DEBATE DEBATE

 

 

 

Rita Barradas Barata

Departamento de Medicina Social, Santa Casa de São Paulo.


Debate sobre o artigo de Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

Debate on the paper by Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

 

 

As autoras descrevem um amplo panorama acerca da utilização do conceito de espaço em pesquisas epidemiológicas, pontuando as transformações históricas do conceito ao longo dos últimos dois séculos. A tese central do artigo é a de que no âmbito da epidemiologia o conceito de espaço foi construído, em cada momento, como uma decorrência da teoria da doença, isto é, espaço é tomado mais como uma noção instrumental, subordinada à concepção de doença dominante em cada período histórico.

Para problematizar a orientação para a qual a argumentação foi construída poderíamos formular a seguinte questão: Em que episteme e a partir de quais elementos se constrói a teoria da doença em cada momento? Esta formulação nos levaria a inverter o foco, dirigindo nossa indagação no sentido de verificar como as diferentes concepções da categoria espaço contribuíram, em diferentes momentos históricos, para a construção das teorias da doença. Assim, espaço passaria a ter um papel na configuração do pensamento epidemiológico, não apenas de caráter instrumental e subordinado, mas, antes, um papel ativo e propriamente epistêmico.

Na fase de constituição da epidemiologia como disciplina científica, a descrição da distribuição das doenças nas coletividades desempenhou papel fundamental no sentido de permitir a formulação de hipóteses capazes de orientar o estudo dos determinantes. Toda descrição necessita, do ponto de vista formal, das categorias espaço e tempo para poder se realizar. Segundo Kant, ambas seriam formas puras de intuição a priori necessárias para a apreensão sensível dos fenômenos. Sem um conceito, absoluto ou relativo, de espaço e tempo torna-se impossível diferenciar, delimitar, definir objetos ou fenômenos passíveis de investigação objetiva, ou o uso das demais categorias do entendimento (esquemas transcendentais kantianos). Assim, a construção de uma epidemiologia descritiva, destinada a investigar a distribuição das doenças nas populações, requer um conceito de espaço para se concretizar, ainda que o espaço seja visto meramente como cenário onde os fatos se desenrolam, como algo externo e estático em referência ao objeto de estudo.

No início do século XX, sob a influência da revolução relativista na física, os diferentes campos científicos passam a tratar espaço e tempo como categorias interdependentes, superando a dicotomia anteriormente existente. O desenvolvimento das concepções sistêmicas em diferentes âmbitos disciplinares introduz a noção de processo no tratamento de diversos fenômenos. No âmbito da epidemiologia, principalmente nos estudos acerca das doenças transmissíveis, o conceito de mecanismo de reservatório ou cadeia do processo infeccioso exemplifica essa nova tendência na qual espaço e tempo são referenciais relativos para a compreensão de processos de disseminação da transmissão.

Sob a influência crescente do materialismo histórico, principalmente de suas versões militantes dos movimentos sociais das décadas de 20, 30 e 40, a categoria espaço vai paulatinamente perdendo força, restando apenas a categoria tempo, subjacente à noção de processo, na explicação de diferentes tipos de fenômenos. Assiste-se a um domínio quase que absoluto da dimensão temporal em muitos campos do conhecimento. O modelo da história natural das doenças poderia ser tomado como exemplar dessa fase. A sucessão de fases desenrola-se cronologicamente, sendo possível abstrair da explicação a referência a qualquer espaço concreto.

Com o movimento da chamada nova geografia, no pós-guerra, procura-se restituir ao pensamento materialista e histórico a dimensão espacial abandonada no período anterior. Esse movimento se traduz, na epidemiologia, em estudos que trabalham com o conceito de espaço socialmente construído, em seus diferentes matizes de expressão. Passa-se, então, de um espaço pensado inicialmente como uma referência absoluta, um cenário, evoluindo-se para a concepção de um espaço relativo necessário apenas para a apreensão dos fenômenos, para um espaço relacional, lugar de construção de relações dos homens entre si e de criação de sua vida material e imaterial.

Enfim, é possível pensar as relações entre a categoria espaço e as explicações epidemiológicas tanto pelo vetor doença-espaço quanto pelo vetor espaço-doença. Consideramos, entretanto, que a segunda perspectiva pode permitir a compreensão das origens do pensamento sobre saúde-doença, articulando esse saber ao conhecimento científico prevalente em cada período histórico, enquanto a primeira perspectiva aprofunda e investiga a configuração assumida por determinadas categorias explicativas no interior do campo disciplinar. Trata-se, portanto, de perspectivas complementares mais do que antagônicas na elucidação dos processos de constituição de saberes específicos.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br