Eleonor Minho Conill 1 Christiano Augusto Pieralisi 1 Marco Aurélio de Anselmo Peres 1 Clair Castilhos 1 Angela Blatt Ortiga 1 Telma Tibes Rodrigues Li 1 Suely Nascimento 1 | O homem público em julgamento: avaliação da aplicação da técnica "tribunal do júri" para dirigentes municipais em Santa Catarina Public figures on trial: an assessment of the use of the "Law Court" technique for city officials in Santa Catarina, Brazil |
1 Departamento de Saúde Pública/Núcleo de Apoio à Municipalização e Implementação do Sistema Único de Saúde em Santa Catarina/NAM-SUS, Campus Trindade, Universidade Federal de Santa Catarina. C. P. 476, Florianópolis, SC 88040-900, Brasil. | Abstract This study describes the "Law Court" technique as applied to City Health Departments in the State of Santa Catarina, in dealing with the issue of obligations on the part of public officials. The project was the first part of a training course for public administrators held in 1997. The article presents the technique's components and results. Some 98% of the 156 participants had a positive opinion of the training course, considering it dynamic/participatory (31%), educational/stimulating reflection (27%), and realistic (24%). The technique fostered the discussion of the main subjects pertaining to the country's Unified Health System (SUS). Although all five juries acquitted the defendants, the issue of ethics was reported by 58% of the participants as the main prerequisite for a public administrator. Key words Human Resources in Public Health; Public Administration; Workshops Resumo O presente trabalho descreve a aplicação da técnica "tribunal do júri" ao conjunto de secretários municipais de saúde do Estado de Santa Catarina, para fins de sensibilização à questão dos deveres do administrador público, realizado como parte introdutória de um ciclo de formação para dirigentes municipais em 1997. As diferentes etapas que compõem a técnica são descritas apresentando-se a avaliação dos resultados obtidos. Dos 156 participantes, 98% foram favoráveis à inovação por considerá-la dinâmica/participativa (31%); educativa/reflexiva (27%) e por traduzir a realidade (24%). A técnica permitiu a discussão das principais temáticas de interesse para o SUS. Embora os cinco tribunais tenham absolvido o réu, a dimensão ética foi referida por 58% como principal atributo necessário ao homem público. |
Introdução
Nos últimos anos, têm sido feitos esforços no sentido de adequar a formação de dirigentes municipais para a gestão de sistemas locais do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa demanda, oriunda dos próprios secretários, através do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde/Conasems, foi apoiada pelo Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais, possibilitando a organização de um material instrucional específico pelo Instituto Brasileiro de Administração Pública (IBAM/ENSUR, 1995). No final do ano de 1996, com a perspectiva do início de uma nova gestão municipal, técnicos do Centro de Desenvolvimento de Recursos Humanos para a Saúde/CEDRHUS da Secretaria de Estado da Saúde e Núcleo de Apoio à Municipalização e Implementação do SUS, do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina, desenvolveram uma atividade para sensibilizar os secretários à questão dos direitos e deveres do homem público.
Ao longo do processo de transição democrática, diversos estudos se debruçaram sobre a problemática da natureza do Estado latino-americano e brasileiro (Fleury, 1994; Gershman, 1995) e da questão da construção de uma esfera pública democrática (Conill, 1995; Simionato & Nogueira, 1996).
A pesquisa intitulada a Municipalização da Saúde e o Poder Local no Brasil (Fleury & Carvalho, 1996 apud Conasems, 1997) mostrou o perfil dos secretários municipais de saúde e as inovações que vêm sendo realizadas. Foi constatado que 73% dos secretários apresentavam nível superior, sendo 42,7% médicos, seguidos de odontólogos (11%) e enfermeiros (10%). Embora 83% exercessem o cargo pela primeira vez, a maioria dos secretários fez curso de capacitação específica para exercício do cargo (55,9%). As inovações mais freqüentes situaram-se na dimensão social, estando relacionadas com um melhor controle social em razão de uma presença forte do Conselho de Saúde, da prestação de contas, da permeabilidade às demandas da sociedade e fornecimento de informações. A pesquisa aponta para um menor número de inovações na área gerencial e assistencial. Alerta para as conseqüências desse desequilíbrio, já que as mudanças sociais não estando acompanhadas por outras que garantam maior qualidade nos serviços, podem levar a um desencanto com a democratização da saúde.
Não nos parecia pertinente abordar a questão solicitada utilizando uma metodologia habitual, tal como aula expositiva, seminário ou grupos de leitura de texto. Organizou-se então uma oficina de trabalho de oito horas de duração, intitulada Tribunal do Júri, na qual, mediante a simulação de um julgamento, os participantes discutiram e vivenciaram as temáticas de interesse. Muito utilizadas no movimento de mulheres e na área de Educação em Saúde (Regia et al., 1988; Vianna et al., 1991), as oficinas de trabalho na formação de recursos humanos para a administração pública são de uso ainda incipiente. Este texto discute as etapas referentes à preparação da técnica, do material, treinamento de monitores, bem como o desenvolvimento da oficina e seus resultados. A avaliação foi feita utilizando-se uma metodologia qualitativa e quantitativa. Optou-se por uma observação sistematizada do evento com roteiro pré-determinado, feita por pesquisador não envolvido com a preparação da oficina. Esses dados foram cotejados com as respostas de um questionário aplicado aos participantes e analisados através do programa EPIINFO versão 6.0.
1) A preparação da oficina, do material e o treinamento dos monitores
A técnica tribunal do júri é composta pelos seguintes personagens: três advogados de defesa; três advogados de acusação (promotoria); três testemunhas de acusação e três testemunhas de defesa; sete jurados; um réu; um juiz; um escrivão. Os demais presentes são reunidos como grupo de apoio para defesa e acusação ou podem assumir outros papéis, tais como imprensa, policiais etc.
Podem ser feitos tribunais onde o acusado é um assunto genérico, tal como a sociedade de classes, a violência urbana, o aborto, entre outros. Trabalhou-se com um caso fictício que permitiu, além da vivência relacionada aos deveres de um secretário municipal, a discussão de temáticas de interesse na implementação do SUS, tais como o financiamento, suas bases legais, a universalização, a relação com prestadores privados, o papel das três esferas de governo, o controle e a participação social. Assim, a sinopse do caso que deu origem ao tribunal ficou sendo a seguinte: "Diretor de um Hospital Infantil fictício denominado Bom Menino pede descredenciamento do SUS; o Secretário Municipal de Saúde do Município de São Roque (também fictício) não toma providências; uma criança vem a falecer; os pais denunciam o Secretário de Saúde ao Ministério Público acusando-o de: 1) conduta administrativa omissiva, 2) inércia administrativa, retardando ato que deveria ter praticado, 3) descaso com a comunidade, 4) negligência administrativa tendo como conseqüência a morte da criança.
Foram preparadas pastas com material de apoio para a defesa e acusação com os autos do processo, recortes de jornais sobre os problemas de funcionamento do SUS, textos acadêmicos sobre administração, cargo público, políticas públicas, controle social e leis. Para melhorar o rendimento da atividade, o tribunal foi precedido por uma peça de teatro sobre o episódio previsto para o julgamento, feita por crianças do grupo Saúde em Cena, que realiza teatro com escolares da rede pública de Florianópolis. Para o encerramento da oficina, foi prevista a conferência intitulada "Saúde como um Bem Público", proferida por jurista que atua na área do Direto Sanitário.
2) Análise dos resultados: a criatividade e a inovação foram bem sucedidas
O Estado de Santa Catarina, com uma população de 4.844.624 habitantes, é constituído por 260 municípios, reagrupados em 18 Associações Regionais de Municípios. Aproximadamente 77% dos municípios catarinenses apresentam população menor que vinte mil habitantes, abrigando 32% da população total de Estado (SES/SC, 1994). A procedência dos participantes reproduziu essa distribuição demográfica, 79% vieram de municípios com até vinte mil habitantes.
Compareceram ao evento um total de 156 participantes, sendo 143 secretários municipais e 13 representantes, provenientes de 17 das 18 regiões do Estado; destes, apenas noventa responderam aos questionários, o que dá uma taxa de 42,3% não respondentes. Uma forma de contornar os possíveis erros advindos da não-resposta foi cotejar os resultados quantitativos com aqueles oriundos da observação qualitativa, realizada através de um diário de campo. As informações do questionário foram em geral coerentes com aquelas apontadas na avaliação qualitativa.
Dos participantes, 71% já haviam tido uma experiência administrativa anterior. O dado de maior relevância quanto à identificação dos secretários é aquele referente a sua categoria profissional, em que se nota uma predominância de pessoal de enfermagem (27% são enfermeiros, técnicos ou auxiliares de enfermagem); os demais são médicos (17%) e professores (11%). Observa-se ainda que 25% pertencem a um conjunto diversificado de profissões distantes da área de saúde, tais como físico e agente de turismo, entre outras. A Figura 1 apresenta a profissão desses secretários.
Quanto à técnica, 98% relataram ter gostado, manifestando interesse em utilizá-la em treinamento com pessoal de sua secretaria. As razões expressas referem-se ao fato de ela ser dinâmica e permitir a participação (31%), possibilitar um processo educativo/reflexivo (27%) e traduzir a realidade (24%) (Figura 2).
As principais dificuldades apontadas na realização da oficina foram em relação ao tempo, considerado insuficiente (17%), ao espaço físico inadequado (10%) e à falta de clareza na explicação da técnica (10%). Questionados sobre qual das atividades foi mais proveitosa, 75% opinaram pelo conjunto, mas consideradas separadamente as atividades inovadoras, tanto o tribunal, quanto a peça de teatro preponderaram sobre a conferência. Esses resultados coincidem com a avaliação qualitativa que mostrou um bom envolvimento dos participantes com a criação de fatos novos não previstos no material distribuído.
3) As temáticas do SUS e as contradições entre a opinião sobre o homem público e os resultados do julgamento
A riqueza das argumentações foi o ponto forte dos resultados obtidos pela técnica, que cobriram uma série de princípios do SUS: a universalidade do acesso; a integralidade da atenção; a descentralização e o papel que cada esfera de governo deveria desempenhar; o financiamento e a compra de serviços complementares à rede pública; a efetividade do controle social; o controle e a avaliação dos serviços; a humanização na relação médico-paciente.
Os enfoques dessas argumentações podem ser reagrupados em éticos, legalistas ou críticos, questionando a viabilidade política e financeira da implementação do SUS com as seguintes polêmicas: conduta omissiva versus inércia administrativa; clientelismo versus transparência nos tetos financeiros; texto constitucional avançado versus letra morta; postura corporativa defensiva versus ética e dignidade; aceitação de modelo excludente versus luta pela cidadania.
Nenhum dos cinco tribunais considerou o réu responsável direto pela morte da criança, e apenas dois o consideraram negligente no exercício da função pública. A maioria considerou que o réu enquanto homem público demonstrou desconhecimento de seus deveres, faltando com o dever da eficiência.
Perguntados sobre os principais problemas encontrados na administração pública brasileira e sobre os principais atributos do homem público, a maior parte dos participantes referiu-se a atributos éticos (58%) (Figura 3). Houve uma aparente contradição entre os resultados dos tribunais relativamente tolerantes com o comportamento do réu e a importância atribuída pelos secretários em relação ao compromisso e à moralidade na administração pública.
Essa contradição apareceu também em diferentes reações contrárias aos resultados dos tribunais, tais como: "Gente, acabou o teatro, agora vamos cair na real". "Fomos éticos ao crucificarmos a mãe?" "Foram muito fortes os ataques alegando negligência, maus tratos, insensibilidade com o filho enfermo". "Foi acusada de trocar os remédios e o leite da criança por cigarro e bebida".
Inúmeras reflexões foram feitas, em busca de justificativas para este viés comportamental, dos coletivos de defesa, porque, na verdade, eram todos secretários, tratava-se do julgamento dos seus próprios pares, todos, portanto, sentindo-se réus. A saída foi transferir a responsabilidade para o personagem mais frágil da estória: "Provavelmente, se a vítima fosse adulto, seria responsabilizada pela sua própria morte, e nem estaria aqui para se defender (...) como é menor, responsabilizou-se a mãe".
Essas reações mostraram ainda que os participantes parecem estabelecer uma ligação clara entre os problemas locais e os determinantes estruturais mais gerais. De forma bastante participativa, os grupos concluíram que os fatores realmente determinantes na absolvição do réu foram bem explorados pelos tribunais, pois, na gestão incipiente, o município não tem ingerência sobre administração hospitalar ou compra de serviços, nem tampouco cabe ao secretário municipal determinar o valor de uma diária. "Todos sofremos de inércia administrativa porque está intimamente ligada ao sistema financeiro (...) áreas sociais como saúde não são prioridades no projeto neoliberal, vide os 20 bilhões destinados recentemente ao sistema financeiro."
Conclusão
A primeira das conclusões importantes deste texto é a aceitação por parte dos secretários de uma técnica inovadora. Um aspecto crítico do trabalho foi o tempo excessivamente longo de sua preparação (quatro meses), o que pode ser explicado, em parte, pelas adaptações realizadas na técnica e pela insegurança dos monitores.
O trabalho permitiu conhecer algumas especificidades dos Secretários Municipais do Estado de Santa Catarina, que parecem diferir do conjunto do Brasil. Nesse Estado a categoria predominante não é médica, mas sim da área de enfermagem. A análise das temáticas discutidas nos tribunais confirmam, como mostram Fleury & Carvalho (Fleury & Carvalho, 1996), a importância crescente dos Conselhos Municipais de Saúde como um ator emergente na dinâmica do poder local em saúde. Mostra também a importância atribuída aos aspectos éticos na administração pública, que superam aqueles de capacitação técnica. Seria oportuno aprofundar um pouco mais a aparente contradição entre o discurso e a prática, evidenciada neste trabalho ao compararmos essa opinião e os resultados dos tribunais que 'absolveram' os secretários. Por essa e outras razões, é importante a incorporação na área de recursos humanos em saúde de técnicas que trabalhem novas formas de comunicação de pessoal, técnicas estas que explorem, para além do cognitivo, aspectos vivenciais e afetivos.
Referências
CONILL, E. M.; BRAVO, M. I. S. & COELHO, F. D., 1995. Políticas públicas e estratégias urbanas: o potencial político dos conselhos de saúde na construção de uma esfera pública democrática. Serviço Social e Sociedade, 49: 98-116.
FLEURY, S., 1994. Estado sem Cidadãos Seguridade Social na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz.
FLEURY, S. & CARVALHO, A., 1996. Municipalização da saúde e o poder local no Brasil. EBAP/Fundação Getúlio Vargas. Jornal do CONASEMS, ano III, no 34, Agosto de 1997, pp. 10-12.
GERSHMANN, S., 1995. A Democracia Inconclusa Um Estudo da Reforma Sanitária Brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz.
IBAM (INSTITUTO BRASILEIRO DE ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL)/ENSUR (ESCOLA NACIONAL DE SERVIÇOS URBANOS), 1995. Planejando a Saúde no Município: Proposta Metodológica para Capacitação. Rio de Janeiro: IBAM.
REGIA, M.; LIMA, M. J.; BAIÃO, I.; XAVIER, D.; CAMURÇA, S. & OLIVEIRA, E. M., 1988. Como Trabalhar com Mulheres. Rio de Janeiro/Petrópolis: Vozes.
SES/SC (Secretaria do Estado de Saúde de Santa Catarina), 1994. Plano Estadual de Saúde. Florianópolis: SES.
SIMIONATO, V. & NOGUEIRA, V. M. R., 1996. O direito à saúde e a ampliação política do espaço público. Plural, 8:70-74.
VIANNA, R.; MARCONDES, R.; LESSA, Z. & AUGUSTO, M., 1991. Educação em Saúde e a Mobilização Comunitária, Manual de Técnicas. São Paulo: Centro de Apoio ao Desenvolvimento de Assistência Integral à Saúde Secretaria do Estado de Saúde de São Paulo.