DEBATE DEBATE

 

 

 

Maria de Fátima Militão de Albuquerque

Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz.
Departamento de Medicina Clínica, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Pernambuco.


Debate sobre o artigo de Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

Debate on the paper by Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

 

 

O texto de Dina Czeresnia & Adriana Ribeiro apresenta um tema bastante atual e estimula o leitor a fazer algumas reflexões e questionamentos. Tendo como propósito interpretar a utilização do conceito de espaço em epidemiologia e revisar a produção teórica a respeito, na América Latina, sente-se falta, no entanto, de uma maior clareza a respeito da perspectiva assumida pelo artigo. Se esta era sistematizar as diversas correntes do pensamento geográfico, especialmente a concepção de espaço, e sua influência na epidemiologia, o artigo exibe uma grande lacuna quando não considera os trabalhos do geógrafo e médico Josué de Castro.

Entre as vertentes explicativas, somente foram destacadas as influências de Pavlovsky, Max Sorre, Samuel Pessoa e Milton Santos. A obra pioneira de Josué de Castro, Geografia da Fome, publicada em 1946 (Castro, 1992), ficou inexplicavelmente de fora. Do ponto de vista social, a obra se insere no âmbito da geografia crítica, precisamente na chamada geografia de denúncia, que, segundo Moraes, "Fazia-se uma descrição da vida regional, que não encobria as contradições existentes no espaço analisado. Sendo a realidade injusta, sua mera descrição já adquiria um componente de oposição à ordem instituída" (Moraes, 1990:118).

Vale, então, salientar uma outra questão colocada pelo artigo, que é a suposta inadequação dessa abordagem para as doenças não infecciosas. Em síntese, o texto assume que: "a idéia de circulação de agentes específicos no espaço é fundamental a esse desenvolvimento conceitual", porque expressaria melhor as relações do homem com o meio.

Abordando um evento não transmissível, no caso a fome, a obra de Josué de Castro (Castro, 1992) não ficou ancorada na tríade agente, hospedeiro e ambiente, apreendida nas investigações das doenças transmissíveis. Samuel Pessoa, no ensaio Histórico da Geografia Médica, afirma: "Estudos sobre a alimentação em relação à geografia têm vindo mais abundantemente à luz, talvez devido à influência poderosa do notável nutricionista e geógrafo Josué de Castro" (Pessoa, 1983:119).

O espaço, socialmente organizado pelos homens, congrega as marcas impressas por essa organização, adquirindo características locais próprias que expressam a diferenciação de acesso aos resultados da produção coletiva (Santos, 1979). A ocupação do espaço territorial refletiria, assim, as posições ocupadas pelos indivíduos na sociedade e seria conseqüência de uma construção histórica e social, sendo, por isso, capaz de refletir as desigualdades existentes.

Sem dúvida, o conceito de transmissão preserva um conteúdo relacional que não é tão evidente para a ocorrência das doenças não-transmissíveis ou outros eventos de saúde/doença em populações (Czeresnia & Albuquerque, 1998). Porém, hábitos e comportamentos considerados como fatores causais/protetores para essas doenças/eventos, tais como fumo, alimentação, agentes tóxicos, uso de preservativos, etc., parecem circular de forma diferenciada em grupos populacionais. E, sem dúvida, esse fato não depende apenas de variações individuais.

Assim, estudar a relação entre o uso de capacetes e a mortalidade entre motociclistas é diferente de estudar o efeito das leis que obrigam o uso de capacetes por motociclistas sobre a mortalidade por acidentes de moto, em diferentes lugares/espaços (Morgenstern, 1998). Os estudo ecológicos orientados pela concepção de espaço socialmente organizado tornam evidentes os efeitos de processos não perceptíveis no âmbito dos indivíduos (Castellanos, 1998).

A utilização do conceito de espaço redefinido pela geografia crítica é uma das propostas teórico-metodológicas no âmbito da epidemiologia que têm tentado integrar o conhecimento biológico do processo de adoecer aos fenômenos sociais. É um esforço que parece bem-sucedido em enfatizar a função estrutural da dimensão social do processo saúde/doença, como têm demonstrado vários estudos orientados por essa abordagem. E, principalmente, mostra-se como uma alternativa metodológica para identificação e análise das necessidades de populações, buscando-se superar as iniqüidades em saúde (Paim, 1997). Contribuir para a viabilização de mudanças das práticas sanitárias, subsidiando novos modelos de intervenção sobre os problemas de saúde pública, sem dúvida, é um dos grandes méritos desse esforço.

É preciso, contudo, não perder de vista o alerta das autoras para o fato de que nenhuma estratégia de análise isolada é capaz de dar conta da pluralidade dos fatores implicados na ocorrência de eventos de saúde e doença na prática das investigações e serão sempre aproximações da realidade.

 

CASTELLANOS, P. L., 1998. O ecológico na epidemiologia. In: Teoria Epidemiológica Hoje - Fundamentos, Interfaces e Tendências (N. Almeida Filho, M. L. Barreto, R. P. Veras & R. B. Barata, org.), pp. 129-147, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

CASTRO, J., 1992. Geografia da Fome - Dilema Brasileiro: Pão ou Aço. 11a Ed. Rio de Janeiro: Griphus.

CZERESNIA, D. & ALBUQUERQUE, M. F. M., 1998. Limites da inferência causal. In: Teoria Epidemiológica Hoje - Fundamentos, Interfaces e Tendências (N. Almeida Filho, M. L. Barreto, R. P. Veras & R. B. Barata, org.), pp. 63-78, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

MORAES, A. C. R., 1990.Geografia: Pequena História Crítica. São Paulo: Editora Hucitec.

MORGENSTERN, H., 1998. Ecologic studies. In: Modern Epidemiology (K. J. Rothman & S. Greenland, eds.), pp. 459-480, Philadelphia: Lippincott-Raven Publishers.

PAIM, J. S., 1997. Abordagens teórico-conceituais em estudos de condições de vida e saúde: Notas para reflexão e ação. In: Condições de Vida e Situação de Saúde: Saúde e Movimento (R. B. Barata, org.), pp. 7-30, Rio de Janeiro: ABRASCO.

PESSOA, S., 1983. Histórico da geografia médica. In: Ensaios Médico-sociais (J. R. F. de A. Bonfim & D. C. da Costa Filho, org.), pp. 94-121, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.

SANTOS, M., 1979. O Espaço Dividido: Os Dois Circuitos da Economia Urbana dos Países Subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora.

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