DEBATE DEBATE

 

 

José Ricardo Ayres

Departamento de Medicina, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo


Debate sobre o artigo de Ana Maria C. Aleksandrowicz

Debate on the paper by Ana Maria C. Aleksandrowicz

 

 

Quando se discute o affair Sokal-Bricmont, a tendência é a polarização a favor ou contra a estratégia ou o conteúdo da "denúncia" ali realizada. Em qualquer destas posições, não se vê senão a necessidade de atacar ou defender os modelos de conhecimento das Ciências ditas "duras" e/ou suas pretensões colonizadoras sobre qualquer área da experiência humana. Aleksandrowicz escapa a essa armadilha e, de forma deliciosamente surpreendente, brinda-nos com o improvável: a tese do "engajamento social" dos autores.

Surpreendente, sim, mas a tese é coerente e consistentemente defendida pela autora. Aleksandrowicz realiza sua "propedêutica" no exame da questão em perfeita harmonia com a "terapêutica" que prescreve em suas conclusões, qual seja, buscar o novo, resistir aos apelos da mera repetição. Alinhada à atitude pragmática de pensadores como James e Atlan, a autora defende uma concepção de conhecimento verdadeiro orientada por critérios positivos de eficácia prática, baseado na exploração de diferentes possibilidades, inclusive conflitantes, de expressar de modo socialmente válido uma experiência qualquer.

É essa busca de possíveis pragmaticamente explorados que leva Aleksandrowicz à sua "herética" tese do engajamento. Em termos sintéticos, a autora identifica em Sokal & Bricmont - ainda que eles próprios não o formulem explicitamente - uma autêntica preocupação com o caráter inoperante do conhecimento nas ciências humanas. A autora mostra como a escolha dos textos criticados e das "imposturas" denunciadas têm como fundamento a carência de significado dessa produção teórica para o tipo de problemática que poderia interessar o conhecimento humanista, e engrossa o coro: as Ciências Humanas - as sociais, em particular - estariam paralisadas, buscando legitimar-se, parasitando a autoridade das Ciências "Naturais" e abstendo-se de enfrentar os desafios práticos da mudança social. Falta-lhes a energia do desejo, a audácia da invenção, a coragem da contestação, sustenta.

A leitura que Alecsandrowicz faz de Sokal & Bricmont apresenta, assim, a notável qualidade de retirar o debate do plano das infrutíferas animosidades - ainda que perfeitamente compreensíveis, dada a estratégia crítica, no mínimo deselegante, adotada por esses autores - ou dos anacrônicos e estéreis antagonismos entre ciências naturais e humanidades. Ao retomar a polêmica no patamar da operosidade prática das Ciências Sociais, Aleksandrovicz coloca-se em condição de efetuar uma crítica, a meu ver, muito mais rica de Sokal & Bricmont. A autora desnuda o marcado didatismo destes autores e o correspondente messianismo com que atribuem às Ciências Naturais, e ao tipo de rigor científico lá desenvolvido, um papel redentor sobre todos os problemas tradicionalmente enfrentados pelas supostamente imaturas ciências humanas. Contrapõe-lhes, em troca, o pluralismo e interdiciplinaridade das propostas de Henri Atlan.

Aqui reside, em minha opinião, o ponto alto da sua discussão e, ao mesmo tempo, seu momento de menor coerência. Ponto alto porque permite aproveitar o convite à ação, implícito em Sokal & Bricmont, sem precisar aceitar a contragosto uma terapêutica "naturalizante" para os problemas sociais e seu conhecimento. Contudo, não será contraditório com a inspiração pragmatista da autora sua proposição de um modelo atlaniano como o paradigma de um pensar simultaneamente rigoroso, criativo e adequado às Humanidades?

Não obstante simpatizar muito com o entusiasmo da autora pela obra de Atlan, impossível não contrastar o emblemático "horror" pragmatista aos universais com o tom prescritivo de Aleksandrowicz, ao introduzir a epistemologia atlaniana na discussão. Esse caráter prescritivo é já ensaiado no início do texto, quando a autora afirma não haver, hoje, pensador nas ciências humanas capaz de associar a especificidade do conhecimento na área social a conceitos positivos para a ação. Essa afirmação, além de não fazer justiça a nomes como Jürgen Habermas - só para ficar com um, que me é mais caro - transparece um tipo de exigência epistemológica que parece construir-se à margem do campo a que se refere. Caricaturando, é como se autora afirmasse: "Os cientistas sociais não sabem fazer ciências sociais". Ora, não pressupõe tal posição algum critério externo à própria práxis desses cientistas, um critério a priori e universal, do que seja "verdadeiramente" fazer ciência social?

No mesmo sentido, essa epistemologia "ideal" vai se insinuar no final do texto, quando se associa, ainda que de forma subliminar, a "boa ciência" à solução encontrada por Atlan para uma "boa biologia". Não que o pragmatismo interdite a possibilidade de discursos oriundos de campos diversos fecundarem-se mutuamente; ao contrário. Mas será compatível com o que Rorty (1996) chama de "textualismo forte", que se possa prescrever uma linguagem para um campo de conhecimento que não tenha surgido da própria experiência prática dos sujeitos que vêm construindo esse campo?

Deixo essas questões para a autora não como cobrança de coerência teórica, a qual, como exigência apenas formal, julgo totalmente estéril. A liberdade necessária ao conhecer, tão bem assinalada pela autora, precisa das rupturas heterodoxas. Se ressalto a "incoerência" do texto justamente quando mais o valorizo é porque gostaria de destacar um aspecto da atitude pragmática cuja discussão me parece ter um significado prático da maior relevância: precisamos aceitar junto com o vigoroso anti-fundacionalismo do pragmatismo seu horror pelos universais? Será mesmo preciso abandonar toda e qualquer pretensão de universalidade para preservar o caráter aberto e libertário da razão humana? O exercício de transposição da questão "possível/potencial" para a formulação epidemiológica do risco - infelizmente só esboçado no artigo - não será indício concreto de que há ali algum universal de interesse emancipatório em jogo? De minha parte, penso que a busca de certas universalidades pode ser, nas humanidades tanto quanto nas ciências naturais, um importante móvel utópico, no preciso sentido de um constructo humano; um potente, embora imperfeito, antídoto contra a barbárie; um dispositivo com o qual homens e mulheres vêm buscando construir sua liberdade ao longo da história. Quais universalidades aceitar, e em que circunstâncias, seguirá sempre sendo, porém, decisão a ser tomada, e em consenso, o que as torna ainda mais valiosas.

 

RORTY, R., 1996. Nineteenth-century idealism and twentieth-century textualism. In: Consequences of Pragmatism (Essays: 1972-1980) (R. Rorty, ed.), pp. 139-159, Minneapolis: University of Minnesota Press.

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