EDITORIAL
Bioética e saúde pública
O campo interdisciplinar da ética aplicada e, em particular, a bioética, impõem-se cada vez mais como saberes cognitivos e normativos de grande relevância acadêmica e social. As evidências desse fato nos chegam de várias formas e os próprios meios de comunicação de massa não cessam de apresentar as 'últimas' e espantosas notícias originárias dos laboratórios de biologia molecular e engenharia genética. Isso traz a público questões éticas cruciais e seus desdobramentos, como, por exemplo: o desenvolvimento de biotecnologias de segunda geração, a proliferação de estratégias de mediação comunicacional e divulgação de conteúdos biomédicos, o clima generalizado de ameaça quanto às perspectivas de biossegurança com os organismos geneticamente modificados introduzidos no ambiente. Sem esquecer, evidentemente, os problemas morais que surgem na própria saúde pública, tais como a saúde reprodutiva e o direito à autonomia procriativa, por um lado, e a alocação de recursos e a justiça sanitária, por outro.
Enquanto disciplina acadêmica, alguns dos princípios prima facie da bioética foram formulados inicialmente, sobretudo, para defender a figura emergente do consumidor de bens sanitários contra o chamado paternalismo médico, praticado pelo médico tradicional, tendo em conta o aspecto essencialmente interindividual da relação médico-paciente. Naquele primeiro momento de vigência da bioética (anos 70-80), o paciente-consumidor foi considerado como um indivíduo a ser protegido, não só da autoridade médica, mas, também, da sociedade. É por isso que o princípio de autonomia garante a legitimidade das decisões que dizem respeito ao paciente. Por sua vez, o princípio de beneficência e sua versão 'fraca', o princípio de não-maleficência, exigem que o paciente seja o beneficiário direto das intervenções, ou que não seja prejudicado por práticas médico-sanitárias que o envolvem.
Entretanto, hoje, a relação médico-paciente, ou melhor, entre prestador de serviços em saúde e seus consumidores, tornou-se mais complexa. Entram em cena novos atores, como as instituições públicas e o Estado; antigas e novas formas de organização social, como as comunidades e as organizações não governamentais. Surgem, então, novos conflitos morais referentes ao aumento dos custos de prevenção, diagnósticos e terapias, que tornaram a medicina, em particular, e as ações de saúde pública, em geral, atividades sociais cada vez mais relevantes, em que nem sempre o que é bom para o indivíduo o é também para a coletividade, e vice-versa. Isto é patente, por exemplo, quando se considera a questão dos custos e das diretrizes das políticas públicas. Se, por um lado, a otimização e a distribuição dos recursos do ponto de vista da saúde coletiva permitem, em princípio, atender maior número de pacientes-consumidores com a expectativa de melhor qualidade de vida, por outro, podem não coincidir com os melhores interesses do indivíduo. É por esta razão que é possível falar-se numa fase propriamente pública da bioética a fase atual.
Isso não implica, contudo, que não se deva manter a distinção entre níveis de pertinência legítimos para a análise moral. Com efeito, existem direitos "de primeira geração", que dizem legitimamente respeito ao indivíduo (como o direito à autonomia procriativa), e "de segunda geração", que se referem, preferencialmente, à coletividade (como o direito à justiça distributiva na alocação de recursos). Há, ainda, os "de terceira geração", relativos ao meio ambiente saudável, ao bem-estar animal e aos direitos das gerações futuras.
Os Cadernos da Saúde Pública pretendem inscrever este número temático nessa nova e complexa configuração moral, mediante contribuições de destacados bioeticistas do cenário internacional e autores nacionais, na esperança de que esse exercício de pluralismo democrático sirva para aprofundar o debate bioético no âmbito da saúde pública.
Fermin Roland Schramm
Luis David Castiel
Escola Nacional de Saúde Pública
Fundação Oswaldo Cruz
Bioethics and Public Health
The interdisciplinary field of applied ethics and in particular that of bioethics are increasingly making their presence felt as cognitive and normative areas of knowledge of great academic and social relevance. Evidence of this fact has reached us in various ways. The mass media never stop bombarding us with the 'latest' alarming news from molecular biology and genetic engineering laboratories, bringing crucial ethical issues and their developments into the public light. For example, the development of second-generation biotechnology, the proliferation of media strategies for publishing or broadcasting biomedical information, and a pervasively threatening climate as to biosafety issues with genetically modified organisms introduced into the environment, not to mention, obviously, the moral issues arising in public health itself, like reproductive health and the right to procreative autonomy on the one hand and allocation of resources and health justice on the other.
As an academic discipline, some of the prima facie principles of bioethics were initially formulated to defend the emerging figure of the health consumer against so-called 'medical paternalism', as practiced by the traditional physician, in light of the essentially interindividual nature of the physician-patient relationship. In this first stage of bioethics (in the 1970s and 80s), the patient-consumer was considered an individual to be protected not only from medical authority, but also from society. That is why the autonomy principle guarantees the legitimacy of decisions regarding the patient. The beneficence principle, in turn, and its 'weaker' version, the non-maleficence principle, demand that patients be the direct beneficiaries of interventions and not be harmed by medical and health practices involving them.
However, today's physician-patient relationship (rather, the relationship between health care providers and consumers) has become more complex. New players have entered the stage, like public institutions and the state, along with old and new forms of social organization, like communities and nongovernmental organizations. New moral conflicts thus arise over the increased costs of prevention, diagnosis, and treatment, which have made medicine in particular (and public health measures in general) increasingly relevant social activities, where what is good for the individual is not always good for the community, and vice versa. This becomes obvious, for example, with the issue of costs and guidelines for public policies. While the optimization and distribution of resources from the collective health point of view allow, in principle, to treat more patient-consumers with the expectation of improved quality of life, this may not coincide with the best interests of the individual. We can thus speak of the public phase of bioethics per se, the current phase.
Still, this does not imply that one should not maintain a distinction between legitimate levels of pertinence for moral analysis. In fact, there are 'first generation' rights which legitimately pertain to the individual (like the right to procreative autonomy) and 'second generation' rights relating preferentially to the community (like the right to distributive justice in the allocation of resources). Further, there are 'third generation' rights pertaining to a healthy environment, animal welfare, and the rights of future generations.
Cadernos de Saúde Pública (Reports in Public Health) intends this special thematic issue to be part of this new and complex moral configuration, with contributions from outstanding bioethicists from the Brazilian and international scenario, in the hope that this exercise in democratic pluralism will help fuel the bioethics debate in the public health field.
Fermin Roland Schramm
Luis David Castiel
Escola Nacional de Saúde Publica
Fundação Oswaldo Cruz