DEBATE DEBATE
José Ricardo Ayres Departamento de Medicina, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. | Debate sobre o artigo de Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro Debate on the paper by Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro |
Czeresnia & Ribeiro nos trazem um tema da maior relevância: a questão do espaço em Epidemiologia. Com efeito, tempo e espaço são, como sabemos desde Kant, as intuições fundamentais com as quais o entendimento contribui para a construção do conhecimento positivo - ainda que se ponha em questão o caráter transcendental dessas categorias estéticas. Com justa razão, portanto, toda disciplina científica que reflete sobre suas bases epistemológicas precisa, mais ou cedo ou mais tarde, examinar de que modo essas noções basilares estão instruindo o conhecimento que produz. Esse exercício se torna tão mais necessário quanto mais tais intuições se desdobram na construção da linguagem própria de cada campo de conhecimento, na constituição de categorias analíticas e conceitos nos quais tempo e espaço revestem-se, eles próprios, de conteúdo empírico que se busca validar. É o caso da história, da geografia e, sem sombra de dúvida, da epidemiologia.
Tempo, lugar e pessoa compõem a tríade básica da produção/interpretação dos constructos epidemiológicos, dizem os manuais que fundaram as bases metodológicas da disciplina. O que, na verdade, poderia ser escrito como pessoas em lugares/tempos. É a distribuição de ocorrências que define o escopo da epidemiologia, já propõem textos mais recentes. De qualquer modo está ali, inexorável, o espaço. Para além de fundamento estético, ele mesmo é aspecto a ser apreendido e problematizado, assim como o tempo, como vem discutindo Gil Sevalho. Quantificar e comparar ocorrências pressupõe delimitar em termos de tempo e espaço a grandeza de eventos definidos. Assim, determinar onde os eventos acontecem é, em epidemiologia, indispensável para chegar a identificar porque eles acontecem ou, ao menos, como podem vir a não acontecer. As autoras defendem, nesse sentido, que a própria identidade da disciplina se construiu sobre uma figura de espacialidade, qual seja, a busca das vias de transmissão das doenças de massa.
Não obstante seu caráter central na constituição da epidemiologia, o espaço também não conseguiu, porém, escapar ao horror antiteorético que marca o desenvolvimento conceitual dessa disciplina. O espaço tem sido amplamente usado em epidemiologia para conhecer como se distribuem as doenças e seus correlatos (serviços, tratamentos, respostas), mas não para pensar o que isso significa. Espaço virou lugar, e este passou a ser apreendido como endereço. O endereço, enquanto tal, foi progressivamente deixando de ser um dado empírico dotado de significado para transformar-se no suporte lógico de variáveis cada vez mais abstratas, altamente isoladas do "conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ação" de que nos fala Milton Santos (Santos, 1996:18).
Essa é uma das questões centrais suscitadas pelo trabalho aqui apresentado. Dado que, também a epidemiologia, como ocorrência, como evento delimitável espacialmente, deve ser tratada como parte indissociável de um sistema (ou sistemas) de objetos e ações, cabe perguntar: o que esse deslocamento nos diz a respeito de nós próprios? Por que o lugar representa o espaço no âmbito da nossa prática epidemiológica? Se considerarmos ainda que, entre nossos sistemas de objetos e ações, um deles, o sistema lingüístico, tem um lugar determinante na contínua reconstrução desses sistemas, por maior razão devemos nos deter sobre o que estamos fazendo com o espaço em que vivemos quando, epidemiologicamente, o designamos "lugar".
Da problemática acima desdobra-se ainda outra ordem de questões levantadas pelo artigo e que diz respeito às transformações históricas, com a licença do trocadilho, do lugar epistemológico que vem ocupando esse "lugar" epidemiológico no desenvolvimento científico da disciplina. As autoras destacam que o ponto de vista central do seu trabalho é o de que "o núcleo epistemológico que orienta a apreensão do espaço em Epidemiologia é a teoria da doença" e que "os elementos do espaço que são incorporados na explicação epidemiológica integram-se aos que explicam como a doença ocorre no corpo" (grifos meus). Nesse sentido, parecem sugerir que o "lugar" é um dispositivo fragmentador do espaço - do qual a epidemiologia extrai alguns elementos - e que o princípio dessa fragmentação é a fisiopatologia - só interessando os fragmentos que (e à proporção que) são capazes de evidenciar mecanismos disfuncionais no corpo. Estamos de acordo, porém, que, desde a verdadeira revolução epistemológica que foi a emergência do conceito de risco em epidemiologia, o desvelar de um círculo disfuncional, cujo centro estava na intimidade orgânica e cuja circunferência se estendia para tudo que, no meio externo, se relacionava com ela, perdeu espaço (eu disse espaço?!). Até os anos 30, as relações entre microbiologia, imunologia e clínica permitiram à epidemiologia manter-se ainda como porta-voz de uma mecânica interno-externo, mas, agora, já trabalhando menos com a idéia de disfunção do que com a idéia de desequilíbrio (entre infectantes, infectados e suscetíveis). Após a Segunda Guerra Mundial, contudo, vemos a epidemiologia do risco prescindir quase totalmente não só da fisiopatologia, como também de qualquer mecânica interno-externo para produzir seu conhecimento. Nem disfunção, nem desequilíbrio, o que a epidemiologia passa a buscar e revelar é o desfavorável. Se uma ocorrência qualquer tem possibilidade de estar favorável ou desfavoravelmente associada a outra no campo da saúde, esse fato, junto com sua extensão, passa a ser o norte e o traço distintivo da produção hegemônica na epidemiologia do risco. Nesse sentido, cabe perguntar: não terá a epidemiologia contemporânea modificado sua relação com as teorias das doenças? Nesse contexto, como se recompôs o espaço da epidemiologia? Qual princípio está gerando hoje os fragmentos que, através do "lugar", representam o espaço nos estudos epidemiológicos?
Certamente, essas questões não são algo a que as autoras devam (e possam) responder de forma conclusiva em sua tréplica. São reflexões fundamentais que seu artigo apenas levanta e inicia. Cabe a nós todos, do campo da epidemiologia e da saúde pública, especialmente aqueles que já vêm dedicando esforços especiais para a compreensão do problema, como Luiz Jacintho da Silva, Maurício Barreto, Paulo Sabroza, entre outros, ajudar a respondê-las com nossas melhores reflexões e práticas cotidianas.
SANTOS, M., 1996. A Natureza do Espaço - Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora Hucitec.