutor Luiz M. Ferraz, filho legítimo de Octavio Dias Ferraz e de D. Olympia M. Ferraz (este tipo de identificação, mencionando a legitimidade da filiação, sempre figurava no frontispício dos trabalhos). Em sua tese Eugenia e Casamento (1928), afirmava: "Assim como os magros procuram os gordos, assim também os doentes, os fracos, os degenerados se encaminham para o lado dos fortes e sadios", mesmo porque, acrescentava, "o amor nasce de um imprevisto". E lançava uma interrogação: "Como é que a Eugenia poderá imperar, principalmente aqui no Brasil, onde a percentagem de analfabetos é quasi 90%?" Ferraz falava do 'trio implacável': tuberculose, sífilis, alcoolismo. A respeito desta última situação, afirmava: "Os filhos que vingam aos alcoolicos estão sujeitos a convulsões, meningite, epilepsia, e, por idiotas, imbecis, comiciaes, vão para o hospicio, ás vezes pelo caminho da prisão", (Ferraz, 1928).

O exame pré-nupcial era visto como instrumento eficaz para impedir tais catástrofes. Já a Lei do Casamento Civil (1890) estabelecera que "os paes, tutores ou curadores poderão exigir do noivo ou da noiva de seu filho, pupillo ou curatellado, antes de consentir no casamento, certidão de vaccina e exame medico, attestando que não tem lesão que ponha em perigo proximo a sua vida, nem soffra de molestia incuravel ou transmissivel por contagio ou herança." Em 1920, Kehl propõe o exame pré-nupcial, que, no Rio Grande do Sul, passará a figurar no Regulamento do DES (tendo como objetivo a prevenção de moléstias venéreas, tuberculose, lepra, câncer, doenças mentais e nervosas). De maneira geral, os dispositivos a respeito foram sendo introduzidos gradualmente; na segunda edição de seu conhecido texto de Medicina Legal, Flaminio Favero comenta o Decreto-Lei 3.200 de 19 de abril de 1941, prescrevendo o exame pré-nupcial obrigatório da união matrimonial dos colaterais de terceiro grau (tios e sobrinhos). Trata-se de "uma oportuna experiencia a respeito da intervenção da eugenia na realisação do casamento" (Favero, 1942).

Todas estas medidas partiam do pressuposto de que as relações sexuais só se consumavam pelo casamento. O que exigia um outro tipo de campanha, defendida pelo doutor Irineu Torres de Vasconcellos (filho legítimo de Irineu Rodrigues de Vasconcellos e de D. Jacintha Torres de Vasconcellos), em tese apresentada à então Escola Médico-Cirúrgica de Porto Alegre em 1919, sob o título de Possibilidade e Dever da Castidade antes do Matrimonio. A epígrafe ("O tumulto me desorienta; eu não quero enxovalhar meu vestuário com a lama das ruas; quero em trajes de gala imaculados esperar o dia do porvir") era de Henrik Ibsen (1828-1906), cuja peça teatral Espectros (1881), abordando a hereditariedade da sífilis, teve grande repercussão. Dizia o doutor Vasconcellos: "Desde muito antes de começar o estudo da sublime arte de curar, havia um problema scientifico e social que absorvia minha intelligencia, aguçava minha vontade e me levava muitas vezes ao auge do enthusiasmo... Era saber, com convicção plena e absoluta, si o moço ­ o joven da adolescencia á épocha risonha e séria de seu casamento ­ podia ou não levar uma vida pura e sem mácula, isenta de todo acto contrarioa á nobilissima e excelsa virtude da pureza, castidade ou continencia, como quizerdes chamar esta joia preciosa que encanta e fascina as almas fortes e varonis". A resposta a esta questão é naturalmente afirmativa, e o autor dedica-se a provar as vantagens da castidade na prevenção das doenças venéreas, fornecendo ao mesmo tempo prescrições para evitar o que chama de 'rebelião da carne' (Vasconcellos, 1919).

Nem todos partilhavam de tal entusiasmo. O doutor Amaro Augusto de Oliveira Baptista, em sua tese Profilaxia das Molestias Venereas (1942) ponderava: "Todas as familias são mais ou menos atingidas pela sifilis, tuberculose, cancer e pela loucura. Si nos mostrassemos excessivamente rigorosos acabariamos, pelo desejo de ter belas crianças, por diminuir sensivelmente a natalidade, a eugenia sendo tranformada em supermaltusianismo" (Baptista, 1942). Isto, numa época em que o Brasil era considerado um país subpovoado, não parecia desejável. Além disto, e apesar do doutor Vasconcellos, outras formas de contágio pareciam inevitáveis; de fato, o exame das prostitutas já havia entrado na rotina de saúde pública. O Cours d'Hygiène, de Bernard & Debré (1927), obra muito lida na época, dedicava ao tema várias páginas. O mesmo texto também admitia que o certificado de exame médico pré-nupcial podia ser facultativo. Mas concluíam dizendo que "depois de longas reflexões sobre assunto tão apaixonante", continuariam defendendo o certificado de exame pré-nupcial, fazendo propaganda junto às famílias, enquanto a lei não tornasse o documento obrigatório (Bernard & Debré, 1927:781).

A expressão 'rito de passagem' foi cunhada por Arnold van Gennep, em 1909, para descrever o processo pelo qual o indivíduo, ao mover-se de uma situação social para outra, recebe aceitação e reconhecimento (Mitchell, 1968). Neste sentido, o exame pré-nupcial era claramente um rito de passagem sanitário, superado pelo progresso científico e pela mudança das condições sociais. Os textos escritos a respeito dão testemunho dos temores e sobretudo das fantasias vigentes à época em que tal prática era corrente.

 

 

Referências

 

BAPTISTA, A. A. O., 1942. Profilaxia das Molestias Venereas. Tese de Doutorado, Porto Alegre: Faculdade de Medicina.         

BERNARD, L. & DEBRÉ, R., 1927. Cours d'Hygiène. Paris: Masson et Cie.         

CASTILHOS, W., 1927. Moderna Concepção da Medicina Preventiva. Tese de Doutorado, Porto Alegre: Faculdade de Medicina.         

COSTA, J. F., 1976. História da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Documentário.         

COUTINHO, H. F., 1921. Da Hereditariedade na Tuberculose. Tese de Doutorado, Porto Alegre: Faculdade de Medicina.         

ESCOBAR, P., 1909. Da Hereditariedade na Etiologia da Tabes Dorsualis. Tese de Doutorado, Porto Alegre: Escola Médico-Cirúrgica.         

FERRAZ, L. M., 1928. Eugenia e Casamento. Tese de Doutorado, Porto Alegre: Faculdade de Medicina.         

MITCHELL, G. D., 1968. A Dictionary of Sociology. London: Routledge & Kegan Paul.         

VASCONCELLOS, I. T., 1919. Possibilidade e Dever da Castidade antes do Matrimonio. Tese de Doutorado, Porto Alegre: Escola Médico-Cirúrgica.         

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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