DEBATE DEBATE
Mara Helena de Andréa Gomes Departamento de Medicina Preventiva, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo | Debate sobre o artigo de Ana Maria C. Aleksandrowicz Debate on the paper by Ana Maria C. Aleksandrowicz |
Quero ressaltar, antes de tudo, a coragem da autora na escolha de dois eixos para comentar o livro de Sokal & Bricmont. As incontáveis provocações feitas por estes autores aos cientistas sociais, mais do que às próprias Ciências Humanas, não deixa de constituir uma maneira relativamente escamoteada com que se esquivam de enfrentar questões internas fundamentais não só para estas, como para a ciência como um todo. As críticas de Sokal & Bricmont aos cientistas humanos acabam por respingar no próprio campo de conhecimento específico (nem mais nem menos notável por tal especificidade) destas ciências, tamanho o alvo que escolheram para disparar generalizações (a este respeito, que motivo terá conduzido os editores brasileiros a acrescentarem um subtítulo tão amplo e categórico?) e generalidades, com algumas das quais aliás, dadas a obviedade e validade para qualquer campo, somos cooptados a concordar. Não deve ter sido fácil, portanto, escolher o caminho de exposição percorrido nesse louvável esforço intelectual.
Embora seja tentador diversificar os eixos escolhidos por Aleksandrowicz, tentarei comentar o texto em torno de sua busca por apontar "uma resposta significativa" às críticas de Sokal & Bricmont; busca com a qual, diga-se, talvez tenha se colocado na plena, mas nem tão sutil, armadilha dos autores. Concordo plenamente com a alegada necessidade de respostas, por parte das Ciências Humanas, não diretamente aos autores das Imposturas, mas aos problemas sociais postos pela e para a humanidade ao longo dos tempos - e o desenvolvimento científico é um deles, sobretudo em sua relativamente recente associação histórica ao desenvolvimento tecnológico.
O que está em questão, afinal? Parece-me que é a recuperação de um certo entrelaçamento proposto há muito tempo (pelos chamados "modernos" e alguns "pós-modernistas", justiça seja feita a uns e outros e usando as designações de Sokal & Bricmont), entre distintos campos de conhecimentos, em um plano que não se configura na imediatez destas práticas científicas, mas em um nível necessariamente descolado de todas elas. Como será possível essa reflexão sem levarmos em conta todas as necessárias mediações materiais, sociais e simbólicas aí embutidas? Se, até o momento, a especialização é o produto social e histórico mais acabado daquele desenvolvimento, as dificuldades dela derivadas, por um lado, impedem-nos de reconhecermo-nos uns aos outros e em todos esses planos que dizem respeito ao local, regional, nacional - cultural, enfim. Por outro lado, conduzem-nos a lidar com estas questões, quer sejamos ou não cientistas (humanos, sociais, naturais, biológicos...).
Não terá sido por acaso, portanto, o referido apelo esperançoso à parceria entre a Física e a Filosofia apontado pela autora. No interior desta parceria, as Ciências Sociais e Humanas ocupam um lugar subsidiário - mas não necessariamente subordinado -, cabendo-lhes elaborar as mencionadas intermediações na atual divisão intelectual do trabalho, decorrência do também indicado "movimento irreversível da Cultura". Neste contexto de mediações e práticas, a interdisciplinaridade não é apenas um apelo, mas algo constitutivo deste amplo campo, necessariamente marcado por um trânsito tão contínuo quanto (in)tenso entre elas.
No que concerne à proposta de transdisciplinaridade em tempos tão especializados, Sokal & Bricmont têm lá suas razões: todo cuidado é pouco quando se trata de transitar entre campos conceituais cujos significados e sentidos podem ser mais ou menos explicativos para determinado referencial, mas não para todos. Para ficarmos no campo da sociologia, Durkheim (1972, 1977), por exemplo, criou sua "morfologia" e "fisiologia social" com a crença e o intuito de assim poder institucionalizá-la de maneira aceitável para a chamada comunidade científica. Mas, ao re-significar para a Sociologia conceitos retirados da Biologia, não só apontou a necessidade desse cuidado como o fez de maneira coerente para sua teoria explicativa, concordemos ou não com seus demais postulados. Nem por esta razão deixou de ser acusado de organicista por outros cientistas sociais, também eles com suas razões.
Para Weber (1969, 1983, 1989), outro clássico exemplo, aquele contínuo transitar pode ser compreendido como luta pelo poder, luta responsável pelo movimento da História. Do ponto de vista formal, na concepção weberiana o conceito de poder é categoria sociologicamente amorfa, sempre requerendo uma qualificação. De qualquer modo, este constitui o traço social mais característico da humanidade, sobretudo na atualidade, quando o poder intelectual e especializado promove tantas lutas, dentro e fora das universidades. Nestas, como sabemos, este poder é denominado por Weber de mandarinato, e não por acaso.
Mais recentemente, Bourdieu (1984) e Bourdieu et al. (1988) fizeram extensa pesquisa em universidades francesas, apontando os critérios de distribuição de poderes que conferem prestígio e projeção intelectual e social, não só conforme os campos de saberes, mas no interior de cada um deles. Para os objetivos do texto aqui comentado, é interessante seu conceito de vigilância epistemológica. Não me parece que Bourdieu esteja parafraseando a conhecida prática de saúde pública, mas alertando os sociólogos para um constante estado de alerta quando se trata de tentar elaborar aquelas mediações. Mas re-significar, mesmo com todas as ressalvas contidas em suas notas de rodapés, passam ao largo destas preocupações, conduzindo leitores menos avisados a pensar que não fazem parte do métier das Ciências Sociais.
O fato é que o apelo à interdisciplinaridade vem sendo feito ao longo dos tempos, intensificando-se com o processo de especialização. Daí minha concordância e minha discordância com a autora no que diz respeito à Guerra das Ciências. Se a Ciência é generalizadora e porta consigo um ideal universalista, ela própria não escapa da sua principal conseqüência - as especializações e especialidades, com toda a complexidade que esse processo carrega.
Neste parâmetro, o simples ato de transcrever a expressão "Guerra das Ciências" é mesmo infeliz, não novamente pelos motivos apontados por Sokal & Bricmont, mas por conduzir-nos a pensar a diversidade de conhecimento como prática apenas belicosa, quando poderíamos ver aí algo constitutivo da humanidade - lutas e alianças incluídas - e, mais particularmente, do pensamento científico. Pois, mais do que antes - e como bem aponta a autora -, do ponto de vista histórico, o apelo à interdisciplinaridade pode ser tomado como necessidade de cooperação, até por promover questionamentos mútuos que podem ter um sentido mobilizador. Tanto é ardilosa a utilização da referida expressão, que Aleksandrowicz acaba reproduzindo outras (tais como "entre os cientistas" e "cientistas") para efeito de diferenciação em relação às "Humanidades". Só encontramos as "humanas" afirmadas de maneira autoral como ciências muito adiante no texto, em uma formulação ambígua: a quê/quem a autora se refere? Outras perguntas, à guisa de comentários: por que, afinal, tanta polêmica em torno da cientificidade das ciências sociais e humanas? Será assim tão ameaçador à Ciência o fato de estas serem ou não ciências?
Busquemos, no próprio texto em debate, as indicações que merecem reflexão, tomando o segundo eixo de discussão proposto. À defesa do pragmatismo filosófico necessário ao discurso - e por que não às práticas? - das "Humanidades", podemos acrescentar outra pergunta, ainda, até com versão musicada - "existirmos, a que será que se destina?" (Caetano Velloso, letra e música de "Cajuína") - pergunta que não deixa de "remeter a uma proposta interna corajosa", no dizer da autora, em sua feliz apropriação de Paquot. Este campo de conhecimento, genericamente designado de "humanidades", é também constituído por ciências que lidam com valores engendrados pelos seus respectivos "objetos": as relações sociais, em suas variadas concepções conforme a Ciência Social em questão e o autor em consideração. Resvalam sempre questões valorativas, de caráter ético, moral, filosófico, simbólico e também científico-tecnológico. Propor "soluções [de eficácia... e ... de intervenções significativas no mundo] para os dilemas que esmiuçam" (grifo do autor) não é formulação originada no campo das ciências sociais nem poderia ser enquanto campo de intermediações, muito embora reconheçamos a sua relevância para o dilemático campo de intervenções da Saúde Pública.
Na perspectiva mais geral das Ciências Sociais, soluções deste tipo devem ser negociadas, pactuadas, consensuais e reformuladas processualmente (são históricas por natureza e políticas por pressuposto), dado que esta busca é impregnada de conflitos. E neste plano de generalização, o conflito não se restringe a este ou aquele modo de organização social, como poderíamos pensar, mas como algo que se apresenta, para as Ciências Sociais, como inerente a qualquer organização social. Mesmo que o seja em uma sociedade igualitária, como queremos, traz à tona um outro debate: o do contrato social entre protagonistas antagônicos na maior parte das vezes, debate em torno do qual Sokal & Bricmont pouco ou nada contribuíram na obra comentada. Já a busca metódica e sistemática de "consistência teórica e/ou objetividade operacional", por seu lado, faz parte do próprio aprendizado desse campo. Transversalmente a esse aprendizado e sem nenhuma exclusividade das Ciências Sociais, podemos construir instrumentos de ação política necessários para a realização das utopias que incorporem, pelo menos, os valores da igualdade com liberdade. Em consonância com aquele tipo de ação, estes valores podem constituir de fato ameaça aos poderes descritos.
BOURDIEU, P., 1984. Homo Academicus. Paris: Les Éditions de Minuit.
BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J.-C. & PASSERON, J.-C., 1988. El Oficio de Sociólogo. Presupuestos Epistemológicos. México, D.F.: Siglo XXI.
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