NOTA RESEARCH NOTE

 

 

 

 

Célia Landmann Szwarcwald1
Carla Lourenço Tavares de Andrade1
Euclides Ayres de Castilho2


Estimativa do número de órfãos decorrentes da AIDS materna, Brasil, 1987-1999

Estimated number of orphans due to maternal AIDS in Brazil, 1987-99

 

 1 Departamento de Informações em Saúde, Centro de Informação Científica e Tecnológica, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4365, Rio de Janeiro, RJ 21045-900, Brasil. celia@procc.fiocruz.br
2 Coordenação Nacional de DST e AIDS, Secretaria de Políticas de Saúde, Ministério da Saúde. Esplanada dos Ministérios, Bloco G, Edifício Sede, Sobreloja, Brasília, DF 70058-900, Brasil.
  Abstract This study proposes a procedure to estimate the number of orphans due to maternal AIDS. The procedure estimates the number of orphans by calendar year, multiplying the cumulative fertility rate by the number of AIDS deaths among women aged 15-49 years. Because the procedure refers to the number of children that are alive, the estimate is adjusted by contemplating the proportion of pediatric AIDS cases due to vertical transmission and the probability of survival in the 5-9-year age group. To estimate the number of AIDS orphans in Brazil from 1987 to 1999, the procedure was applied by stratifying according to geographical region, taking into account the differences in regional fertility rates, completeness of death reporting, and misclassification of AIDS-related deaths as due to other causes. The total number of cumulative AIDS orphans for 1987-99 was estimated at approximately 30,000.
Key words Acquired Immunodeficiency Syndrome; Maternal Mortality; Orphans; Epidemiology

 

Resumo Neste estudo sugere-se um procedimento para calcular, de modo aproximado, o número de órfãos decorrentes da AIDS materna no Brasil. O procedimento refere-se à estimação do número de órfãos para determinado ano-calendário com base na multiplicação, para cada ano, da taxa de fecundidade acumulada pelo número de óbitos por AIDS entre mulheres de 15 a 49 anos. Tratando-se de avaliar o número de crianças vivas, a estimativa é ajustada, tomando-se em conta a proporção de óbitos por AIDS pediátrica decorrente da transmissão vertical e a probabilidade de sobrevivência da faixa etária mediana de 5-9 anos. Para estimar o número de órfãos no Brasil, durante o período de 1987 a 1999, aplicou-se o procedimento de modo a efetuar a estratificação por grande região, considerando-se as diferenças regionais nas taxas de fecundidade, o sub-registro de óbitos e a classificação dos óbitos de AIDS em outras causas de morte. O número total acumulado de órfãos decorrentes da AIDS materna, entre 1987 e 1999, foi avaliado em cerca de 30 mil crianças.
Palavras-chave Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; Mortalidade Materna; Órfãos; Epidemiologia

 

 

Conceitos, procedimentos e equações

 

Neste estudo, a expressão "órfãos da AIDS" - doravante chamados órfãos - corresponde às crianças menores de 15 anos de idade, filhos de mulheres que, em determinado ano-calendário, faleceram em decorrência da AIDS.

O método básico de cálculo do número de órfãos consiste em multiplicar a taxa de fecundidade acumulada no período de tempo do estudo pelo número de óbitos por AIDS entre mulheres de 15 a 49 anos.

O procedimento proposto refere-se à estimação do número de órfãos para ano-calendário estabelecido. Primeiramente são calculadas as taxas de fecundidade específicas por idade, as quais são acumuladas posteriormente, tomando-se em conta certa proporção dos filhos de mulheres nas faixas etárias qüinqüenais superiores - acima de 30 anos - que têm mais de 14 anos de idade.

Matematicamente, as faixas etárias qüinqüenais são representadas pelo índice i - em que i varia de 1 a 7 -, e as taxas de fecundidade específicas por idade, por fi. Para calcular a taxa de fecundidade acumulada para a faixa etária k (ak), utiliza-se a seguinte fórmula:

(1)  

Porém, para considerar apenas os filhos com idade inferior a 15 anos entre as mulheres com mais de 30 anos, as taxas de fecundidade específicas por idade fi, para as faixas etárias k, k ³ 4, são acumuladas apenas para k e para os dois grupos de idade anteriores a k (k, k-1 e k-2):

(2)

Seja Ok o número de óbitos por AIDS em mulheres na faixa etária k. Então, o número de órfãos em certa faixa etária k é dado pelo número de óbitos por AIDS em mulheres naquela faixa etária (Ok) multiplicado pela taxa de fecundidade acumulada (ak). Portanto, o total de órfãos (W) é dado por:

(3)

Como devem ser consideradas apenas as crianças vivas para a estimação do número de órfãos, o número W é ajustado, contemplando-se tanto a proporção de óbitos por AIDS pediátrica, adquirida por transmissão vertical, como também a probabilidade de sobrevivência da faixa etária mediana de 5-9 anos de idade, estimada por transmissão vertical através da mortalidade em decorrência de todas as outras causas que não a AIDS.

 

 

Cálculo, resultados e comentários: estimativa do número de órfãos, no Brasil, no período 1987-1999

 

Sabendo-se que, no Brasil, as taxas de fecundidade são diferenciadas por grande região, e que estas são maiores justamente nas regiões em que as taxas de incidência de AIDS são menores, o procedimento de estimação foi realizado em separado para cada região, obtendo-se o total do País como soma dos resultados regionais.

As taxas de fecundidade específicas por idade, para o anos de 1985 e 1990, empregadas no presente trabalho, foram aquelas fornecidas pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 1999).

O cálculo das taxas de fecundidade específicas por idade (fi), entre os anos de 1987-89, foi realizado por interpolação geométrica para cada faixa etária qüinqüenal, valendo-se dos dados de 1985 e 1990. Na ausência de dados publicados referentes a estimativas das taxas de fecundidade específicas por idade para anos posteriores a 1990, as taxas de fecundidade fi foram estimadas por projeção geométrica para os anos de 1991 a 1996, supondo-se as mesmas taxas anuais de variação entre 1985 e 1990. A título de exemplo, na Tabela 1 encontram-se as estimativas das taxas de fecundidade fi, para a Região Sudeste, em anos selecionados.

 

 

A seguir, foram estimadas as taxas de fecundidade acumuladas ak, utilizando-se a equação (1) para idades inferiores a 30 anos, e a equação (2) para os grupos de mulheres com mais de 30 anos. Como exemplo numérico de cálculo, os resultados para a Região Sudeste estão dispostos na Tabela 2 para os anos de 1987, 1990, 1993 e 1996.

 

 

Para a estimação do número de óbitos por AIDS entre mulheres de 15-49 anos no período de 1987-96, recorreu-se ao Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM/MS) do Ministério da Saúde (1998) como fonte de informação. Para cada ano, entre 1987-95, foram considerados todos os óbitos do sexo feminino com idade entre 15 e 49 anos e causa básica de morte CID-279, classificados segundo a IX Classificação Internacional de Doenças (CID 9); para 1996, por sua vez, foram tomados em conta aqueles classificados nas rubricas B20-B24, conforme a X Classificação Internacional de Doenças (CID 10). Os dados foram categorizados por grande região e faixa etária qüinqüenal.

Esses dados de óbitos tiveram que ser ajustados por dois fatores de correção. O primeiro é referente ao sub-registro de óbitos, e o segundo diz respeito ao número de óbitos de AIDS classificados em outras causas básicas de morte.

No que tange ao sub-registro de óbitos, foram usados fatores de correção distintos por grande região com base nas estimativas de coberturas de óbitos no ano de 1997, informadas pelo Departamento de Informática do SUS (DATASUS, 2000), seguindo metodologia proposta pela IBGE. Ponderando-se que, no Brasil, a AIDS ocorre predominantemente nas áreas urbanas - onde o sub-registro de óbitos é reconhecidamente menor -, os fatores de correção foram ajustados, supondo-se coberturas 50% maiores nas áreas urbanas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e coberturas quase completas nas regiões Sudeste e Sul, conforme exposto na Tabela 3.

 

 

Em relação à classificação de óbitos por AIDS em outras causas de morte, foi utilizado um fator de correção único para todas as regiões, partindo-se do pressuposto de erro de classificação uniforme no Brasil, já que os codificadores da causa básica de óbito de todo o País recebem, em geral, o mesmo treinamento. O fator de correção empregado foi igual a 1,16, estimado a partir de estudo no Rio de Janeiro no período 1991-95 (Sole-Plá, 2000).

Para avaliar o número de óbitos por AIDS entre mulheres de 15 a 49 anos por faixa etária qüinqüenal por grande região, o número de óbitos coletado diretamente do SIM/MS foi multiplicado pelo fator de correção correspondente ao sub-registro de óbitos (apresentado na Tabela 3) e, a seguir, por 1,16, referente ao erro de classificação dos óbitos de AIDS em outras causas de morte.

O número de órfãos foi calculado para cada região, utilizando-se a equação (3), conforme exemplificado para a Região Sudeste, ano de 1996 (Tabela 4).

 

 

Para as estimativas finais do número de órfãos, foi necessário estimar as probabilidades de sobrevivência da faixa etária mediana de 5-9 anos de idade por ano e grande região, no período de 1987-96. Contando-se com as estimativas da mortalidade infantil por grande região, para o ano de 1987 (Szwarcwald & Castilho, 1995) e para o ano de 1996 (IBGE, 2000), as probabilidades de sobrevivência (PSOBREV) correspondentes à faixa etária mediana de 5-9 anos de idade foram avaliadas para estes anos (1987 e 1996) a partir de tábuas-de-vida do modelo "Chileno" (United Nations, 1982), com níveis estabelecidos por meio das estimativas da mortalidade infantil. Para os outros anos (1988-95), as probabilidades de sobrevivência foram interpoladas geometricamente.

Como última etapa, contemplou-se a proporção de óbitos por AIDS pediátrica. Para o seu cálculo, admitiu-se que a proporção de casos pediátricos de AIDS adquirida por transmissão vertical é de 30% - valor habitualmente usado pelo UNAIDS (The Joint United Nations Programme on HIV/AIDS). Considerou-se ainda que cerca de 90% dos casos pediátricos de AIDS (transmissão vertical) morrem antes de completar 15 anos de idade (Marinela De-La-Negra, comunicação pessoal), estimando-se, assim, o fator de correção devido à sobrevivência dos órfãos (FSOBREV) como sendo igual a:

FSOBREV = 0,70 (PSOBREV) + 0,30 (1 - 0,90)

À guisa de exemplo, a Tabela 5 dispõe dados referentes à Região Sudeste. As estimativas finais do número de órfãos para todas as regiões por ano, entre 1987 e 1996, estão contidas na Tabela 6.

 

 

 

 

Os números totais acumulados de órfãos decorrentes da AIDS materna para o Brasil, por período de tempo entre 1987 e 1999, estão apresentados na Tabela 7. Para os anos de 1997-1999, os números resultantes representam projeções das estimativas dos três anos anteriores por modelos matemáticos (log-log).

 

 

Os números estimados de órfãos por ano-calendário podem ser depreendidos do conteúdo da Tabela 6. Por exemplo, estima-se que, no ano de 1999, cerca de 5.500 menores de 15 anos de idade ficaram órfãos em decorrência da morte materna por AIDS. O valor de 29.928 (Tabela 7) corresponde ao número acumulado de menores de 15 anos de idade que foram levados à orfandade em conseqüência da AIDS materna no decorrer dos anos de 1987 a 1999.

Para finalizar, é importante frisar que, na ausência de várias informações requeridas para a estimação do referido número de órfãos, diversas suposições tiveram que ser assumidas como verdadeiras. Sendo assim, apesar dos cuidados metodológicos tomados na execução deste trabalho, as estimativas finais devem ser examinadas à luz das limitações dos dados e dos pressupostos empregados no procedimento de estimação.

 

 

Referências

 

DATASUS (Departamento de Informática do SUS), 2000. IDB 98. Janeiro de 2000. <http://www.datasus. gov.br>         

IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 1999. Anuário Estatístico do Brasil -1998. Rio de Janeiro: IBGE.         

IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 2000. Indicadores Sociais Mínimos. Aspectos Demográficos. Janeiro de 2000. <http:// www.ibge.gov.br/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/tabela1.shtm>         

MS (Ministério da Saúde), 1998. Sistema de Informação sobre Mortalidade, 1979-97, SUS. CD-ROM. São Paulo: MS.         

SOLE-PLÁ, M. A., 2000. Óbitos de aids no Estado do Rio de Janeiro, 1991-1995. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.         

SZWARCWALD, C. L. & CASTILHO, E. A., 1995. Estimativas da mortalidade infantil no Brasil, década de oitenta: Proposta de procedimento metodológico. Revista de Saúde Pública, 29:451-462.         

UNITED NATIONS, 1982. Model Life Tables for Developing Countries. Population Studies No. 77, New York: United Nations.         

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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