DEBATE DEBATE

 

 

 

Eduardo Maia Freese de Carvalho

Departamento de Saúde Coletiva, Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz.
Departamento de Medicina Social, Universidade Federal de Pernambuco.


Debate sobre o artigo de Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

Debate on the paper by Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

 

 

O artigo apresentado por Dina Czeresnia & Adriana Ribeiro nos instiga a pensar, de forma ampliada, o processo saúde-doença e os determinantes subjetivos que permeiam suas relações. As autoras propõem uma discussão conceitual e histórica, considerando diversas concepções e aplicação da categoria de análise "espaço" em epidemiologia. O conteúdo abordado é de extrema importância nos dias atuais para a saúde pública e, particularmente, para o desenvolvimento da epidemiologia, tendo em vista a possibilidade de apontar para horizontes explicativos das novas e velhas mazelas que afligem as diferentes sociedades, populações e indivíduos.

O uso do espaço enquanto categoria de análise para a compreensão da ocorrência e da distribuição das doenças nas coletividades surge antes mesmo da consolidação da epidemiologia como disciplina científica. De fato, a relação do meio geográfico com o processo saúde-doença e sua historicidade já são estudadas desde, aproximadamente, 480 a.C. com o trabalho de Hipócrates intitulado Ares, Águas e Lugares (Pessoa, 1978), numa concepção ambientalista, tendo uma aplicação concreta na epidemiologia a partir dos estudos de Snow (1990) sobre o modo de transmissão da cólera em Londres, no início da Revolução Industrial e Científica.

Certamente, concordamos com as autoras quando apontam que é a teoria da doença que tem guiado epistemologicamente a concepção do espaço em epidemiologia e verificamos que o artigo apresenta uma trajetória bastante pertinente quando observa que, historicamente, se trabalha uma concepção de lugar centrada no natural. Essa concepção é também uma contribuição de fundamental importância para a compreensão da epidemiologia das doenças infecciosas, particularmente as de transmissão vetorial, como explicitado por Silva (1997). Talvez isso ocorra porque as doenças infecciosas apresentam elos entre o espaço e o corpo determinados externamente (vírus, bactérias, fungos, etc.), transmitidos ou não por vetores, sendo mais visíveis para o conhecimento científico adquirido pelo homem neste século, fundamentado no paradigma biologicista. Em contrapartida, em relação às doenças crônico-degenerativas e considerando o modelo multicausal, os elos entre corpo e espaço são menos evidentes, dado que o elemento externo não pode ser reconhecido na forma de agentes transmissíveis.

É com a corrente marxista da geografia que a epidemiologia busca elementos explicativos das relações entre espaço e sociedade, tendo, contudo, sempre a contribuição de epidemiologistas como Castellanos (1987), Possas (1989), Laurell & Noriega (1989), Breilh et al. (1990), dentre outros, que procuraram evidenciar aspectos relacionados às desigualdades existentes entre classes e distintos grupos sociais. Essas contribuições se expressam claramente para além daquelas que se encontram estritamente no campo biológico, ao considerarem as contradições existentes no modelo econômico, no processo de industrialização, na urbanização, na questão agrária e nas migrações, que têm influenciado de forma extremamente marcante na organização social do espaço habitado (Santos, 1988).

Porém, é fato que as várias concepções e modelos acima referidos não consideram a subjetividade existente entre os elos que separam espaço, enquanto categoria de análise, e o indivíduo. Entretanto, os diferentes autores latino-americanos, ainda que centrados numa visão que privilegia a doença, têm alcançado avanços importantes quando consideram o processo de adoecer como determinado socialmente, entendido enquanto processo histórico. Estes consideram dois momentos fundamentais:

1) O momento da produção (trabalho), como explicativo para um perfil epidemiológico de doenças crônicas, particularmente do setor secundário (industrial) e terciário (comércio e serviços), secundarizados pelas doenças infecciosas e parasitárias; e

2) O momento da reprodução da força de trabalho, que, tendo em vista o insuficiente salário, não dá condições ao trabalhador de suprir suas necessidades básicas de sobrevivência, como alimentação e moradia adequadas, saneamento básico, lazer, etc. Em conseqüência, verificamos um perfil epidemiológico com predominância das doenças infecciosas e parasitárias, secundarizadas pelas enfermidades crônicas e degenerativas.

Entendemos que existe, ainda, um terceiro ou novo padrão epidemiológico em sociedades emergentes, em um contexto de iniqüidade social, que encarnam e espelham as contradições da forma desorganizada de ocupação dos espaços urbanos e rurais. Nesses locais, coexistem, em níveis elevados, as enfermidades arcaicas, (cólera, esquistossomose, sarampo, hanseníase, tuberculose), para as quais já dispomos de tecnologia para erradicá-las ou controlá-las, e as enfermidades da modernidade, particularmente as enfermidades crônicas e degenerativas, bem como eventos e danos à saúde, inclusive as mortes violentas (acidente de trânsito, homicídio etc.).

Outras duas considerações colocadas para discussão são:

1) O emprego de técnicas de georreferenciamento e geoprocessamento dos dados e informações, que muito têm contribuído para o entendimento do espaço enquanto categoria de análise. Entretanto, essas técnicas não devem ser entendidas como ciência ou panacéia para explicar o processo saúde-doença, posto que suas possibilidades e potencialidades são amplas, mas também têm claras limitações, pois são técnicas apenas.

2) A segunda consideração é a reflexão sobre os ambientes de trabalho e suas relações conflitantes entre chefes, supervisores e os demais trabalhadores. Relações geradoras de tensão psicológica e estresse, que debilitam a saúde dos indivíduos e que ainda não foram devidamente explorados pela epidemiologia, na medida que pouco se conhece sobre estas e os elos existentes entre espaço e corpo.

Por último, as autoras nos fazem também refletir sobre a utilização do método epidemiológico baseado na quantificação e distribuição das doenças infecciosas e parasitárias e no modelo dos fatores de risco para as doenças crônico-degenerativas. Parece claro que tal metodologia não é apropriada para compreender a subjetividade existente entre espaço e corpo. Entretanto, parece, também, óbvio que, para buscar compreender a subjetividade do processo de adoecer, é necessário nos apropriarmos do método qualitativo, este sim possuidor de potencialidades capazes de explicar categorias de análise subjetivas. A tão preconizada triangulação metodológica entre as ciências, visando a interdisciplinaridade e, quiçá, a transdiciplinaridade, aparenta ter grande potencial de buscar desvendar a complexidade do processo saúde-doença, centrada, particularmente, na saúde.

 

BREILH, J., 1990. Deterioro de la Vida. Un Instrumento para Analisis de Prioridades Regionales en lo Social y la Salud. Quito: Corporación Editora Nacional.

CASTELLANOS, P. L., 1987. Sobre el concepto salud-enfermidad: Un ponto de vista epidemiológico. In: Congresso Mundial de Medicina Social, Anais, p. 5. Medellin: Congresso Mundial de Medicina Social. (mimeo.)

LAURELL, A. C. & NORIEGA, M., 1989. Processo de Produção e Saúde: Trabalho e Desgaste Operário. São Paulo: Editora Hucitec.

PESSOA, S. B., 1978. Ensaios Médico-Sociais. São Paulo: CEBES/Editora Hucitec.

POSSAS, C., 1989. Epidemiologia e Sociedade: Heterogeneidade Estrutural e Saúde no Brasil. São Paulo: Editora Hucitec.

SANTOS, M., 1988. Metamorfose do Espaço Habitado: Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Geografia. São Paulo: Editora Hucitec.

SILVA, L. J., 1997. O conceito de espaço na epidemiologia das doenças infecciosas. Cadernos de Saúde Pública,13:585-593.

SNOW, J., 1990. Sobre a Maneira de Transmissão do Cólera. 2a Ed. São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro: ABRASCO.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br