ARTIGO ARTICLE

 

Ana Bernarda Ludermir1


Inserção produtiva, gênero e saúde mental

Unemployment, informal work, gender, and mental health

 

1 Faculdade de Medicina, Departamento de Medicina Social, Universidade Federal de Pernambuco. Av. Professor Moraes Rego s/no, Bloco D, 1o andar, Cidade Universitária, Recife, PE 50670-911, Brasil. abl@npd.ufpe.br   Abstract A cross-sectional study was conducted in Olinda, Pernambuco, to investigate a possible association between unemployment, informal work, and common mental disorders (CMD) assessed by the Self Reporting Questionnaire (SRQ - 20). While women working in the formal labor market showed significantly better mental health as compared to informal workers (OR = 3.02, 95% CI 1.3-7.2), housewives (OR = 2.29, 95% CI 1.0-5.0), and unemployed (OR = 2.66, 95% CI 1.1-6.3) and inactive women (OR = 3.19, 95% CI 1.2-8.4), no difference was found among men. The actual pattern of the odds ratios suggests a modifying effect of gender in the association between employment status and CMD. However, the interaction term added to the final model was statistically significant for informal work, but not for unemployment. The results of the present study suggest that the experience of informal work may be different for men and women. This finding highlighted the need to incorporate a gender approach (reflecting a social dimension of sex-related inequalities) to the theoretical framework based on social classes adopted here.
Key words Key words Work; Gender; Mental Health

Resumo Um estudo transversal foi conduzido em Olinda para estimar a associação do desemprego e do trabalho informal com os transtornos mentais comuns (TMC), avaliados pelo Self Reporting Questionnaire (SRQ-20). Enquanto as trabalhadoras formais apresentaram uma saúde mental significativamente melhor que as informais (OR = 3,02, IC a 95% 1,3-7,2), desempregadas (OR = 2,66, IC a 95% 1,1-6,3), donas de casa (OR = 2,29, IC a 95% 1,0-5,0) e inativas (OR = 3,19, IC a 95% 1,2-8,4), as diferenças encontradas entre os homens não foram estatisticamente significantes. As odds-ratios sugerem que a posição no mercado produtivo teve o seu efeito sobre a saúde mental modificado pelo sexo. Porém, o teste para interação só foi estatisticamente significante para o trabalho informal, não havendo evidências de que a associação entre o desemprego e a saúde mental fosse diferente entre homens e mulheres. Os resultados do presente estudo sugerem que o mundo do trabalho tem dois sexos e que homens e mulheres vivenciam o trabalho informal diferentemente. Esta constatação apontou para a necessidade de complementar o referencial teórico das relações de classe aqui assumido, com a abordagem de gênero, que reflete a dimensão social das desigualdades sexuais.
Palavras-chave Trabalho; Gênero; Saúde Mental

 

 

Introdução

 

O desemprego vem se tornando a maior questão sócio-político-econômica do mundo ocidental desde a década de 70, e os seus custos sociais têm-se revelado maiores do que se podia prever. Classe social e desemprego estão relacionados, e quanto mais baixa a inserção na escala social maiores são as chances do trabalhador ficar desempregado (Narendranathan et al., 1982). Bartley & Owen (1996), comparando as taxas de emprego, desemprego e inatividade econômica em homens de diferentes grupos sociais durante as mudanças econômicas na Inglaterra no período entre 1973 e 1993, demonstraram que os trabalhadores qualificados apresentavam taxas de emprego muito maiores que os sem qualificação, diferenças estas que cresceram drasticamente com o aumento do desemprego. Quando as taxas de desemprego são baixas, o desemprego tende a ser isolado de suas raízes sociais, e os desempregados são estigmatizados e acusados de sua própria situação. Durante as crises econômicas, o desemprego cresce e é freqüentemente atribuído a causas estruturais (Platt & Kreitman, 1990; Lahelma, 1992; Ezzy, 1993).

Talvez a maior diferença entre a estrutura produtiva dos países desenvolvidos e dos em desenvolvimento esteja na grande proporção de trabalhadores fora do mercado formal. A recessão econômica brasileira dos últimos anos, além de aumentar o número de desempregados, comprometeu a qualidade dos empregos gerados (Urani, 1995). O trabalho informal, porta de entrada no mercado para os jovens, tem sido a principal forma de discriminação da força de trabalho migrante (Singer, 1983; Secretaria de Planejamento do Estado de Pernambuco, 1990) e feminina (Machado, 1991). Apesar de esse tipo de trabalho ser considerado uma característica dos países da América Latina (Guimarães & Souza, 1984; Oliveira & Roberts, 1996), pouco se sabe sobre suas conseqüências psicológicas.

 

Desemprego e saúde mental

 

Não só o desemprego é determinado pela classe social, mas também a saúde mental do trabalhador (Brown & Harris, 1978; Dohrenwend, 1990; Rodgers, 1991; Power et al., 1991; Power & Manor, 1992; Meltzer et al., 1995; Wohlfarth, 1997). A doença mental, assim como o desemprego, existe em um determinado espaço e em um determinado tempo, e o seu caráter histórico e social expressa-se objetivamente pela sua distribuição desigual entre os diferentes grupos populacionais.

Nas sociedades industrializadas já está estabelecido que os desempregados e suas famílias têm pior saúde mental quando comparados com os que estão trabalhando (Brown & Harris, 1978; Bebbington et al., 1981; Warr, 1987; Townsend et al., 1988; Bartley et al., 1992; Jenkins et al., 1997). Sem sombra de dúvidas, a saúde mental preexistente é um fator importante na determinação dos que conseguem e mantêm os seus empregos - "the healthy worker effect" (Tiffany et al., 1970; Lahelma, 1992) -, mas os estudos longitudinais de indivíduos saudáveis que vivenciaram o desemprego (Banks & Jackson, 1982; Jenkins et al., 1982; Warr & Jackson, 1985; Hammarström et al., 1988; Withington & Wybrow, 1988; Bartley et al., 1992; Lahelma, 1992; Graetz, 1993; Morrell et al., 1994; Ferrie et al., 1995) têm confirmado os seus efeitos adversos para a saúde mental e a recuperação da saúde com a volta ao emprego (Warr & Jackson, 1985; Withington & Wybrow, 1988; Lahelma, 1992; Morrell et al., 1994).

O mecanismo que liga o desemprego aos transtornos mentais ainda não está totalmente compreendido e, para alguns autores (Warr, 1987; Ezzy, 1993; Graetz, 1993), um certo tipo de desemprego (a saída de um emprego monótono e repetitivo, limitador das habilidades do indivíduo) pode apresentar efeitos positivos da mesma forma que certos empregos têm efeitos negativos sobre a saúde mental.

O modelo funcional de Jahoda (1988) parte do princípio de que o desemprego priva o indivíduo de vários ganhos, tais como os benefícios óbvios da remuneração, uma função manifesta do emprego, e mais cinco funções ocultas: a estruturação temporal do cotidiano, contatos com pessoas fora da família, metas e propósitos que transcendem o individual, status e identidade. Para a autora (Jahoda, 1988:17), "a característica comum a todos os que perderam o emprego é a exclusão abrupta de uma instituição social que dominava suas vidas anteriormente". As cinco conseqüências ocultas identificadas por Jahoda podem ser vistas como uma elaboração da concepção freudiana de que o trabalho traz as pessoas para a realidade. Fryer (1986) e Ezzy (1993) criticaram esse modelo por não considerar o significado atribuído pelo indivíduo ao fato de estar desempregado (dimensão psicológica de desemprego), já que a experiência do desemprego difere, entre outros, com a classe social, com o sexo, a idade, a renda, o suporte social, as razões para a perda do emprego, o envolvimento com o trabalho, a satisfação com o emprego anterior, a expectativa de voltar a trabalhar, a sua duração e o seu significado social (Warr, 1987; Ezzy, 1993; Graetz, 1993). Ezzy (1993) acrescenta às suas críticas o fato de o modelo ignorar as diferenças nas experiências de trabalho, como, por exemplo, a vivência de um emprego onde o indivíduo tem poder de decisão sobre as suas atividades não é igual àquela em que ele se sente controlado por supervisores e sistemas impessoais.

O modelo de Warr (1987) baseia-se na identificação de nove características consideradas como "vitaminas" para saúde mental em todos os tipos de ambiente, mas particularmente no do trabalho remunerado e no do desemprego. São elas: 1) oportunidade para controle; 2) oportunidade para o uso de habilidades; 3) metas geradas externamente; 4) variedade; 5) previsibilidade; 6) disponibilidade de dinheiro; 7) segurança física; 8) oportunidade para contatos interpessoais; e 9) valorização social. Para o autor, a associação entre as características ambientais e a saúde mental não é linear. Os baixos níveis de uma "vitamina" tendem a deteriorar a saúde mental, mas os aumentos além do nível necessário não trazem benefício adicional e algumas delas em grandes quantidades podem ser até prejudiciais (as de número 1, 2, 3, 4, 5 e 8). O ambiente do desempregado contém quantias limitadas de cada "vitamina" e a falta de oportunidade de controle e a deterioração financeira em virtude do desemprego são vistas como as principais fontes de problemas pessoais e familiares e capazes de influenciar as outras características. Esse modelo, apesar de ter o ambiente como objeto primário de investigação, sugere que os indivíduos podem modelar as influências ambientais de diferentes maneiras e consegue explicar os efeitos positivos observados com a saída de um trabalho opressivo e com a recuperação do emprego, os negativos de um trabalho insatisfatório e as diferenças em saúde mental entre subgrupos de desempregados. Por exemplo, o desemprego para mulheres solteiras que são arrimo de família pode resultar em problemas maiores pela falta de dinheiro, de segurança, de oportunidade para contatos pessoais e status social que o desemprego para as casadas, relativamente menos dependentes de um emprego.

Ezzy (1993), usando uma abordagem sociológica, considera o desemprego como um status de mudança, um tipo de status de passagem compreendido como uma transição social ou um movimento dentro de diferentes partes de uma estrutura social. Assim, esta situação vivida compreende a perda de um status e, freqüentemente, contém fases transitórias de duração incerta. Acentuando a importância da compreensão do ponto de vista do sujeito, é o significado dado pelo indivíduo ao trabalho como sustentáculo consistente e positivo de sua auto-imagem que determina os efeitos do desemprego na saúde mental. Desta forma, o fracasso ou o sucesso na tentativa de manter um significado para a vida determinará as diferentes formas de reação psicológica ao desemprego.

 

Inserção feminina no mercado produtivo e saúde mental

 

Homens e mulheres desempenham diferentes papéis sociais e tendem a ter diferentes necessidades (Moser, 1993). Ao contrário do que ocorre com os homens, a inserção feminina no mercado produtivo é limitada por suas responsabilidades domésticas e familiares, tendo o emprego que ser adaptado às suas outras funções (Joshi, 1990). As mulheres enfrentam maiores taxas de desemprego que os homens (Hammarström et al., 1988; Kassarda & Parnell, 1993) e, nos países do Terceiro Mundo, são freqüentemente encontradas trabalhando no setor informal da economia (Machado, 1991). Nos países industrializados, as pesquisas têm-se concentrado nos efeitos do emprego sobre a saúde mental feminina, comparando as que são exclusivamente donas de casa com as que estão desenvolvendo uma atividade remunerada fora do lar. A investigação dos efeitos do desemprego tem sido problemática, porque as mulheres casadas sem um trabalho remunerado são, geralmente, classificadas como donas de casa e não como desempregadas (Power et al., 1991). A maioria dos estudos revisados (Brown & Harris, 1978; Warr & Parry, 1982; Kandel et al., 1985; Aneshensel, 1986; Bartley et al., 1992) sugerem que o trabalho remunerado tem um efeito positivo na saúde mental. A teoria dos papéis sociais propõe duas explicações competitivas: 1) o trabalho remunerado protege as mulheres do isolamento social, da monotonia e do baixo status do trabalho doméstico (role enhacement); 2) o trabalho remunerado causa conflito e sobrecarga de papéis pelas demandas simultâneas da atividade remunerada, do trabalho doméstico, do marido e dos filhos, levando à fadiga, ao estresse e a sintomas psíquicos (role overload) (Power et al., 1991; Bartley et al., 1992; Macran, 1993).

O desemprego dos maridos também tem-se mostrado um fator de risco para a saúde mental de suas mulheres, mas não o oposto (Bebbington et al., 1981; Cochrane & Stopes-Roe, 1981; Rodgers, 1991).

Este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de investigar a associação do desemprego e do trabalho informal com os transtornos mentais comuns (TMC).

 

 

Métodos

 

A área de pesquisa

 

Olinda é uma cidade histórica, patrimônio natural e cultural da humanidade. Segunda maior cidade em população do estado de Pernambuco, constitui, juntamente com Recife, o núcleo central da região metropolitana do Recife (RMR) (Secretaria de Planejamento do Estado de Pernambuco, 1996). Capital de Pernambuco até 1827, a cidade foi sede da grande expansão econômica da cultura da cana-de-açúcar, consolidando-se, na primeira metade do século XVII, como o mais importante centro urbano do Nordeste (Novaes, 1990; Secretaria de Planejamento do Estado de Pernambuco, 1990). No início do século XIX, a influência do setor agro-exportador sobrepunha-se ao papel e à função econômica do município. Tanto assim que, quando da redefinição das relações internacionais dentro do avanço do processo capitalista, uma nova divisão regional do trabalho no Brasil consolidou um Sudeste industrial e um Nordeste agrário. Essa situação não impediu um surto de industrialização no Recife, no final daquele século e nas primeiras décadas do século XX, que assegurou a representatividade de Pernambuco, principalmente do setor têxtil, no cenário nacional (Secretaria de Planejamento do Estado de Pernambuco, 1990).

Desde então, Recife vem perdendo sua importância na região e no país. Entre 1960 e 1970, vultosos investimentos públicos na RMR dinamizaram e modernizaram as indústrias e demais atividades urbanas em conseqüência de capitais extra-regionais, que mais limitaram do que induziram o crescimento integrado da economia local. Se isto foi grave do ponto de vista de sua autonomia econômica, mais ainda o tem sido em termos de criação de postos de trabalho, uma vez que o coeficiente de geração de emprego direto da indústria local é reduzido. A principal conseqüência tem sido a expansão do setor informal da economia, que abriga contingentes crescentes da população marginalizada econômica e socialmente, sendo onde a grande maioria dos migrantes encontrou a sua sobrevivência (Secretaria de Planejamento do Estado de Pernambuco, 1990). Forçados a exercer atividades fora do âmbito da produção capitalista, estes reproduziram na cidade certos traços da economia de subsistência sob a forma de atividades autônomas, geralmente serviços tais como ambulantes, carregadores, serviços domésticos e de reparação, etc. (Singer, 1983). A exigência de uma competitividade cuja escala é planetária e cuja lei é estranha às necessidades reais da cidade e do país agrava a crise social do Recife. A música de Chico Science (Science, 1994a) "a cidade não pára/ a cidade só cresce/ o de cima sobe/ e o de baixo desce..." explicita claramente o que Santos (1994) denomina de involução metropolitana, com a expansão de empregos mal remunerados e a deterioração da qualidade de vida. A RMR vem apresentando as mais altas taxas de desemprego do país - 9,8% (IBGE, 1993) -, e Recife, que cresceu com o aterramento dos mangues (da lama), recentemente recebeu o título da cidade mais deteriorada do Brasil e da quarta pior do mundo, segundo o Population Crisis Committee (Secretaria de Planejamento do Estado de Pernambuco, 1995). "Da lama ao caos/ do caos à lama" (Science, 1994b).

De acordo com o último censo (IBGE, 1991a), Olinda tinha uma população de 341.394 habitantes, distribuídos em apenas 37,4 km2, com uma densidade demográfica de 9.128 habitantes por km2. A partir da década de 60, a cidade vem sofrendo um processo acelerado de crescimento populacional, resultado da atração exercida pelas cidades da RMR sobre a população migrante campo-cidade e da construção de grandes conjuntos habitacionais, onde hoje residem 25% da população, sem que houvesse um correspondente desenvolvimento significativo das atividades produtivas. Olinda, por distar do centro do Recife apenas 8 km, tem sido descrita com uma cidade gêmea conurbada com a capital, como se fora um bairro gigante onde a maior parte dos seus moradores exercem sua atividade (Novaes, 1990).

A maioria da população (98,5%) está na área urbana, distribuída em 86.137 domicílios, com uma média de 4,38 habitantes por residência. De acordo com a Secretaria de Planejamento do município, em 1988, 33% da população viviam em 47 favelas espalhadas pela cidade. O setor terciário representa 73% da atividade econômica da cidade, e 51% dos chefes domiciliares percebem até dois salários mínimos por mês, enquanto apenas 6% percebem mais de dez salários mínimos mensais (IBGE, 1991a). Trinta e dois por cento da população têm menos de 15 anos, e o analfabetismo é de 20% nos maiores de cinco anos de idade. A cidade é dividida em cinco áreas administrativas, que apresentam um alto grau de heterogeneidade social e epidemiológica (Secretaria de Saúde de Olinda, 1993). A área II, a mais populosa, com 103.100 habitantes, representa 30% da população total do município e é formada pelos seguintes bairros: Peixinhos, Sítio Novo, Salgadinho, Jardim Brasil I, Jardim Brasil II e Vila Popular.

 

O desenho da investigação e a coleta de dados

 

Um estudo transversal foi conduzido na área II de Olinda. A população de estudo foi definida como todos os residentes com idade igual ou superior a 15 anos na época da coleta de dados (62.891 habitantes), e o domicílio, considerado como a unidade amostral. Uma amostra aleatória simples de 226 domicílios foi selecionada, utilizando-se os números gerados por uma calculadora científica (Casio fx - 3400p). Os TMC foram avaliados por um procedimento em dois estágios. No primeiro, a versão brasileira do Self Reporting Questionnaire (SRQ-20) e um questionário sobre a inserção no mercado produtivo, a situação demográfica e sócio-econômica foram administrados em domicílio a 621 adultos por seis entrevistadores treinados (dois agentes comunitários de saúde com o ensino médio completo e quatro estudantes de medicina, com experiência prévia em trabalho de campo). Um estudo piloto foi realizado na área, em domicílios não selecionados pelo processo de amostragem, para identificar problemas na obtenção das entrevistas e testar a linguagem do questionário, que sofreu, então, as modificações necessárias. Para garantir o caráter duplo-cego do estudo, os entrevistadores não foram informados sobre os objetivos específicos da investigação. Na tentativa de minimizar a taxa de não-resposta, muitos domicílios foram visitados à noite e nos finais de semana, sendo possível obter-se informações sobre todos eles.

No segundo estágio, a população de estudo foi dividida em dois grupos, de acordo com os escores do SRQ-20: não-suspeitos, se igual ou menor que sete, e suspeitos, se igual ou acima de oito. Todos os suspeitos (n = 141) e uma amostra aleatória (n = 51) dos não-suspeitos foram encaminhados para uma entrevista psiquiátrica. Cento e setenta e três (173) consultas (122 nos suspeitos e 51 nos não-suspeitos) foram realizadas nos centros de saúde municipais e estaduais o mais perto possível do domicílio do entrevistado, por dois psiquiatras treinados, que utilizaram uma entrevista semi-estruturada (as perguntas foram preparadas com antecedência, mas eles podiam acrescentar questões para decidir sobre a presença/ausência de psicopatologia) baseada nas categorias diagnósticas do DSM III-R. Os psiquiatras e os entrevistados não sabiam dos resultados do screening e do questionário. Quando os entrevistados necessitavam/ solicitavam tratamento médico, eram encaminhados para os serviços de saúde pública da área.

 

O instrumento de screening - o Self Reporting Questionnaire

 

O Self Reporting Questionnaire (SRQ-20) foi desenvolvido por Harding et al. (1980) e validado por uma série de estudos internacionais conduzidos pela Organização Mundial da Saúde, com sensibilidade variando de 62,9% a 90% e especificidade, de 44% a 95% (WHO, 1993). A confiança nesta escolha do instrumento de screening veio do fato de ele já ter sido testado e validado em populações urbanas brasileiras (Busnello et al., 1983; Mari, 1987), não se fazendo necessário, no presente estudo, o teste de campo de sua tradução. É composto de vinte questões do tipo sim-não, quatro sobre sintomas físicos e dezesseis sobre distúrbios psico-emocionais. Inicialmente, o escore de corte do SRQ-20 para este estudo foi definido em 7/8 (baseado nos resultados de Mari, 1987). Depois do estudo do poder discriminatório dos diversos escores de corte pela Relative Operating Characteristic (ROC) analysis, utilizando-se a entrevista psiquiátrica como o padrão-ouro, este foi redefinido em 5/6 - sensibilidade = 62% e especificidade = 78% (para maiores detalhes sobre a aplicação da ROC analysis para o SRQ-20, ver Mari & Williams, 1986; Araya et al., 1992; Ludermir, 1998).

 

O questionário

 

Foi utilizado um questionário objetivo constituído por perguntas fechadas sobre a inserção no mercado produtivo e os possíveis fatores de confundimento de sua associação com os TMC. Segundo a literatura revisada, as covariáveis de interesse para a ocorrência dos TMC foram: sexo, idade, situação conjugal, migração, escolaridade, ocupação, renda, propriedade da casa e condições de moradia.

A maioria das variáveis é auto-explicativa, embora algumas necessitem ser definidas para aumentar a compreensão das informações coletadas:

• Transtornos mentais comuns (TMC) - expressão criada por Goldberg & Huxley (1992:7-8) para descrever "transtornos comumente encontradas na população e que sinalizam uma interrupção do funcionamento normal". Consistem em sintomas como insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração e queixas somáticas.

• Posição no mercado produtivo - a classificação utilizada pelo IBGE no Censo de 1991 foi adaptada pela autora e a população de estudo dividida em: trabalhadores remunerados (formais e informais), desempregados e inativos.

• Trabalhador formal - indivíduo formalmente inserido no mercado produtivo, incluindo os empregadores e empregados.

• Empregador - pessoa que explora uma atividade econômica com auxílio de empregado(s).

• Empregado - pessoa que exerce uma atividade econômica ou trabalha em estabelecimento, negócio, instituição, etc. do setor público ou privado, formalmente empregado, com carteira de trabalho assinada, contribuindo para a previdência e que recebia um ou mais salários mínimos por mês.

• Trabalhador informal - indivíduo trabalhando informalmente ou no mercado de bens e serviços, incluindo os subempregados e os autônomos.

• Subempregado - pessoa que recebe qualquer tipo de pagamento pelo seu trabalho, se diz empregado, mas não tem carteira de trabalho assinada (trabalhador clandestino).

• Autônomo - pessoa que exerce uma atividade isoladamente ou com a ajuda de membro da família sem vínculo empregatício, remunerado ou não, sem empregador e sem empregados sob o seu comando.

• Desempregado - pessoa que não estava trabalhando, mas estava procurando emprego.

• Inativos - alguém que não estava engajado em uma atividade produtiva e nem procurando emprego, ou seja, donas-de-casa, estudantes e aposentados.

• Ocupação - inicialmente, os indivíduos foram categorizados de acordo com a classificação de ocupações adotada pelo censo de 1991 (IBGE, 1992) e, posteriormente, agrupados em: trabalhadores não-manuais (intelectuais, administradores e prestadores de serviços), trabalhadores braçais (qualificados, semiqualificados e sem qualificação), donas-de-casa e estudantes. Os desempregados, inválidos e aposentados tiveram como referência a última ocupação.

• Renda familiar per capita mensal - definida como a renda familiar total em salários mínimos no mês anterior à entrevista dividida pelo número de pessoas no domicílio, foi categorizada em: 0 a 1/4; > 1/4 a 1; e >1.

Foi criado um índice de condições de moradia que considerou o material de construção da casa: paredes (tijolo = 1; outros = 0), telhado (telha/laje = 1, outros = 0) e o piso (madeira/ cerâmica = 2, cimento = 1 e terra batida = 0); banheiros (interno = 2, externo = 1 e comunitário = 0); e número de indivíduos por cômodos no domicílio (0,1-0,7 = 2; 0,71-0,9 = 1 e ³ 1 = 0). A média aritmética da soma de cada item foi calculada, e os indivíduos com valores abaixo da média foram classificados como de precárias condições de moradia; os de valores em torno da média (média ± 1 desvio padrão), como médios e os acima da média mais 1 desvio-padrão, como de boas condições.

 

Análise dos dados

 

Os dados foram digitados duas vezes por diferentes pessoas, com o propósito de validação, e analisados utilizando-se os programas Epi Info 5.01 (CDC, 1990/91) e Stata 4.0 para Windows (Stata Corporation, 1995).

O escore dicotômico do SRQ-20 (redefinido em 5/6), aqui assumido como uma aproximação quantitativa do estado de saúde mental, constitui-se na variável dependente da presente análise. Investigou-se a associação do desemprego e trabalho informal com os TMC, estimando-se os odds-ratios (OR) simples, intervalos de confiança a 95% e valores do p. Regressão logística - um modelo matemático empregado para descrever a relação de variáveis independentes (exposição + variáveis de confundimento ou covariáveis) com uma variável dependente dicotômica (Kleinbaum, 1994) - foi utilizada para investigar a independência da associação do desemprego e do trabalho informal com os TMC. As covariáveis incluídas no modelo foram aquelas descritas na literatura como potenciais fatores de confusão e que no presente estudo mostraram-se associadas com os TMC e com a posição no mercado produtivo. A presença de confundimento foi avaliada pela mudança nos odds-ratios quando da inclusão de grupos de covariáveis no modelo (Kleinbaum, 1994). Indivíduos residentes no mesmo domicílio tendem a ser semelhantes em relação às condições sociais e psicológicas, e isto pode acarretar um aumento substancial do erro padrão das estimativas de prevalência (Jenkins et al., 1997). Por isso, a análise de regressão logística, antes e depois do ajuste para variáveis de confundimento, utilizou os pesos de Huber (1967) para ajustar as estimativas, levando-se em consideração o efeito de cluster (conglomerado). Testes da razão de verossimilhança (LRS) foram realizados, e o valor do p de £ 0,05 foi assumido como estatisticamente significante.

 

 

Resultados

 

Depois de excluir os endereços não-existentes e as propriedades vazias ou empresariais, 226 domicílios (683 indivíduos de 15 anos ou mais) participaram do estudo. Seiscentos e vinte e um indivíduos completaram o SRQ-20 (91%). A taxa de resposta variou com o sexo: 96% para as mulheres e 85% para os homens (p <0,0001); no entanto, nenhuma diferença estatisticamente significante foi encontrada em relação à renda familiar per capita mensal (92% nos de baixa renda, 90% nos de renda média e 95% nos com renda mais alta; p = 0,14).

A Tabela 1 apresenta a distribuição da amostra por atividade econômica e posição no mercado produtivo. Vinte e um por cento (21%) dos economicamente ativos estavam desempregados e 38% trabalhavam no setor informal (representando 48% dos trabalhadores remunerados). A duração do desemprego foi significativamente maior (p = 0,03) nas mulheres (28 meses, desvio-padrão = 30,9) que nos homens (15 meses, desvio-padrão = 16,1).

 

 

A análise univariada da associação entre posição no mercado produtivo e os TMC, apresentada na Tabela 2, foi estratificada por sexo, já que homens e mulheres desempenham diferentes papéis sociais. Enquanto as trabalhadoras formais apresentaram uma saúde mental significativamente melhor que as informais (OR = 3,43), desempregadas (OR = 2,37), donas de casa (OR = 2,78) e inativas (OR = 2,60), as diferenças encontradas entre os homens não foram estatisticamente significantes.

 

 

Todas as covariáveis, com exceção da propriedade da casa, mostraram-se fatores potenciais de confundimento, por estarem associadas à posição no mercado produtivo (Tabela não apresentada) e, independente desta, aos TMC (Tabela 3).

 

 

A associação entre posição no mercado produtivo e os TMC manteve-se, mesmo quando ajustada, na análise multivariada, para idade, situação conjugal, migração, escolaridade, renda familiar mensal per capita e condições de moradia (Tabela 4). Os odds-ratios sugerem que a posição no mercado produtivo teve o seu efeito sobre a saúde mental modificado pelo sexo, fazendo com que o excesso dos TMC entre os trabalhadores informais e desempregados apareça exclusivamente nas mulheres (OR = 3,02, IC a 95% 1,3-7,2 e OR = 2,66, IC a 95% 1,1-6,3, respectivamente). Porém, o teste para interação só foi estatisticamente significante (LRS = 4,25; 1 grau de liberdade; p = 0,04) para o trabalho informal, não havendo evidências de que associação entre o desemprego e a saúde mental fosse diferente entre homens e mulheres (LRS = 0,32; 1 grau de liberdade, p = 0,57). O odds-ratio estimado para as trabalhadoras informais (3,02) ficou fora dos limites de confiança a 95% da estimativa correspondente para os homens (OR = 1,08 IC a 95%, 0,5-2,4), o que pode representar mais uma confirmação empírica da sua interação com o sexo.

 

 

 

Discussão

 

Neste estudo, as mulheres desempregadas e as trabalhadoras informais apresentaram um risco aumentado para os TMC. No entanto, não foi encontrada uma associação estatisticamente significante entre a posição no mercado produtivo e a saúde mental nos homens. Embora a causalidade reversa seja improvável, já que os nossos resultados concordam com a literatura revisada, um estudo transversal não nos permite distinguir se o desemprego e o trabalho informal produziram os efeitos adversos das mulheres aqui investigadas ou se distúrbios psicológicos encontrados tornaram-nas mais propensas ao desemprego e à informalidade.

 

Desemprego e TMC

 

No Brasil, onde o trabalho é a principal fonte de remuneração, status e segurança e considerado fundamental para uma vida decente (79% dos entrevistados o considerou como uma parte essencial de suas vidas), a desvalorização social causada pelo desemprego (Warr, 1987) pode comprometer o bem-estar psicológico individual. Neste estudo, quanto menores a escolaridade, a qualificação e a renda, maiores foram as chances do trabalhador estar desempregado. Assim, parte da associação aqui encontrada pode ser atribuída a dificuldades financeiras devido ao desemprego (Warr, 1987; Rodgers, 1991) para os já vulneráveis por sua posição de classe (Colledge & Hainsworth, 1982). Além disso, a desorganização do mercado de trabalho brasileiro e o excesso de mão-de-obra de reserva (DIEESE, 1996) trazem pessimismo sobre o futuro e diminuem o poder individual percebido de controle sobre o meio social (já que a procura de emprego não produz respostas previsíveis), gerando ansiedade e depressão (Warr, 1987; Rosenfield, 1989).

 

Trabalho informal e TMC

 

A maioria dos estudos revisados realizou-se em países ricos e com políticas sociais definidas. No mundo em desenvolvimento, a situação é bastante diferente, e o exército industrial de reserva urbano é constituído menos por desempregados, em senso estrito, e mais por serviçais domésticos, biscateiros e ambulantes (Singer, 1983; Urani, 1995). Em 1981, os trabalhadores informais representavam 54% da ocupação total brasileira (Urani, 1995). Entre 1989 e 1992, com a queda da participação dos trabalhadores formais na força de trabalho de mais de 8%, uma proporção considerável dos que perderam seus empregos com carteira assinada encontraram empregos sem carteira ou abandonaram o mercado de trabalho para se lançarem como autônomos, no mercado de bens e serviços (Urani, 1995). Parte deles, provavelmente desencorajados pelas condições do mercado de trabalho, interromperam a procura de emprego e optaram pela informalidade como a única forma de garantir alguma remuneração (DIEESE, 1996). Esta informalidade trouxe consigo algumas características que podem ser maléficas para a saúde psicológica, tais como: baixos níveis de poder de decisão e de controle pessoal (Warr, 1987; Rosenfield, 1989) sobre os vencimentos e a jornada de trabalho, determinados pela demanda do mercado, no caso dos autônomos, ou pela conveniência do empregador, para os subempregados. A incerteza sobre a situação de trabalho (Warr, 1987), os baixos salários (neste estudo, os trabalhadores informais tinham salários ainda mais baixos que os formais), a ausência de benefícios sociais e de proteção da legislação trabalhista foram, provavelmente, os responsáveis pelo desenvolvimento da ansiedade e depressão entre os trabalhadores informais.

 

Inserção no mercado produtivo, gênero e saúde mental

 

Os nossos resultados sugerem que o mundo do trabalho tem dois sexos. Se o efeito do desemprego na saúde mental masculina pode ter sido aqui atenuado pelo erro tipo II, ou seja, a quantidade de homens recrutados pelo estudo não foi suficiente para detectar uma diferença estatisticamente significante, mesmo que esta exista (Hennekens & Buring, 1987), a interação entre sexo e trabalho informal demonstra que este é vivenciado diferentemente por homens e mulheres. Mais especificamente, a associação entre trabalho informal e os TMC parece estar presente nas mulheres e ausente nos homens. Esta constatação apontou para a necessidade de complementar o referencial teórico das relações de classe aqui assumido com a abordagem de gênero, que expressa a relação de poder entre os sexos e reflete a dimensão social das desigualdades sexuais (Oliveira, 1997).

No Brasil, a taxa de atividade econômica feminina vem aumentando, particularmente na forma de trabalho autônomo, que permite uma maior flexibilidade na jornada de trabalho, uma questão crucial para mulheres que têm que conciliar as obrigações familiares com a necessidade/desejo de uma ocupação remunerada (Santana et al., 1997). Empurradas para o trabalho fora de casa, as mulheres têm enfrentado taxas mais altas de desemprego e salários menores que os homens (DIEESE, 1997). A decisão de trabalhar reflete vários aspectos da vida feminina. Para Joffe (1985), existem dois grupos de mulheres entre as que exercem uma atividade remunerada: as que têm uma carreira profissional e, portanto, trabalham por realização pessoal; e as socialmente desfavorecidas, que o fazem por pressões financeiras. As relações de gênero são construídas socialmente e variam com a classe social, mas, independente da sua posição social, a maioria das mulheres aqui estudadas, ao contrário dos homens, ao desempenhar uma atividade econômica, assumia também as responsabilidades de esposa, mãe e trabalhadora e empreendia dois trabalhos: o remunerado e o não remunerado, geralmente não reconhecido dentro de casa. Apesar da sobrecarga de trabalho, a inserção feminina formal no mercado associou-se a uma melhor saúde mental, provavelmente pelo aumento do orçamento doméstico (Warr, 1987; Bartley et al., 1992) e pela proteção contra o isolamento, a monotonia e o baixo status (Warr, 1987; Macran, 1993) que acompanham o papel de dona de casa na sociedade brasileira. Mas, enquanto 54% das trabalhadoras informais apresentavam ansiedade e depressão, apenas 19% dos homens sofriam com a informalidade. O emprego doméstico, uma extensão do papel tradicional de dona de casa, foi comum entre as mulheres e, nos homens, as ocupações de pedreiro e encanador, que exigem uma certa qualificação, foram as mais freqüentes. Se para os homens o trabalho informal significa autonomia e a concretização do sonho de não ter patrão, para as mulheres, além da carga adicional de trabalho e da monotonia, representa uma oportunidade limitada e não reconhecida do uso de suas capacidades (Warr, 1987). A incerteza sobre sua situação de trabalho, como conseqüência da informalidade, e a percepção de injustiça e discriminação (Santana et al., 1997), pelas menores chances em relação às dos homens de uma inserção formal, podem estar negativamente associadas ao bem-estar psicológico feminino.

A combinação de características individuais com os seus diferentes significados sociais torna a compreensão psicológica do emprego/desemprego/trabalho informal uma questão bastante complexa (Warr, 1987; Ezzy, 1993; Graetz, 1993), e a hipótese de que as conseqüências psicológicas do trabalho informal variam com o gênero necessita ser aprofundada futuramente.

 

 

Agradecimentos

 

A autora agradece a todos os que tornaram este trabalho possível: os entrevistadores Edmilson Henauth, Celso Nunes, Sérgio Cavalcanti, Thales Couceiro, Lídia da Fonseca, Dinalva da Silva e Lucidalva da Silva; os psiquiatras Angela Bezerra e Ricardo de Barros; o professor Glyn Lewis; as direções da Faculdade de Ciências Médicas e da Secretaria de Saúde de Olinda e os entrevistados. Esta pesquisa foi desenvolvida com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco - FACEPE - e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

 

 

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