ARTIGO ARTICLE
Anibal Faúndes1,2 | Mortalidade de mulheres em idade fértil em Campinas, São Paulo (1985-1994) Mortality among childbearing-age women in Campinas, São Paulo (1985-1994)
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1 Centro de Pesquisa das Doenças Materno-Infantis de Campinas, Universidade Estadual de Campinas. C. P. 6181, Campinas, SP 13081-970, Brasil. 2 Departamento de Tocoginecologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. C. P. 6181, Campinas, SP 13081-970, Brasil. | Abstract To provide a profile of the main health problems in childbearing-age women, we studied all 3,086 death certificates from the SEADE Foundation for women from 10 to 49 years of age and residing in the municipality of Campinas, from January 1, 1985, to December 31, 1994. The primary cause of death was identified and classified according to the 10th review of the ICD. Population data were obtained from the Laboratory for Epidemiological Analyses and Research, UNICAMP. One-fourth of the deaths were cardiovascular in origin, one-fifth were from external causes, and almost 20% were due to neoplasms. Maternal mortality was the ninth cause of death. External causes predominated in the 10-to-34-year age group, as compared to cardiovascular diseases and neoplasms in the 35-to-49-year group. Most alarming were the predominance of traffic accidents among causes of death in women up to age 34 (greater than AIDS during the study period) and the high mortality rate from homicides. Key words Mortality; Fertile Age; Women; Cause of Death Resumo Com o fim de obter um perfil das principais doenças que afetam as mulheres em idade fértil, estudaram-se todas as 3.086 declarações de óbito de mulheres de 10 a 49 anos, residentes no Município de Campinas, Estado de São Paulo. Óbitos ocorridos entre primeiro de janeiro de 1985 e 31 de dezembro de 1994, fornecidos pela Fundação SEADE. A causa básica desencadeante do óbito foi identificada e classificada segundo a CID 10a revisão. Os dados populacionais para o períodos foram obtidos do Laboratório de Análises e Pesquisas Epidemiológicas da UNICAMP. Um quarto dos óbitos foram por doenças cardiovasculares e um quinto por causas externas. A terceira causa, próxima a 20% do total, foi neoplasia. A mortalidade materna constituiu a nona causa de morte. As causas externas foram as principais causas de morte entre 10 e 34 anos. A partir dos 35 anos, predominaram as causas cardiovasculares e neoplasias. Chama a atenção o predomínio dos acidentes de trânsito como primeira causa de morte ate os 34 anos de idade, superando a AIDS durante o período estudado, assim como a alta mortalidade por homicídio. |
Introdução
Nas sociedades econômico, cultural e socialmente mais desenvolvidas, a mortalidade masculina é maior do que a feminina em todas as faixas etárias. Esta condição resulta em uma maior esperança de vida ao nascimento de cerca de sete a oito anos para as mulheres (Banco Mundial, 1990). As análises mais recentes sobre a mortalidade de adultos em países de Primeiro Mundo têm mostrado uma tendência de aumento na mortalidade de mulheres relacionada, principalmente, às mudanças de comportamento e aos hábitos, como: fumar, alimentação inadequada, uso de drogas, sexo desprotegido, maior participação no mercado de trabalho, com predominância de doenças relacionadas a essas atividades (McGinnis & Foege, 1993; Waldron, 1993).
No Brasil, embora seja um país menos desenvolvido, dados do Banco Mundial (1990) apontam para uma esperança de vida ao nascimento, maior em torno de cinco anos para as mulheres (63 anos para os homens e 68 anos para as mulheres). Esta diferença, à semelhança de países desenvolvidos, vem apresentando tendência à diminuição, como verificado no período de 1980 a 1988, com ganho maior para os homens (seis anos) do que para as mulheres (4,6 anos), tendendo assim à diminuição da distância entre as respectivas esperanças de vida ao nascimento (Chor et al., 1992).
Não existe um coeficiente específico para medir a mortalidade de mulheres em idade reprodutiva, e nem tampouco o intervalo de idade é nítido para a definição deste conceito. Biologicamente é representado pelo período compreendido da menarca à menopausa, mas é amplamente conhecido que a idade da menarca sofre alterações, inclusive secundárias a fatores exógenos, podendo acontecer fisiologicamente dos 10 aos 16 anos. Entretanto, não se pode deixar de considerar a gravidez na adolescência, mesmo em meninas menores de 15 anos. Siqueira & Tanaka (1986), ao avaliarem a mortalidade entre adolescentes no Brasil, registraram 0,59% de óbitos secundários à gravidez, parto e puerpério, em meninas de 10 a 14 anos. Dessa forma, recomenda-se que os estudos sobre mortalidade de mulheres em idade reprodutiva devam incluir a faixa etária de 10 a 14 anos, e não somente a partir dos 15 anos (Laurenti, 1988). Apesar de que a idade da menopausa pode sofrer grandes variações, há quase um consenso na idade de 49 anos para definir o término da idade reprodutiva.
Este trabalho propõe-se analisar a mortalidade de mulheres em idade reprodutiva, residentes no Município de Campinas, entre 1985 e 1994, com base em análise pormenorizada das declarações de óbito (DO).
A cidade de Campinas, situada na região sudeste do estado, é um centro industrial, comercial, cultural e médico bastante desenvolvido do Estado de São Paulo, contando ainda com duas universidades. Uma pesquisa sobre as condições de vida (PCV) na cidade de Campinas mostrou que em 1994, 20% das famílias eram chefiadas por mulheres e um quarto dos chefes era migrante. A renda familiar per capita era de R$348,00, metade das famílias dispunha de até R$186,00 de renda familiar per capita, e mais de 36% tinham renda superior a dez salários mínimos. Vinte porcento das moradias localizavam-se em ruas sem pavimentação, 17% das famílias não tinham acesso ao sistema público de esgoto, coexistindo situações de excelente nível sócio-econômico e cultural, com um grupo razoável de famílias em situação de extrema pobreza (SEADE, 1995). Estas características especiais da cidade tornam Campinas uma mistura de cidades do terceiro e do primeiro mundo.
Conhecer as cifras de mortalidade, bem como as causas de morte destas mulheres residentes no município, poderá contribuir para o conhecimento dos problemas de saúde que mais freqüentemente acometem este grupo de mulheres, com as possíveis futuras implicações de novas propostas de intervenções para a melhoria das condições de vida e de saúde desta população.
Casuística e métodos
Estudaram-se 3.086 DO de mulheres de dez a 49 anos, residentes no Município de Campinas, número que representa o total de óbitos femininos ocorridos no período de primeiro de janeiro de 1985 a 31 de dezembro de 1994, para a faixa etária específica. A fonte primária dos dados de óbitos foi a Fundação SEADE (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados), inicialmente se valendo da listagem de todas as DO, correspondentes a pessoas com as características acima descritas.
De posse da listagem, procedeu-se o levantamento manual das DO, seguido de fotocópias de todas as selecionadas. A etapa seguinte foi a de identificação da causa básica desencadeante do óbito, realizada manualmente por um dos autores (M. A. P.), baseando-se nas informações das DO, segundo a CID 10a revisão (OMS, 1995). Contudo, para alguns meses do ano de 1992, foram utilizados os dados tabulados, segundo a CID 9 com ajuste de equivalência para CID 10, uma vez que houve extravio no arquivo da Fundação SEADE.
Os dados populacionais referentes ao período entre 1985 a 1994 foram obtidos nas estimativas de população residente do IX e X Censo Demográfico do Brasil (1980 e 1991), calculadas pelo Laboratório de Análises e Pesquisas Epidemiológicas, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Universidade Estadual de Campinas (LAPE/DMPS/UNICAMP). Para o cálculo foram utilizados dados censitários de 1980 e 1991, aplicando-se progressão geométrica com interpelação e extrapolação. Margem de erro estimada de 4%.
A causa básica do óbito foi definida como a doença ou lesão que iniciou a sucessão de eventos mórbidos que levou diretamente à morte, ou as circunstâncias do acidente ou violência que produziu a lesão fatal (OMS, 1995). Utilizou-se a classificação da causa básica do óbito, segundo os 21 capítulos da CID 10 (OMS, 1995) e segundo a lista de tabulação da mortalidade número 2 (mortalidade geral lista selecionada) - CID - 10.
Pelo preenchimento do formulário específico do estudo, com os ajustes da causa básica, quando necessários, os dados foram revisados, corrigidos manualmente e introduzidos em programa Epi-Info 6.0, para realizar o cálculo dos coeficientes de mortalidade geral e de mortalidade específica por causa ou grupo de causas e por grupo de idade.
Garantiu-se o sigilo das fontes de informação, sem identificação dos sujeitos, profissionais e hospitais que atenderam ou preencheram as DO.
Resultados
Mortalidade por causas segundo capítulos do CID 10
A principal causa de morte foi o grupo de doenças cardiovasculares, representando um quarto do total da mortalidade, seguido pelas causas externas e neoplasias. A mortalidade materna foi a nona causa de óbito feminino em idade reprodutiva para o período, muito próxima da oitava causa que correspondeu às doenças do aparelho gênito-urinário (Tabela 1). A análise detalhada da mortalidade materna será objeto de uma publicação específica e separada.
A grande maioria dos óbitos aconteceu na cidade de Campinas (96%) e em ambiente hospitalar (85,1%). Cerca de 10% dos óbitos ocorreram no domicílio e 16,3% das DO foram emitidas pelo Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), o que significa que nestes casos ou o óbito ocorreu na residência, ou não houve assistência médica no período da doença.
Mortalidade por idade e capítulo do CID 10
A mortalidade proporcional, bem como seus coeficientes, foi maior à medida que aumenta a idade, sendo o coeficiente mais de dez vezes superior no grupo etário de 45-49 anos que no grupo de 10-14 anos. Onze porcento das mulheres que foram a óbito eram adolescentes e perto de 20% tinham até 24 anos (Tabela 2).
O coeficiente de mortalidade por causas externas manteve-se estável com incidência superior a 20 óbitos/100.000 mulheres desde os 20 até os 49 anos de idade e foi a primeira causa de óbito para todos os grupos etários mais jovens, até 30-34 anos, com pico máximo para o grupo etário de 15-19 anos, em que esteve próximo a 30 óbitos/100.000 mulheres (Figura 1). As causas cardiovasculares e neoplásicas aumentaram dramaticamente com a idade, passando a ser a primeira e a segunda causa de mortalidade a partir dos 35 anos de idade. O maior coeficiente correspondeu às doenças cardiovasculares, com aproximadamente 130 óbitos/100.000 mulheres de 45-49 anos, seguido pelas neoplasias com 100 óbitos/100.000 mulheres no mesmo grupo etário. O coeficiente de óbitos por doenças infecto-parasitárias, do aparelho respiratório e gastrintestinais tiveram também um aumento, mais discreto, nos grupos de maior idade.
Entre as causas com menor coeficiente, chama a atenção o alto número de casos classificados no grupo de causas mal definidas de óbito que chega a mais de dez óbitos/100.000 mulheres na faixa etária acima de 40 anos. O coeficiente de mortalidade por doenças endócrinas também atinge níveis semelhantes no grupo de maior idade, seguidas pelas doenças gênito-urinárias, cujo coeficiente aumentou a partir dos 30-40 anos (Figura 2). As doenças hematológicas, mentais e malformações congênitas mantiveram-se com coeficiente inferior a 1/100.000 mulheres, sem grandes variações segundo idade (não aparecem na Figura 2).
Mortalidade por doenças específicas e idade
Os acidentes de trânsito mantiveram-se como a principal causa isolada de morte desde os 10 até os 34 anos, apresentando, junto com os demais acidentes, uma elevação na faixa etária de 15-19 anos e mantendo-se estáveis nas demais faixas etárias (Figura 3). Além disso, dentro das causas externas, os homicídios foram mais freqüentes no grupo etário de 20-24 anos e nova ascensão ocorreu aos 35-39 anos. O câncer de mama adquire importância a partir dos 30 anos, sendo o coeficiente do grupo mais velho cerca de seis vezes maior que na faixa etária entre 30 e 40 anos. O aumento dos óbitos com a idade é menos acentuado para o câncer de colo uterino, e inicia-se aos 25 anos. Para AIDS, os maiores coeficientes estiveram nos grupos etários de 25-29 anos e 40-44 anos.
Discussão
A validade da DO como instrumento de análise, embora apresentando algumas deficiências na determinação da causa básica, já foi testada previamente e considerada satisfatória, uma vez que o preenchimento é sistematizado e o número de omissões é insignificante para o Estado de São Paulo (Maia & Campanário, 1994).
O coeficiente de mortalidade de 113,0 por 100.000 mulheres de 10 a 49 anos, encontrado em nosso estudo, e os crescentes coeficientes segundo a idade, de 31,9/100.000 mulheres no grupo etário de 10-14 anos, até 364,2/100.000 mulheres na idade de 45-49 anos, são muito semelhantes aos encontrados por Laurenti et al. (1990), no Município de São Paulo, no ano de 1986. Estes autores identificaram um coeficiente de mortalidade de 114,9/100.000 mulheres e coeficientes por idade de 30,5/100.000 mulheres no grupo etário de dez a 14 anos e 373,0/100.000 mulheres de 45-49 anos. Para Carvalheiro & Manço (1992), no Município de Ribeirão Preto, o coeficiente de mortalidade para a população de mulheres de 15 a 49 anos, no período de 1985 a 1989 foi de 125,1/100.000 mulheres, mas estas autoras não avaliaram a faixa etária de 10 a 14 anos. Entretanto, seus coeficientes de mortalidade de 38,4/100.000 em mulheres de 15 a 19 anos foram consideravelmente menores que aqueles por nós encontrados, de 56,2/100.000 em mulheres na mesma idade. Por outro lado, no grupo etário de 35 anos, nossos coeficientes de mortalidade foram sempre menores, o que sugere diferenças regionais dentro do próprio Estado de São Paulo.
A pequena proporção de óbitos que ocorreu fora do município (4%) e a alta porcentagem que ocorreu em hospital (85%) seguramente refletem a capacidade hospitalar de Campinas, e a pequena procura de atenção médica em outras cidades pela população do município. Chama a atenção o número relativamente alto de óbitos cujas DO foram emitidas pelo SVO (16,3%), que representam casos de morte sem assistência médica ou com atendimento precário que impossibilitou o diagnóstico da causa básica, o que pode ser considerado como indicador de acesso e da qualidade da assistência médica recebida pela população.
A elevada proporção de óbitos por doenças cardiovasculares, neste grupo de mulheres, com predomínio crescente a partir do subgrupo de idade 30-34 anos, coincide com os padrões de mortalidade de mulheres em idade reprodutiva avaliados por Laurenti et al. (1990), Lolio et al. (1991) e Carvalheiro & Manço (1992) em outros municípios do Estado de São Paulo. Esta característica é diferente da observada por Paneque (1986) que, em Cuba, relatou que as doenças cardiovasculares deixaram de ser a primeira causa de morte feminina, no grupo de 15 a 49 anos, desde 1968.
Neste contexto, vale ressaltar que, nas últimas décadas, as mortes por doenças cardiovasculares, neoplasias, acidentes e violência, denominadas doenças da industrialização, têm dominado o perfil da mortalidade de adultos nos países desenvolvidos. As doenças cardiovasculares, entretanto, têm decrescido em alguns grandes centros urbanos, às custas de melhorias nas condições de diagnóstico e terapêutica especializada, em faixas etárias mais jovens, e passaram a representar parcela importante dos óbitos na população de 65 anos ou mais (Sutherland et al., 1990).
Diversos aspectos podem ser imputados ao predomínio da mortalidade por doenças cardiovasculares na população feminina em idade fértil. No Estado de São Paulo, Lolio et al. (1991), Lotufo & Lolio (1993a), Lotufo & Lolio (1993b) discutem a alta prevalência de hipertensão arterial sem diagnóstico no Estado e, portanto, sem tratamento adequado. Outro aspecto relevante a esta situação diz respeito diretamente aos programas de saúde pública aplicados à ginecologia e obstetrícia. Beral (1979) sugere avaliar os óbitos femininos secundários não apenas às complicações do ciclo grávido puerperal, mas também aos que poderiam estar associados à anticoncepção. Neste aspecto, seria importante avaliar a correlação da mortalidade por doenças cardiovasculares pelo uso, por exemplo, de anticoncepcionais orais, em mulheres com hipertensão arterial prévia e/ou com hipertensão secundária ao uso da medicação, ou ao hábito do tabagismo ou com antecedente de fenômenos tromboembólicos. Infelizmente estes aspectos não puderam ser avaliados e, dessa forma, não é possível aprofundar esta discussão, que necessita estudos epidemiológicos específicos para sua melhor elucidação.
Diferente do encontrado por outros autores brasileiros (Lolio et al., 1991; Carvalheiro & Manço, 1992), para o Estado de São Paulo, em que as causas externas representaram a terceira causa de morte, no grupo estudado estas representaram um quinto da mortalidade no período e foram a segunda causa de óbito, apesar de muito próxima às mortes por neoplasias.
O crescimento da mortalidade secundária às causas externas tem sido avaliado no Brasil, em distintos segmentos da população. Vermelho & Mello-Jorge (1996) descrevem a evolução da mortalidade de jovens de 15 a 24 anos, nos Municípios de São Paulo e Rio de Janeiro, ocorrida de 1930 a 1991, e revelaram taxas crescentes de mortalidade por causas externas, que passaram a ocupar o primeiro lugar desde a década de 60, e com um crescimento nos coeficientes de até três vezes para o ano de 1991 em relação ao ano de 1960. Os autores definem esta situação como a transição epidemiológica para a violência.
Esta situação não é peculiar do Brasil. A mortalidade por causas externas tem sido objeto de preocupação pela sua repercussão negativa sobre a qualidade e a expectativa de vida ao nascimento e a estabilidade econômica nas Américas, particularmente desde o ano de 1993, quando a Organização Panamericana de Saúde (OPS) a elegeu como tema da 111a Reunião do Comitê Executivo.
Na análise da mortalidade por causas externas é importante selecionar seus componentes, segundo critérios da CID. Yunes & Rajs (1994), ao avaliarem a tendência desta mortalidade na população das Américas, no período de 1979 a 1990, identificaram comportamento distinto entre os países, em relação aos três grupos principais de mortes por causas externas, acidentes de tráfego, suicídios e violência. Concluem que, embora tenha havido uma tendência de queda na mortalidade por causas externas em nove dos quinze países avaliados, esta dependeu primordialmente da redução dos acidentes de tráfego.
Nossos dados, coincidindo com o verificado por Yunes & Rajs (1994) para o Brasil, apresentam dentre as causas externas, dois componentes mais alarmantes: os acidentes de trânsito e os homicídios. O coeficiente de mortalidade por acidentes de trânsito, no sexo feminino, encontrado neste trabalho não é diferente do descrito no Brasil, que, em 1986, foi de 9,4/100.000 mulheres, representando o quinto maior do mundo (OMS, 1990/1992).
Dados semelhantes foram publicados por Mello-Jorge & Latorre (1994) que encontraram incremento nos óbitos por acidentes de trânsito no sexo feminino de 7,8 em 1979 para 8,5 em 1983. Nos nossos dados, os acidentes de trânsito constituíram a principal causa de morte de mulheres até o grupo de 30-34 anos, superando inclusive as mortes por AIDS, o que contrasta com a mínima importância que se dá a este problema dentro do setor de saúde.
Assim mesmo, algo semelhante acontece com as questões relacionadas aos homicídios, que no Brasil têm revelado um panorama extremamente negativo e preocupante. Na população estudada, os homicídios apresentaram duas inflexões, uma na faixa etária de 20-24 anos e uma segunda aos 35-39 anos, com coeficientes de mortalidade próximos a 5/100.000 mulheres e 3/100.000 respectivamente, muito próximos das taxas para o Brasil de 5,03 no grupo de 20-29 anos encontradas por Souza (1994).
O contexto social e econômico do país nas últimas décadas parece ter papel decisivo nesta situação. As desigualdades sociais e o mercado recessivo de trabalho formal têm propiciado, principalmente aos menos favorecidos, um mercado paralelo, como por exemplo o narcotráfico e o narcoterrorismo.
O jovem é, sem dúvida, mais suscetível e dessa forma tem-se definido um perfil para a violência, caracterizado como indivíduo jovem, pobre e primordialmente do sexo masculino. Os dados deste estudo mostram, entretanto, que o homicídio é também causa importante de morte entre as mulheres na faixa etária avaliada, superando também os óbitos por AIDS nos grupos de até 20-24 anos, no período compreendido por esta pesquisa.
Apesar de as doenças neoplásicas terem ocupado o terceiro lugar entre as causas de morte, neste estudo, estas representaram praticamente um quinto da mortalidade total de mulheres (19,6% dos óbitos), ficando muito próxima da segunda causa (externas). Este resultado é semelhante aos de outros estudos de mortalidade em idade reprodutiva, no Estado de São Paulo, especificamente nos Municípios de São Paulo e Ribeirão Preto, em que as neoplasias representaram a segunda causa de morte (Laurenti et al., 1990; Carvalheiro & Manço, 1992). Surpreendente foi o caso do Município de Recife, onde as neoplasias foram a primeira causa de morte, com 28,8% da mortalidade total de mulheres em idade fértil, nos anos de 1992 e 1993 (Albuquerque et al., 1998).
Vale chamar a atenção que o câncer de mama passou a ser a principal causa de morte por neoplasia, com coeficiente duas vezes maior que para câncer de colo uterino, a partir dos 40 anos de idade, seguindo um padrão mais característico de países desenvolvidos.
A mortalidade por neoplasia de colo uterino, na faixa etária até 44 anos, com coeficientes próximos a 5/100.000 habitantes, foi menor inclusive que o de muitos países de primeiro mundo como Inglaterra, em dados do ano de 1992 e Estados Unidos em 1991 (OMS, 1993/ 1994). Por outro lado, o coeficiente de mortalidade para neoplasia cervical ajustado por idade, de aproximadamente 3/100.000 mulheres de 10 a 49 anos, neste estudo contrastam com a observação de Albuquerque et al. De acordo com seus dados, é possível estimar um coeficiente de 8,4/100.000 mulheres, em idade reprodutiva, no Município de Recife em 1992-1993 (Albuquerque et al., 1998). A menor mortalidade por esta causa em Campinas talvez possa ser atribuída a um programa de prevenção desta doença, mais antigo e extenso que em outras regiões do país.
O quarto lugar, ocupado pelas doenças infecciosas e parasitárias, com 8,2% do total de óbitos e coeficiente de mortalidade de 9,2/ 100.000 mulheres no período, coincide com os dados de mortalidade de adultos de 15 a 49 anos em Cuba (Paneque, 1986); com a mortalidade de mulheres em idade reprodutiva, na Cidade de São Paulo, no ano de 1986 (Laurenti et al., 1990), e com dados da cidade de Recife, na população de mulheres de 10 a 49 anos, no período de 1992 e 1993 (Albuquerque et al., 1998). Esta semelhança em ambientes que têm diferenças sócio-econômicas evidentes, como no caso de Recife, talvez se explique pela grande participação da AIDS neste capítulo. Apesar de a AIDS também se associar ao nível sócio-econômico, sua incidência sofre influência de outras variáveis independe do nível sócio-econômico.
A mortalidade materna representou o nono grupo de causas de morte nesta população, com 2,7% do total de óbitos, coincidindo com Carvalheiro & Manço (1992). Foi a quinta causa de morte, com 5,9% do total de óbitos, na avaliação de Laurenti et al. (1990); a nona, correspondendo a 2,7% da mortalidade, na avaliação de Carvalheiro & Manço (1992) e a sétima causa, com 4,1% do total de mortes de mulheres em idade fértil no estudo de Albuquerque et al. (1998).
De todos os dados obtidos, não há dúvidas de que o que mais chama a atenção de qualquer observador é o lugar destacado que ocupam a violência no trânsito e o homicídio, como causas de morte de mulheres em idade fértil. Enquanto a AIDS e as mortes maternas são objeto de maior destaque no âmbito nacional e mundial (e no caso da AIDS, de amplas e custosas campanhas para sua prevenção e controle), a violência do trânsito e a violência pessoal, apesar de causar um número bem maior de óbitos, não conseguem chamar a atenção, nem de autoridades de saúde, nem de meios de comunicação social, nem da população em geral.
As organizações preocupadas com a saúde da mulher, por exemplo, parecem ainda não ter tomado consciência da importância das causas externas, além da violência doméstica. Os próprios médicos, em posições de influir nas políticas de saúde e educação, ainda não consideraram a gravidade destes problemas.
Se a publicação destes dados conseguir chamar a atenção de colegas, autoridades de saúde e do público em geral, a fim de, sem sensacionalismos, criar consciência para estes problemas, é possível que medidas mais eficientes sejam tomadas para evitar este enorme número de mortes que não deveria acontecer.
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