Jorge Bermudez | Debate sobre o artigo de Suely Rozenfeld Debate on the paper by Suely Rozenfeld |
Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. |
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O artigo de Suely Rozenfeld vem preencher um vazio e propor uma discussão das mais atuais, instigantes e oportunas no que se refere às questões que permeiam a política de medicamentos e assistência farmacêutica. Evidentemente que não esperaríamos coisa diferente. Inicialmente, contextualiza com clareza e destaca a necessidade de que o Brasil mude o perfil policial e cartorial que ao longo dos anos vem caracterizando as ações de vigilância sanitária. Incorporando instituições acadêmicas, é possível estabelecer um sistema ágil de notificação e monitoramento capaz de mudar radicalmente o uso de medicamentos em nosso país.
No Brasil, o arcabouço legal existe e é extenso. Compreendendo decretos-leis, decretos, leis, portarias e outros instrumentos legais, a legislação pode ser considerada das mais avançadas do País, e aquela relativa especificamente a medicamentos, como levantado e discutido por Moreira Lima et al. (1994), se corretamente implementada, elevaria o Brasil ao patamar central no que se refere à fundamentação legal. Entretanto, além da preocupação com o processo de harmonização atualmente em curso nos países que compõem o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul), é fato notório o desrespeito à legislação em nosso país. Exemplo recente é o Decreto 793/93, que estabelece a obrigatoriedade de utilizar a denominação genérica dos medicamentos destacados em relação aos nomes de marcas, o que não é implementado nem cumprido, quer pela indústria, quer pelo Ministério da Saúde (Bermudez, 1994; 1995; Bermudez & Possas, 1995).
No âmbito desta lógica, a Portaria SVS 40, de 9/5/95, estabelece a criação de uma comissão para propor a implantação de um sistema nacional de farmacovigilância, como menciona Suely Rozenfeld. Passados dois anos, é de se perguntar se a proposta ficou no papel ou se alguma ação nesse sentido já foi implementada. Quantas vezes a dita comissão já se reuniu, se é que efetivamente ela foi estruturada, e quem são seus integrantes e suas respectivas representatividades?
Ao levantar em seu artigo a questão da Farmacologia Clínica, consideramos que este é um dos eixos mais importante e que podem vir a possibilitar uma mudança radical nos padrões de prescrição, dispensação e consumo de medicamentos. Constatamos o quanto o Brasil se encontra defasado, uma vez que a Organização Mundial da Saúde já vem propondo uma abordagem como esta há quase três décadas, ao passo que apenas hoje esta começa a se incorporar à agenda da saúde no Brasil (WHO, 1970).
Esta constatação nos remete ao ensino da Farmacologia no Brasil. Esse ensino é arcaico e tradicional na maioria das escolas médicas nos grandes centros. Iniciativas modernas são escassas e restritas a determinadas instituições que contam com profissionais de vanguarda. Destacamos aqui o Rio Grande do Sul (Fuchs & Wannmacher, 1989, 1992, 1996, 1998).
Consideramos também que, no Brasil, merecem destaque as atividades que determinados setores do Ministério da Saúde vêm implantando, por se tratar de assuntos que inevitavelmente irão interagir com o conjunto de ações relacionadas com a famacovigilância. Especificamente, destacamos o processo de revisão da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais(Rename) e a formulação, discussão e posterior implantação e avaliação da Política Nacional de Medicamentos.
Os marcos históricos que a autora levanta, principalmente estabelecendo a relação com as reações adversas dos medicamentos, trazem-nos à reflexão a distância entre as etapas que marcaram a evolução da agência reguladora dos Estados Unidos da América (Food and Drug Administration) e a nossa regulação sanitária.
Cabe um comentário aos denominados 'tempos modernos', que têm seu início no mundo a partir do desastre da talidomida, o que deu origem a uma série de ações em diversos países. Enquanto isso, o Brasil efetivamente consolidou um sistema cartorial para lidar com as questões referentes ao registro e fiscalização de medicamentos e outros produtos para consumo humano. Hoje, esse sistema, já deficiente na sua formação, sofre as tentativas de desregulamentação decorrentes do processo de homonização em curso nos países que compõem o Mercado Comum do Cone Sul, ou Mercosul.
Tempos modernos, então, para o Brasil, incluem uma segunda geração de malformações provocados pelo uso da talidomida, conforme tivemos a oportunidade de discutir recentemente (Oliveira et al., 1997). Tempos modernos, no âmbito da vigilância sanitária no Brasil, são as tentativas frustradas de retirar os hepatoprotetores, as associações de antibióticos em dose fixa e enfrentar a resistência descomunal da indústria, que alça o Brasil ao patamar de um dos cinco maiores mercados de medicamentos do mundo, com um perfil que consideramos absolutamente irracional, baseado apenas na mercadização e venda de produtos não essenciais.
O artigo apresentado por Suely Rozenfeld, além de atual, instigante e oportuno, como mencionamos ao início desta discussão, representa um passeio pela História, associado a um texto rico e didático, com uma revisão extensa dos diversos aspectos relacionados com a farmacovigilância. A descrição da classificação das reações adversas é merecedora de elogio.
Concluímos nossa consideração, chamando a atenção para a necessidade de estabelecer uma ponte efetiva entre as ações de farmacovigilância e o uso racional de medicamentos, prática que vem merecendo cada vez mais atenção por parte das agências internacionais e dos países centrais (WHO, 1991, 1992, 1994, 1997; Dukes, 1993; Hogerzeil, 1995). Novos tempos e novas diretrizes também deverão ser implantados no Brasil. Sinceramente, esperamos que as reflexões contidas no artigo de Suely Rozenfeld e os comentários diversos possam induzir as instituições acadêmicas a se engajarem na luta árdua, permanente e sem tréguas, a fim de, efetivamente, podermos construir um modelo de atenção à saúde que resgate os conceitos de eqüidade, universalidade e resolutividade assegurados pela legislação e que ainda não conseguimos implementar. A farmacovigilância, a vigilância em saúde e a assistência farmacêutica são partes integrantes destas propostas. Sua construção depende de nossos esforços conjuntos.
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