DEBATE DEBATE
Christovam Barcellos Departamento de Informações em Saúde, Centro de Informações em Ciência e Tecnologia, Fundação Oswaldo Cruz. | Debate sobre o artigo de Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro Debate on the paper by Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro |
Elos entre geografia e epidemiologia
O artigo de Dina Czeresnia & Adriana Ribeiro apresenta uma reflexão oportuna sobre o espaço na epidemiologia. Outros artigos com preocupações semelhantes vêm sendo publicados nos próprios Cadernos de Saúde Pública nos últimos anos, demonstrando uma retomada de uma abordagem espacial para os problemas de saúde. Dentre estes podem ser mencionadas as contribuições de Maria da Conceição Costa & Maria da Glória Teixeira (Costa & Teixeira, 1999), Luiza Iñigez Rojas (Rojas, 1998) e Luiz Jacintho da Silva (Silva, 1997). Também em artigo nesta revista, apontamos vantagens e riscos do uso do geoprocessamento para análises de ambiente e saúde, procurando identificar problemas teórico-metodológicos encontrados nessa possível junção (Barcellos & Bastos, 1996). Essa série de artigos, entre os quais se destaca a presente revisão, permite hoje recuperar correntes históricas e identificar tendências do uso do espaço como categoria de análise da epidemiologia. Diversos outros artigos, que vêm sendo recentemente apresentados nesta e em outras revistas de saúde pública, contêm mapas ilustrativos ou demonstrativos da distribuição espacial de agravos à saúde, suas fontes de risco ou determinantes sociais e ambientais. Felizmente, a crescente utilização de categorias geográficas na análise de saúde parece estar sendo acompanhada por reflexões a cerca de sua formulação teórica.
Como apontado pelas autoras, geografia e epidemiologia têm histórias semelhantes, marcadas por uma intensa troca com ciências da natureza e da sociedade. A epidemiologia e a geografia talvez tenham em comum, principalmente, as crises que costumam produzir pela saturação de modelos ou por sua superação em razão de novas realidades. A AIDS, lembrada pelas autoras, é uma dessas novas realidades que acabaram por derrubar antigos conceitos e esquemas de análise. Foi assim com o modelo proposto por Pavlovsky, superado pela urbanização de doenças não explicadas por uma ecologia ou geografia da paisagem natural. Tanto Pavlovsky quanto Max Sorre trabalharam com a ecologia, no sentido de ciência das relações entre ambiente e seres vivos, e talvez, por isso, se prenderam aos princípios de equilíbrio meio interno/meio externo, homem/meio, parasitas/hospedeiro. Talvez esses modelos sejam adequados para o estudo de algumas endemias, mas não para doenças não transmissíveis e situações epidêmicas. Algumas vezes temos que pensar no desequilíbrio, no efeito de um fato novo - um novo agente infeccioso ou as migrações - na determinação de doenças. Também parece estar em crise a chamada epidemiologia dos fatores de risco (Castellanos, 1990), que freqüentemente desconsidera as interações entre indivíduos (unidades de observação) e as condições coletivas que emergem destas relações. Algumas das importantes expressões dessa coletividade são as cidades, as redes sociais, os grupos sócio-espaciais, localizados em guetos ou condomínios residenciais, ou organizados em torno de fatores comuns que unem pessoas, produzem subjetividades coletivas e se manifestam no espaço; em lugares particulares (Sabroza & Leal, 1992). Essas relações são necessariamente coletivas e têm expressão espacial, embora muitas vezes de difícil apreensão.
O lugar, ao lado de pessoas e tempo, é uma das três principais dimensões de análise de fenômenos epidemiológicos. Essa categorização é meramente didática, uma vez que pessoas, tempo e lugares interagem. O conjunto lugar-tempo-pessoas é, em outras palavras, precisamente o objeto da geografia. A geografia estuda a relação entre sociedade e espaço, ou seja, como, onde, em que condições e por que causas se dá o desenvolvimento humano (não propriamente equivalente ao desenvolvimento pessoal) na superfície da terra (lugares). Para isso, compreende esse processo como resultado da acumulação de forças históricas (tempo).
Nesse sentido, o espaço não só viabiliza a circulação de agentes, como enfatizado pelas autoras, mas estabelece um elo, unindo, de um lado, grupos populacionais com características sociais que podem magnificar efeitos adversos e, do outro lado, fontes de contaminação, locais de proliferação de vetores. Essa ligação acontece não só no espaço, mas, principalmente, se dá através da organização espacial. Essa organização impõe uma lógica de localização e funcionamento, tanto para a produção quanto para a reprodução da sociedade. Esse encontro singular entre condições de risco e populações em risco é determinado por fatores econômicos, culturais e sociais que atuam no espaço. O exemplo da saúde dos trabalhadores é, talvez, o mais gritante, em que a posição do indivíduo no espaço de trabalho está fortemente relacionada à função por ele exercida e a toda a estrutura de produção, utilizando categorias da geografia sugeridas por Milton Santos. Esse conjunto de variáveis, que é indissociável, determina as condições de risco a que estão submetidas parcelas da população de trabalhadores. Essas relações não são tão evidentes no chamado ambiente geral, isto é, no espaço de moradia, de circulação e de consumo. Nesse caso, cabe à investigação epidemiológica e à geografia da saúde restabelecer esse elo.
O uso do espaço na área de saúde tem sido incrementado com o crescente acesso a bases de dados epidemiológicos e pela disponibilidade de ferramentas cartográficas e estatísticas computadorizadas. O uso dessas ferramentas pressupõe, no entanto, modelos de explicação do processo saúde/doença baseados em variáveis espaciais, como distância e vizinhança, e no inter-relacionamento com dados de caracterização do lugar. O espaço é muitas vezes utilizado como simples plano geométrico para a disposição e análise de dados epidemiológicos, tendo como premissa os elementos espaciais próximos compartilharem condições sócio-ambientais semelhantes. O espaço tem sido fragmentado para, numa segunda abordagem, permitir verificar a diferenciação de condições sociais e ambientais, tendo como pressupostos a homogeneidade interna e a independência das unidades espaciais de agregação e análise de dados. Uma terceira abordagem é focada na visão particular do lugar e das circunstâncias em que o espaço pode produzir riscos à saúde. A cada uso do espaço corresponde um conceito e um conjunto de métodos e técnicas de análise que podem ser empregadas. A falta de explicitação desses conceitos e métodos prejudica não só o próprio estudo, mas o estabelecimento desse possível elo entre geografia e saúde. O uso do geoprocessamento, uma ferramenta de cada vez mais fácil acesso e utilização entre profissionais da saúde, também pressupõe um embasamento metodológico prévio. Que paradigmas usamos e dispomos nesse caso? Estamos buscando o complexo patogênico? Estamos condenados à geografia quantitativa? Trabalhamos com a ecologia das doenças? Existe alguma maneira de se fazer geografia crítica usando geoprocessamento? Não temos respostas para estas questões, mas o debate incitado por esse artigo permite recuperar a história da difícil relação entre geografia e epidemiologia e apontar possíveis caminhos a seguir.
BARCELLOS, C. & BASTOS, F. I., 1996. Geoprocessamento, ambiente e saúde, uma união possível? Cadernos de Saúde Pública, 12:389-397.
CASTELLANOS, P. L., 1990. Sobre el concepto de salud-enfermedad. Descripción y explicación de la situación de salud. Boletín Epidemiológico, 10:1-7.
COSTA, M. C. N. & TEIXEIRA, M. G. L. C., 1999. A concepção de "espaço" na investigação epidemiológica. Cadernos de Saúde Pública, 15:271-279.
ROJAS, L. I., 1998. Geografía y salud: Temas y perspectivas en América Latina. Cadernos de Saúde Pública, 14:701-711.
SABROZA, P. C. & LEAL, M. C., 1992. Saúde, ambiente e desenvolvimento. Alguns conceitos fundamentais. In: Saúde, Ambiente e Desenvolvimento. Uma Análise Interdisciplinar (M. C. Leal, P. C. Sabroza, R. H. Rodriguez & P. M. Buss, org.), pp. 45-93, Rio de Janeiro: ABRASCO/São Paulo: Editora Hucitec.
SILVA, L. J., 1997. O conceito de espaço na epidemiologia das doenças infecciosas. Cadernos de Saúde Pública, 13:585-593.