ARTIGO ARTICLE

 

 

 

 

 

Neice Müller Xavier Faria 1
Luiz Augusto Facchini 1
Anaclaudia G. Fassa 1
Elaine Tomasi 1


Processo de produção rural e saúde na serra gaúcha: um estudo descritivo  

The rural labor process and health in the Southern Brazilian mountains: a descriptive study

1 Núcleo de Saúde do Trabalhador, Departamento de Medicina Social, Universidade Federal de Pelotas. Avenida Duque de Caxias 250, 3o pavimento, Fragata, Pelotas, RS 96030-000, Brasil. neicef@italnet.com.br   Abstract This cross-sectional study among rural workers in the mountainous region of the southernmost Brazilian State of Rio Grande do Sul was designed to identify the characteristics of work performed on family farms. The research focused on the socio-demographic profiles of rural workers, identifying the characteristics of rural labor and describing the prevalence of some disease entities in such populations. Some 1479 rural workers from 495 farms were interviewed. In this sample, 87% of the individuals were members of the farm-owning family, mean age was 41 years, 56% were males, and mean schooling was 5 years. Farms had a mean area of 37 hectares, 50% had at least one type of farm machinery, and fruits constituted the main crop. About 75% of workers handled several types of pesticides, while 12% reported at least one lifetime episode of pesticide poisoning. Prevalence of minor psychiatric disorders was 36%, and annual frequency of occupational injuries was 10%. There was a wide variety of activities and occupational risks. The high prevalence of health problems identified in the study calls attention to the need for measures to promote and protect rural workers' health.
Key words Pesticide Poisoning; Rural Workers; Occupational Accidents; Agriculture  

Resumo Realizou-se um estudo transversal entre trabalhadores rurais na região serrana do Rio Grande do Sul. O objetivo foi estudar o perfil sócio-demográfico da população, conhecer as características do trabalho rural e descrever a prevalência de algumas patologias na população referida. A amostra foi de 1.479 trabalhadores, em 495 estabelecimentos agrícolas. Nesta amostra, a idade média foi de 41 anos, 56% eram do sexo masculino, com escolaridade média de cinco anos, sendo 87% da família proprietária. Os estabelecimentos tinham área média de 37 ha, 50% tinham pelo menos um tipo de máquina agrícola e a principal produção era a fruticultura. Cerca 75% dos trabalhadores lidavam com agrotóxicos de vários tipos e 12% referiram intoxicação por estes produtos em algum momento da vida. A prevalência de transtornos psiquiátricos menores foi de 36%, a freqüência anual de acidentes de trabalho foi 10%. Os dados revelam a diversidade de atividades e de riscos ocupacionais. As altas prevalências dos problemas de saúde avaliados alertam para a necessidade de se priorizar ações de proteção para a saúde do trabalhador rural.
Palavras-chave Intoxicação por Agrotóxicos; Trabalhadores Rurais; Acidentes de Trabalho; Agricultura

 

 

Introdução

 

O presente estudo foi realizado nos Municípios de Antônio Prado e Ipê na região serrana do Rio Grande do Sul, onde predominam pequenas propriedades com culturas diversificadas e estrutura familiar de produção agrícola sendo, na sua grande maioria, descendentes de imigrantes italianos (Bracagioli Neto, 1993). Segundo Censo Demográfico (IBGE, 1991), a população rural representava 43% dos habitantes de Antônio Prado e 68%, de Ipê. Antônio Prado é uma área de colonização italiana, baseada em minifúndio, com culturas anuais de subsistência e fruticultura. O Município de Ipê encontra-se em uma área de transição entre o que se denomina colônia e campo, coexistindo dois sistemas de produção: o primeiro tem características similares às de Antônio Prado, enquanto a região de campo, de colonização originalmente portuguesa, está voltada basicamente à pecuária extensiva (Bracagioli Neto, 1993). Em ambas as comunidades é crescente o número de produtores sintonizados com a agroecologia.

O processo de modernização tecnológica iniciado nos anos 50 com a chamada "Revolução Verde" (Brum, 1988), modificou profundamente as práticas agrícolas, gerou mudanças ambientais, nas cargas de trabalho e nos seus efeitos sobre a saúde, deixando os trabalhadores rurais expostos a riscos muito diversificados. A modernização da agricultura foi acompanhada por um incremento da pesquisa agronômica, sociológica, econômica e tecnológica no Brasil e em várias partes do mundo (Abramovay, 1994; Goodman et al., 1990; Jean, 1994; Souza Filho, 1994). Na área de saúde pública este incremento ainda é pequeno, talvez devido à dispersão geográfica dos trabalhadores rurais, que dificulta a realização de estudos de base populacional. A maioria dos estudos sobre o tema utiliza dados secundários, ou é sobre usuários de algum serviço, ou ainda compara a população rural à população urbana sob vários aspectos e recortes (Vieira et al., 1983; Notkola et al., 1992; Senthilsevan et al., 1992; Zejda et al., 1993). Portanto, persiste a grande escassez de estudos epidemiológicos de base populacional enfocando os problemas de saúde do trabalhador rural.

O trabalho rural envolve 26% do total das pessoas com dez ou mais anos ocupadas no país, crescendo para 30% na região Sul. Cerca de dois terços deste contingente estão vinculados à agricultura familiar (IBGE, 1985, 1995). No Brasil, a agricultura familiar possui menor quantidade de terra, recebe menor volume de crédito e, apesar disso, contribui com importante volume de produção, especialmente na região sul. Ou seja, a agricultura familiar é mais eficiente no uso dos fatores terra e capital que o setor patronal rural (FAO/INCRA, 1996).

Procurando conhecer as condições de trabalho e saúde no meio rural, buscou-se descrever o trabalhador rural segundo amplo mapeamento de exposições ocupacionais, perfil sócio-demográfico e prevalências de morbidades psiquiátricas, acidentes de trabalho e intoxicações agudas por agrotóxicos.

 

 

Material e métodos

 

Neste estudo utilizou-se o delineamento transversal. Considerou-se trabalhador rural toda pessoa que realizava no mínimo 15 horas semanais (IBGE, 1992) em atividades de agricultura e pecuária para fins de comercialização e/ou consumo (Faria et al., 1992). Devido ao limite etário de validação dos instrumentos para morbidade, foram selecionados os trabalhadores com idade mínima de 15 anos. Definiu-se como parte integrante de um estabelecimento, a totalidade da área envolvida no sistema produtivo, independente de estar oficialmente partilhada entre os membros da família (IBGE, 1991).

Calculou-se a amostra por meio do programa Epi-Info, versão 6.02, considerando os seguintes parâmetros: nível de confiança de 95%, poder estatístico de 80%, prevalência mínima de morbidade para os não-expostos de 7%, relação de três expostos para um não-exposto (exposição principal: uso de agrotóxicos) e risco relativo de 2. Sobre a estimativa obtida, acrescentaram-se 10% para cobrir possíveis perdas e mais 30% para ajustes de fatores de confusão, totalizando 1310 pessoas. A amostra foi selecionada em múltiplos estágios, com o mínimo de 220 estabelecimentos para cada município, sendo estimados três trabalhadores rurais por unidade produtiva. Foram entrevistados todos os indivíduos que trabalhavam no estabelecimento, qualquer que fosse sua relação de trabalho.

Em razão da diversidade entre as instituições envolvidas, sob alguns aspectos metodológicos ocorreram diferenças por município. As unidades produtivas foram sorteadas em Antônio Prado baseadas na lista de moradores da área rural organizada pelo Escritório Municipal da Associação Rio-Grandense de Empreendimentos Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) de 1995. Em Ipê, devido à ausência desta lista, foi utilizado o cadastro dos produtores primários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em 1995. Foram sorteados entre 20 a 25% dos estabelecimentos de cada município. Um estabelecimento sorteado era substituído pelo mais próximo quando os indivíduos não preenchiam o critério de elegibilidade do estudo. No estudo piloto e no início da pesquisa observou-se uma média de 2,7 trabalhadores por propriedade. Por esta razão, foi feito um sorteio complementar de mais 25 propriedades em cada município. Esta média foi crescendo à medida e que a pesquisa se deslocou para comunidades mais distantes da sede do município, sugerindo um maior fluxo migratório para a cidade nas comunidades mais próximas, e ampliando a amostra final obtida.

As 11 entrevistadoras, em Antônio Prado, eram predominantemente alunas de segundo grau. Em Ipê foram 18 os entrevistadores; eram todos professores municipais da área rural, a maioria com segundo grau completo. A equipe recebeu treinamento de 40 horas com discussão do questionário, entrevistas simuladas e esclarecimentos sobre temas da pesquisa. O estudo piloto testou o planejamento da pesquisa em cada município e permitiu a avaliação do questionário, totalizando 56 entrevistas em 21 propriedades.

Os entrevistados foram informados sobre o tema e os compromissos éticos da pesquisa, sendo o seu consentimento verbal um requisito para a realização da entrevista.

O trabalho de campo foi realizado em cinco semanas, durante a safra da maioria das culturas da região, nos meses de janeiro e fevereiro de 1996. Em Antônio Prado, a equipe em conjunto completava as entrevistas em uma comunidade, antes de passar para a seguinte. Em Ipê, grupos de dois a quatro entrevistadores percorriam as comunidades vizinhas de sua moradia. Todas as informações foram obtidas por intermédio de entrevista direta.

O controle de qualidade, feito pelas supervisoras do trabalho de campo, constou de revisita em 10% das propriedades e aplicação das principais questões dos questionários a pelo menos um trabalhador em cada estabelecimento.

Posteriormente, os questionários foram revisados, codificados e digitados em dupla entrada, gerando-se um banco de dados no Epi-Info. A análise dos dados foi feita com o uso do programa SPSS for Windows, versão 6.1. Realizou-se a análise descritiva dos principais fatores avaliados, utilizando-se medidas de tendência central, dispersão e análise de proporções. Avaliou-se, através do índice de Kappa, a consistência e, de certa forma, a confiabilidade das respostas, comparando a entrevista original com o resultado do controle de qualidade. A magnitude da prevalência de transtornos psiquiátricos menores foi avaliada pela sua padronização direta para idade e sexo (Kirkwood, 1988), comparando com estudo realizado em população urbana de Pelotas (Lima et al., 1996).

Para caracterizar o processo de trabalho rural utilizaram-se dois questionários: o primeiro dirigido ao estabelecimento, captando informações sobre a estrutura agrária, agrotóxicos usados e sistema produtivo; o segundo questionário era aplicado ao trabalhador, caracterizando as exposições ocupacionais individuais e os problemas de saúde. A maior parte dos questionários foi desenvolvida para esta pesquisa, valendo-se do estudo anterior realizado no Rio Grande do Sul (Faria et al., 1992). Em ambos os instrumentos, as informações foram baseadas na percepção dos entrevistados. Foram obtidos os seguintes indicadores:

• A estrutura agrária da área foi medida em hectares (ha) por tipo de uso, número de trabalhadores e relações de trabalho. O padrão tecnológico foi construído com base no nível de mecanização e do uso de insumos externos como pesticidas, fertilizantes e rações. As unidades motorizadas (medidas como própria ou alugada/emprestada) foram categorizadas como máquinas agrícolas, veículos para transporte da produção e automóveis.

• O uso de insumos na propriedade foi avaliado por freqüência de uso e tipo químico, sendo apresentada uma lista com cerca de 40 opções de produtos entre pesticidas e produtos veterinários, além de fertilizantes e rações. Para definição de agrotóxicos foi usada como referência a lei brasileira no 7.802/89 (MTPS, 1991).

• A produção agropecuária foi aferida pela média anual de produção das quatro principais culturas, pelo número médio de cabeças dos quatro principais tipos de animais, e pela média anual de quatro produtos de origem animal.

• As jornadas de trabalho foram medidas em horas diárias, em tarefas agrícolas e não-agrícolas, na safra e na entressafra. A antigüidade foi definida pelo número de anos morando na propriedade. Os ritmos de trabalho foram avaliados mediantes as tarefas que exigiam ritmo acelerado e do número de meses no ano com ritmo intenso. O uso de equipamentos agrícolas foi avaliado como o número de dias por mês usando máquinas, implementos agrícolas, ferramentas manuais e equipamentos para agrotóxicos.

• Os agrotóxicos foram caracterizados segundo tipos químicos por grupo de ação e por freqüência de uso, tempo de exposição (anos de uso e meses/ano de uso intenso), formas de exposição, uso de equipamentos de proteção individual (EPI) e hábitos de segurança.

Avaliaram-se os seguintes indicadores sócio-demográficos e comportamentais: município, sexo, idade (em anos completos), estado civil, etnia, tabagismo (por tipo e quantidade de fumo), escolaridade (em anos completos com aprovação).

 

Caracterização dos desfechos

 

• Indicadores de saúde mental

 

Transtornos psiquiátricos menores: foram medidos pelo SRQ-20 (Self-Reported Questionnaire), sendo positivo o teste com oito respostas alteradas para mulheres e seis, para homens (Mari & Williams, 1986).

Uso de medicação psiquiátrica e hospitalização por motivos psiquiátricos: foram obtidos pelo consumo de medicamentos e hospitalização para "problemas de nervosismo ou problemas de tristeza e desânimo", em algum momento da vida.

Alcoolismo: foi medido com utilização do teste CAGE (Masur & Monteiro, 1983).

 

• Acidente de trabalho

 

Foram caracterizados os acidentes por traumatismos e intoxicações (por agrotóxicos, peçonhentos e outros), que necessitaram alguma forma de assistência (inclusive tratamentos caseiros) e que ocorreram no período entre 01/02/95 a 31/01/96.

 

• Intoxicação aguda por agrotóxicos

 

Foi obtida a história pregressa de intoxicações e a necessidade de hospitalização no último episódio.

 

 

Resultados

 

Foram entrevistados 1.479 trabalhadores rurais de 495 propriedades (com médias de 3,2 trabalhadores por unidade produtiva em Antônio Prado e 2,8, em Ipê). Não foi possível entrevistar 5% dos elegíveis (n = 75 pessoas) e raras foram as recusas (menos de 1% do total).

 

Perfil sócio-demográfico dos trabalhadores

 

As mulheres constituíram quase metade dos trabalhadores em atividade (Tabela 1). A média de idade foi de 41,4 anos (desvio padrão (DP) = 15,6) e 8% da amostra tinham idade superior a 65 anos.

 

 

Além da amostra estudada (n = 1.479), em 22% das propriedades foram identificadas 161 crianças até 14 anos, que preenchiam o critério de trabalhador rural utilizado no estudo. Desta maneira, cerca de 10% da força de trabalho das propriedades estudadas seriam constituídas por crianças. Agrupando-se estas crianças com os adolescentes de 15 a 20 anos, verificou-se que 18% da força de trabalho das propriedades seriam constituídas pelo segmento infanto-juvenil.

A média de escolaridade foi de 4,8 anos (DP = 2,7), não havendo diferenças significativas segundo o gênero. Apenas 2% entrevistados tinham curso técnico de segundo ou terceiro grau em área relacionada às atividades agrícolas. Por outro lado, 48% recebiam orientação técnica para seu trabalho pelo menos uma vez ao ano.

Cerca de 93% dos trabalhadores eram de origem italiana e 74% eram casados (Tabela 1). Na amostra cerca de 13% dos trabalhadores eram fumantes e 12% ex-fumantes.

 

Área dos estabelecimentos

 

As unidades produtivas tinham em média 37,2 hectares (DP = 70,2 ha), porém 87% delas apresentavam menos de 50 ha e 56%, até 25 ha. A propriedade rural típica de Antônio Prado tinha área de 25 ha, enquanto a média em Ipê tinha o dobro do tamanho. Cerca de 7,5 ha por propriedade eram destinados à agricultura, não havendo diferenças significativas entre os municípios. Entretanto, em Ipê a área usada para pecuária (média = 36 ha) era cerca de três vezes maior do que a de Antônio Prado.

 

Produção agrícola e infra-estrutura

 

A região caracterizava-se pela diversidade das atividades agrícolas, especialmente a fruticultura presente em 70% dos estabelecimentos de Antônio Prado e 41%, de Ipê. Entre os estabelecimentos estudados destacaram-se pela importância econômica a uva, referida em 45%, e a maçã, em 15%. Além disso, cerca de 81% das unidades produtivas cultivavam milho (como insumo e/ou fins comerciais) e 36%, feijão. Outras culturas de destaque eram a moranga, verduras, alho, cebola, pêssego e pastagem. A produção animal era centrada em aves, bovinos e suínos. Esta atividade adquiria maior importância econômica nas propriedades em que a produção de aves e suínos era feita sob um regime de integração com a indústria, e nos grandes estabelecimentos de Ipê, que concentravam os rebanhos bovinos.

A distribuição das atividades agrícolas por município mostrou que 65% dos estabelecimentos de Antônio Prado produziam uva, enquanto apenas 25% dos estabelecimentos de Ipê dedicavam-se a esta cultura. Em relação à cultura da maçã, a proporção de estabelecimentos de Ipê (21%) era o dobro da de Antônio Prado, enquanto para o feijão a proporção de Ipê (54%) era três vezes maior que Antônio Prado.

Em torno de 60% dos estabelecimentos possuíam automóveis e/ou implementos agrícolas. Metade das propriedades possuía pelo menos uma máquina agrícola e cerca de 38% tinham veículos para transportar a produção.

 

Relações de trabalho e estrutura familiar

 

A grande maioria dos trabalhadores entrevistados (87%) eram membros da família proprietária do estabelecimento. Destes, 90% eram da família nuclear, ou seja, incluíam o chefe, o cônjuge e os filhos. Apenas 7% eram empregados fixos ou temporários e 6% eram parceiros ou arrendatários.

A contratação de mão de obra complementar ocorreu nas propriedades com maior área, melhores indicadores econômicos e/ou maior atividade produtiva. Estas propriedades (n = 58) tinham área média de 111,9 ha (DP = 179,9), 86% delas possuíam máquinas e/ou veículos agrícolas, 77% tinham automóvel, 53% tinham mais de 20 cabeças de gado bovino e 81% estavam no grupo com maior volume de produção.

 

Dimensão temporal do processo de trabalho

 

Cerca de 76% dos entrevistados moravam há mais de 10 anos na propriedade e 54% morava há mais de 20 anos no mesmo local.

Na entressafra, a jornada média de trabalho (agrícola e não-agrícola) foi 10,6 horas diárias (DP = 2,9), enquanto na safra foi 12,5 horas diárias (DP = 2,6). Na entressafra, 77% das pessoas relataram trabalhar regularmente mais de oito horas diárias. Na safra, metade dos agricultores trabalhava mais de 12 horas por dia. As jornadas totais foram similares para homens e mulheres, tendo estas últimas um tempo maior de trabalho não-agrícola. Considerando apenas o trabalho agrícola, as jornadas foram superiores a 8 horas diárias para 32% das pessoas, na entressafra, e para 70%, na safra (16% acima de 12 horas/dia).

Em torno de 41% dos entrevistados trabalhavam em ritmo acelerado mais de seis meses por ano. Entre outubro e fevereiro, o trabalho acelerado ocupou 55% das pessoas durante no mínimo quatro meses contínuos (Figura 1). Entre as tarefas referidas como de ritmo acelerado destacaram-se colheita (35% das referências); preparo de solo e plantio (12%); limpeza da lavoura e poda (11%), e lida com animais (7%). Apenas 2% de pessoas relataram ter sempre ritmo tranqüilo no trabalho.

 

 

Exposição individual a equipamentos agrícolas

 

Em relação aos principais equipamentos agrícolas, observou-se que 98% dos trabalhadores usavam ferramentas manuais, 41% usavam máquinas e 45% usavam implementos agrícolas. Considerando uma freqüência de uso superior a 10 dias por mês, 22% dos entrevistados lidavam com máquinas agrícolas e 75%, com ferramentas manuais.

 

Uso de agrotóxicos

 

Cerca de 95% das unidades produtivas referiram o uso regular de algum pesticida, embora em alguns casos o uso fosse restrito a formicidas, sulfato de cobre e/ou algum produto veterinário. Além disso, 64% dos estabelecimentos costumavam usar rações industrializadas. Pelo menos 75% dos trabalhadores utilizaram produtos agrotóxicos em suas atividades. Para selecionar os trabalhadores que usavam pesticidas de forma mais intensa na agricultura, excluíram-se aqueles que usavam exclusivamente sulfato de cobre, formicidas e/ou produtos veterinários, e, ainda assim, identificou-se que 69% dos agricultores estão expostos regularmente aos agrotóxicos. Destes, 89% eram aplicadores de pesticidas.

Sobre o destino das embalagens de pesticidas, observou-se que 65% das unidades produtivas enterravam e/ou queimavam, 18% abandonavam no campo e apenas 11% dispunham de depósitos específicos. Na Figura 2, os pesticidas mais usados foram agrupados por função química, e alguns separados conforme uso na agricultura ou pecuária.

Na maioria dos estabelecimentos eram utilizados simultaneamente vários produtos, de tipos químicos diversos. Embora os fosforados e os piretróides fossem pesticidas de uso freqüente na agricultura, nesta região eles eram usados sobretudo na pecuária. Além disso, também eram bastante usados na agricultura produtos como sulfato de cobre, ditiocarbamatos, glifosate, triazinas e alaninatos (Figura 2).

Nas propriedades com produção de maçã, uva, pêssego, cebola e alho, o uso de agrotóxicos esteve acima da média geral do estudo para a maioria dos produtos avaliados. Em contraste, nas propriedades com produção de feijão, milho e mandioca, o uso de agrotóxicos foi menor.

A proporção dos entrevistados que nunca usou agrotóxicos variou de 14 a 18% (dependendo dos casos duvidosos), e 7% deixaram de usá-los há mais de um ano. Metade dos entrevistados usava agrotóxicos há mais de 10 anos e 22% usavam há mais de 20 anos. Dentre os que utilizavam estes produtos, a média de tempo de exposição foi de 16,4 anos (DP = 11,8).

O período do ano com maior intensidade de uso foi de outubro a fevereiro (Figura 1). Em cerca de 85% dos estabelecimentos foi referido o uso intenso de agrotóxicos em algum período do ano, e em cerca de 20% o uso intenso extendia-se por mais de sete meses ao ano, em geral de setembro a fevereiro.

Entre os homens, 80% ou mais aplicavam agrotóxicos, preparavam a mistura, limpavam equipamentos e transportavam ou armazenavam estes produtos; e 56% entravam em local onde fora recentemente aplicado. Entre as mulheres, 71% lavavam roupa com pesticidas, e cerca de 50% ajudavam com as mangueiras, aplicavam e/ou transportavam e armazenavam estes produtos.

Os EPIs mais referidos foram botas (88%) e chapéu (96%). Os equipamentos mais específicos para proteção à exposição química foram luvas (55%), máscaras (51%) e roupas "mais grossas" ou "impermeáveis" (62%).

 

Prevalência das morbidades estudadas

 

• Intoxicação por agrotóxicos e acidentes de trabalho

 

Entre os entrevistados, 12% (n = 176) relataram história de pelo menos uma intoxicação aguda por agrotóxicos, sendo 60% do último episódio diagnosticados por médicos. Cerca de um terço dos intoxicados foi hospitalizado e três quartos dos casos ocorreram de outubro a janeiro (Figura 1).

Em 12 meses, 10% dos entrevistados (144 pessoas) apresentaram pelo menos um acidente, entre todos os tipos (incluindo agrotóxicos), envolvendo o trabalho agrícola. Dentre os envolvidos, 7% (10 trabalhadores) acidentaram-se no mínimo duas vezes. Cerca de 30% dos acidentes referidos não implicaram afastamento do trabalho, enquanto 30% dos acidentes provocaram a perda de mais de 14 dias de trabalho. Em 91% dos acidentes (e em 84% daqueles com afastamento maior que 14 dias) não foi emitida a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), ou seja, nesta região o registro oficial responde por 9% das ocorrências anuais. Ou 16% dos casos com afastamento superior a 14 dias. A distribuição dos acidentes mostrou um padrão sazonal, com 64% dos casos concentrando-se entre outubro e fevereiro (Figura 1).

 

 

Problemas de saúde mental

 

A prevalência geral dos transtornos psiquiátricos menores foi de 36% (538 pessoas), sendo de 41% em Antônio Prado e 32% em Ipê. Entre os trabalhadores, 18% usaram remédios psiquiátricos e 5% foram hospitalizados por motivos psiquiátricos, em algum momento de sua vida. Em relação ao alcoolismo, 37% eram abstêmios e 7% apresentavam o teste CAGE positivo, indicando a proporção de "bebedores problemáticos" de bebidas alcoólicas.

Para fins de comparação, a taxa de problemas psiquiátricos menores foi padronizada por idade e sexo, com os resultados obtidos em estudo realizado em Pelotas, Rio Grande do Sul, em 1994, que também aplicou o SRQ-20 por entrevista direta, em população urbana (Lima et al., 1996). As altas freqüências de SRQ-20 nos agricultores destacaram-se em todas as faixas etárias. A prevalência de morbidade psiquiátrica menor nos agricultores de Antônio Prado e Ipê foi 80% mais elevada que na população urbana de Pelotas.

 

 

Discussão

 

O presente estudo estabeleceu um perfil de trabalho e saúde no espaço da pequena e média propriedade rural familiar. Nesta estrutura produtiva a mão de obra contratada foi complementar à familiar, pois apenas 7% dos trabalhadores entrevistados eram empregados fixos ou temporários. O perfil do trabalho rural mostrou que as médias propriedades que têm na fruticultura sua principal atividade produtiva foram as mais numerosas na região. Neste contexto, os trabalhadores enfrentavam longas jornadas de trabalho, utilizavam agrotóxicos intensivamente e, entre as morbidades estudadas, destacou-se a alta prevalência de transtornos psiquiátricos menores.

Apesar das dificuldades logísticas, próprias de um estudo de base populacional em zona rural, obteve-se uma ampla amostra probabilística, com pequena proporção de perdas e recusas (5%). Além disso, o trabalho de campo, incluindo o controle de qualidade, foi concluído em cinco semanas, fornecendo condições de entrevista similares entre os primeiros e os últimos entrevistados. Estas características reforçam a validade interna e externa dos achados (Vaughan & Morrow, 1992).

Em relação à seleção da amostra, cabe mencionar que a listagem de Antônio Prado foi mais precisa que a de Ipê, onde foi necessário um maior número de substituições dos estabelecimentos sorteados, devido à repetição de nomes e inclusão de indivíduos que não preenchiam o critério de trabalhador rural utilizado. Problemas de listagens são comuns em estudos epidemiológicos, especialmente na área rural, podendo enviesar os achados ao deixarem de fora indivíduos de maior risco (Vaughan & Morrow, 1992). No caso deste estudo, não foram observados indicativos de um viés de seleção importante.

O uso de informação referida mostrou-se vantajoso na caracterização do trabalho no meio rural. Aspectos como, por exemplo, área da propriedade, nível de mecanização, tipo e volume de produção, jornada e ritmos de trabalho, ou não estão disponíveis em registros oficiais, ou não apresentam melhor qualidade do que a informação referida. Além disso, esta apresenta a vantagem adicional de ser delineada para os propósitos do estudo, ao contrário daquela disponível em fontes secundárias (Checkoway, 1982).

Em relação aos agrotóxicos, a informação referida foi uma boa alternativa para traçar um panorama de sua situação na região estudada, considerando os diferentes tipos químicos, a freqüência de uso, as formas de exposição e os mecanismos de proteção. Apesar da dificuldade de caracterizar a exposição aos pesticidas, buscou-se avançar na construção de um instrumento com esta finalidade. A informação original foi testada em controle de qualidade e notaram-se algumas diferenças entre as duas medidas, em geral com maiores freqüências de exposição no controle de qualidade. O índice Kappa da questão geral (usa ou não usa) foi de 0,30 evidenciando a necessidade de maior detalhamento na caracterização dos agrotóxicos. O uso de listas com nomes comerciais de produtos mostrou-se efetivo para melhorar a qualidade da informação, pois em cerca de 60% dos produtos mais importantes o Kappa foi superior a 0,70.

Por outro lado, o "pulo" na questão que abria o bloco dos agrotóxicos no questionário e a omissão de alguns produtos na lista podem haver subestimado a exposição aos pesticidas. Além disso, o estudo não detalhou diferenças de concentração e formulação dos produtos ou o tipo de aplicador utilizado. A captação da exposição também deve ser aprimorada, visando superar problemas de memória, desinformação e omissões sobre o uso efetivo dos meios de proteção ou de agrotóxicos proibidos.

Quanto aos acidentes de trabalho e intoxicações, a informação referida superou os registros oficiais, em que existe um importante sub-registro (Faria et al., 1992). Além disso, o questionário permitiu detalhar o mês de ocorrência e o número de dias de afastamento, e outros dados. Deve-se destacar que no controle de qualidade o índice Kappa para acidentes foi de 0,61, ocorrendo mais casos do que os declarados na primeira entrevista, ou seja, a prevalência de acidentes de trabalho deste estudo pode ter sido subestimada. É possível que o controle de qualidade tenha encontrado um número maior de acidentes devido a lembrança estimulada a partir da primeira entrevista.

 

Características da população

 

A idade média de 41 anos, parece alta, considerando outros ramos de atividades profissionais. Este achado, a menor proporção da força de trabalho infantil e a maior proporção de trabalhadores idosos, ao se comparar a um estudo em Tenente Portela/RS (Faria et al., 1992), parecem confirmar a tendência ao envelhecimento da população rural, que no Rio Grande do Sul é mais marcante do que o da população urbana (FEE, 1997).

No presente estudo, a escolaridade média foi de 4,8 anos, sendo este dado consistente com o estudo realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária entre os vitivinicultores da região (EMBRAPA-CNPUV, 1996). A proporção dos sem escolaridade foi de 6%, cerca de três vezes menor do que a dos agricultores de Tenente Portela (Faria et al., 1992) e duas vezes menor do que a da população rural adulta do Rio Grande do Sul em 1991 (Freire et al., 1992). Ainda que a escolaridade dos trabalhadores rurais estudados seja maior do que a média gaúcha e brasileira para a população rural, é bastante inferior a dos agricultores familiares americanos, que geralmente possuem o segundo grau completo (Alavanja et al., 1996). A dificuldade de ampliação do nível de escolaridade na região estudada está bastante ligada às características das escolas rurais que oferecem no máximo até a quarta ou quinta série do primeiro grau. Estas características contribuem para a migração para a cidade daqueles que buscam ampliar sua escolaridade e que, geralmente, não retornam ao meio rural.

 

O trabalho rural

 

A área média dos estabelecimentos foi de 37 ha, mas reduzia-se para 28,5 ha ao serem excluídos os 10 maiores estabelecimentos (2% do total). Em Antônio Prado, onde predominavam atividades de agricultura, a média foi de 25 ha. Estes resultados mostraram consistência com o padrão de agricultura familiar predominante no Sul (FAO/INCRA, 1996), e com o cadastro vitícola da EMBRAPA para os dois municípios estudados (EMBRAPA/CNPUV, 1996).

Os estabelecimentos estudados se caracterizaram pela diversidade de atividades agrícolas. A produção agrícola dominante foi a fruticultura, mas também destacou-se a criação de animais em regime de integração com a agroindústria, como por exemplo aves. Esta tendência à diversificação e integração com a agroindústria está em sintonia com a nova fase de desenvolvimento agrário do estado. A uva, a cultura mais tradicional da região (particularmente em Antônio Prado), estava em fase de crise econômica, enquanto a maçã mostrava um melhor desempenho econômico. A cultura do milho, embora muito difundida na região, era bastante utilizada como insumo (ração dos animais), sendo parte dos custos de produção. A opção por aferir a produção agrícola com base em quatro principais culturas, pode ter subdimensionado esta informação, afetando principalmente estabelecimentos com maior diversidade produtiva.

A relação de trabalho mais observada foi do tipo familiar, confirmando caracterizações anteriores (IBGE, 1985; Freire et al., 1992; Bracagioli Neto, 1993). A maior precisão do conceito de proprietário e empregado fixo implicou uma maior concordância entre a entrevista e o controle de qualidade (Kappa > 0,75). Por outro lado, a imprecisão do conceito de parceria/arrendamento, reforçada pela baixa concordância com o controle de qualidade (Kappa = 0,37), parece relacionada aos variados arranjos do trabalho informal, no qual os indivíduos poderiam ser classificados em mais de uma categoria (família proprietária e parceiro, por exemplo). Mesmo não tendo sido quantificado, o trabalho informal foi observado de várias maneiras como troca de horas de trabalho, pagamento com parte da produção e empréstimos de máquinas e equipamentos.

As jornadas de trabalho foram extensas (10,6 a 12,5 horas por dia, conforme o ciclo agrícola) e muitas vezes em ritmo acelerado. Na entressafra, fase mais tranqüila das atividades agrícolas, a jornada média de trabalho (agrícola e não-agrícola) era pelo menos duas horas e meia acima das oito horas diárias, legalmente estabelecidas no Brasil. Na safra, a jornada subia a níveis impressionantes, com 50% das pessoas trabalhando mais de 12 horas por dia, achado similar ao do estudo de Tenente Portela/RS (em ambos os casos, o padrão dominante foi de longas jornadas na maior parte do ano).

 

Uso de agrotóxicos

 

Semelhante ao observado em outras regiões do Brasil e em outros países (Trappé, 1993), o uso de agrotóxicos foi intensivo, estando presente em 95% das propriedades estudadas, envolvendo 75% dos entrevistados e caracterizando-se pela multiplicidade de tipos químicos.

Entretanto, apenas a freqüência de uso dos pesticidas pode não ser suficiente para captar a complexidade da exposição, que depende em parte da natureza do produto (Figura 2). Por exemplo, o sulfato de cobre, produto largamente utilizado na vitivinicultura, possui baixa toxicidade, comparado aos demais pesticidas (Legaspi & Zenz, 1994). Ou ainda, as avermectinas, muito freqüentes em uso veterinário, são em geral injetáveis e, portanto, com menor risco químico para o trabalhador rural.

Embora os organo-fosforados se constituam em um grupo de uso comum na região, existem vários outros tipos químicos que também eram bastante usados, como ditiocarbamatos, glifosate, triazinas e alaninatos. Este achado aponta uma lacuna importante nos estudos sobre agrotóxicos, que se referem majoritariamente aos inibidores da colinestarase, e em particular aos organo-fosforados (Steenland et al., 1994; Ames et al., 1995). A escassez de indicadores laboratoriais para boa parte dos demais tipos químicos identificados neste estudo talvez seja uma importante explicação para este fato.

 

As morbidades avaliadas

 

• Intoxicação aguda por agrotóxicos e acidentes de trabalho

 

As intoxicações são a forma mais reconhecida de efeitos nocivos dos pesticidas e têm sido associadas a seqüelas neurológicas tardias (Savage et al., 1988; Steenland et al., 1994). Indicando as conseqüências do uso intensivo de pesticidas na região, 12% dos agricultores referiram algum episódio de intoxicação ao longo da vida. Esta taxa é similar às estimativas da Organização Panamericana da Saúde/Organização Mundial da Saúde para a América Latina (PAHO/ WHO, 1993), e reforça a importância deste problema ser considerado uma prioridade dos serviços de saúde.

Nos levantamentos entre vitivinicultores da serra gaúcha, em 1985, os casos de intoxicação aguda por agrotóxicos foram relatados em 35% dos estabelecimentos. Em 1991, este percentual caiu para 29% (Freire et al., 1992), dado consistente com os achados por unidade produtiva deste estudo (28%).

Por outro lado, os acidentes de trabalho (10%) foram menos freqüentes do que no estudo realizado em 1990 em Tenente Portela, Rio Grande do Sul (16% de casos anuais), que não incluiu as intoxicações por agrotóxicos. Esta redução relativa de taxas nos estudos mais recentes poderia estar relacionada ao crescimento do acesso a informações na área rural, a uma adaptação relativa às novas tecnologias.

Apesar de sua dimensão como problema de saúde, o sub-registro dos acidentes de trabalho permanece como regra, ocorrendo em 91% dos casos deste estudo e 80% dos casos de Tenente Portela, Rio Grande do Sul (Faria et al., 1992).

 

• A saúde mental

 

Para caracterizar os transtornos psiquiátricos menores, utilizou-se o SRQ-20, cuja validação no Brasil foi feita em usuários de serviços de atenção primária (Mari & Williams, 1986); obteve sensibilidade de 83% e especificidade de 80%, para pontos de cortes de 5/6 para homens e 7/8 para mulheres, que foi o critério adotado neste estudo. Este instrumento é apropriado para rastreamento, porém não se conhece sua sensibilidade e especificidade na população estudada.

O índice de concordância para o SRQ-20 obtido pelo Kappa foi 0,64, sendo maior a prevalência no controle de qualidade que na entrevista original. Resultados semelhantes foram encontrados para o uso de medicação psiquiátrica. Ainda que a concordância tenha sido razoável, deve ser reconhecido que a supervisora era uma profissional com experiência em equipes de saúde mental. Outros aspectos que podem haver produzido as diferenças observadas foram a própria repetição da entrevista e o viés do entrevistador. Este último pode estar relacionado às diferenças por município e pelo estilo pessoal de abordagem.

A prevalência de transtornos psiquiátricos menores foi muito alta (36%), particularmente em Antônio Prado onde o trabalho de entrevistas foi mais homogêneo. Estes dados contrastam com os resultados da maioria dos estudos que usaram o mesmo teste em populações urbanas e rurais (Penayo et al., 1990; Rumble et al., 1996).

Estudando estas diferenças, optou-se por comparar os resultados deste estudo com outro realizado em Pelotas (Lima et al., 1996), que além de ser relativamente contemporâneo, usou metodologia semelhante, ou seja, coletou as informações por meio de entrevista direta. Mesmo após a padronização dos achados para a população urbana de Pelotas (Tabela 2), encontrou-se um aumento de 80% no risco de transtorno psiquiátrico para os trabalhadores rurais. Este achado contraria resultados de estudos realizados em países do primeiro mundo (Robins et al., 1984; Lewis & Booth, 1994), que mostram menores prevalências de problemas de saúde mental em populações rurais. Ressalva-se que nestes países as condições de vida no campo são bem melhores do que aquelas encontradas no Brasil. Além disso, os estudos realizados em países do terceiro mundo ou não encontraram diferenças nas prevalências urbano-rurais (Cheng, 1988; Hwu et al., 1989; Lee et al., 1990), ou encontraram prevalências aumentadas na zona rural (Lee et al., 1990). Finalmente, existem indicativos de que estas diferenças podem estar relacionadas mais a outros fatores, como desemprego, crise econômica e problemas familiares, do que a características geográficas (Kovess et al., 1987).

 

 

Outros aspectos que podem ter contribuído para o aumento das prevalências de transtornos psiquiátricos menores seriam a migração de filhos para a cidade e/ou a realização do trabalho de campo em período chuvoso, com prejuízos nas safras de várias culturas como feijão, cebola, pêssego e uva.

Apesar de a região ser grande produtora e consumidora de vinhos, as prevalências referentes à questão do alcoolismo estiveram na média dos achados de outros estudos realizados no Rio Grande do Sul, que encontraram, respectivamente, 24% (Moreira et al., 1996) e 46% (Lima, 1997) de abstêmios e 9,3% (Moreira et al., 1996) e 4,2% (Lima, 1997) de teste CAGE positivo.

 

 

Conclusões e recomendações

 

Uma das principais contribuições deste estudo descritivo foi soar o alarme para problemas de saúde do trabalhador rural que merecem ser aprofundados, como por exemplo as intoxicações agudas por agrotóxicos, os acidentes de trabalho e a morbidade psiquiátrica. Além disso, revelaram-se evidências sobre as condições de trabalho e saúde dos agricultores da serra gaúcha, que não são captadas pelos registros rotineiros de informação sobre o meio rural, como é o caso dos registros sobre os acidentes de trabalho. Apesar das dificuldades referidas neste artigo, mostrou-se a factibilidade de realizar estudos de base populacional entre trabalhadores rurais.

A alta proporção de agricultores com uso freqüente de agrotóxicos reforça a necessidade de pesquisas que aprofundem metodologias para avaliar com maior precisão a exposição aos pesticidas e os riscos associados a estes produtos. Em futuros estudos, na aferição do uso de agrotóxicos, poderiam ser utilizados catálogos com fotos de embalagens dos produtos e uma abordagem cuidadosa em questões sobre comportamentos socialmente estimulados, como uso de EPIs e os hábitos de higiene e segurança no trabalho. Sempre que for possível, deve-se buscar enriquecer a avaliação mediante marcadores biológicos relacionados aos produtos envolvidos. A ampliação dos tipos de pesticidas mais usados indica a ocorrência de transformações nos processos agrícolas e nas intervenções químicas no campo e, ao mesmo tempo, a existência de uma lacuna no conhecimento dos riscos associados a estas mudanças. Estes dados apontam novas prioridades para pesquisas epidemiológicas e toxicológicas envolvendo o uso de agrotóxicos.

Os problemas de saúde mental, as intoxicações por pesticidas e os acidentes de trabalho merecem ser incluídos nas prioridades de saúde das instituições responsáveis por planejar e executar a assistência em área rural. Com esta finalidade, ações deveriam ser promovidas pelos órgãos responsáveis: investir na formação dos profissionais de saúde sobre problemas de saúde de origem ocupacional em populações rurais; construir um sistema eficiente de informações sobre problemas de saúde da área rural; melhorar assistência ambulatorial e hospitalar para os trabalhadores rurais; promover estudos que investiguem e aprofundem as relações entre processo de trabalho rural e problemas de saúde; desenvolver atividades pedagógicas com discussões e orientações para saúde e outros. Tais ações poderiam ser realizadas de forma integrada com profissionais ligados à extensão rural, o que enriqueceria e fortaleceria programas de saúde em área rural.

O elevado sub-registro dos acidentes de trabalho demonstra aos sindicatos, associações, cooperativas e outras entidades de classe, a urgência em priorizar ações conjuntas com as instituições de saúde, a fim de prevenir os acidentes de trabalho e para os casos ocorridos, melhorar a identificação, registro, assistência e recuperação dos danos. A discussão sobre o instrumento formal de registro-atualmente a CAT, com limitações que prejudicam sua utilização para fins epidemiológicos - deve envolver amplos setores que atuam no espaço do trabalho rural, como forma de se avaliar a real dimensão da questão dos acidentes entre trabalhadores rurais.

Além disso, é essencial que as políticas agrícolas sejam reavaliadas, priorizando não apenas critérios de produção, mas também a proteção da saúde dos trabalhadores rurais. O envolvimento direto da atividade agrícola com o meio ambiente reforça a necessidade de ações, especialmente relacionadas ao controle do uso de agrotóxicos. A importância econômica e social da agricultura familiar indica a necessidade de programas que visem ao seu fortalecimento enquanto grupo social e setor econômico de produção agrícola. A discussão das implicações das políticas agrícolas e dos modelos tecnológicos de produção sobre a saúde dos trabalhadores, bem como o acesso a formas de proteção e assistência à saúde devem envolver as entidades representativas e centrar seus objetivos na busca de melhores condições de vida e trabalho para a população rural.

 

 

Agradecimentos

 

A realização deste estudo foi possível graças ao apoio financeiro das seguintes instituições: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (proc. 400569/92-2), Prefeitura Municipal de Antônio Prado, Prefeitura Municipal de Ipê, Cooperativa Agrícola Pradense, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Antônio Prado, Centro de Agricultura Ecológica de Ipê, Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de Pelotas, Núcleo de Saúde do Trabalhador do Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas, Embrapa-Pelotas, Universidade de Caxias do Sul - Laboratório de Informática do Campus da Região dos Vinhedos.

 

 

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