RESENHAS REVIEWS
SAÚDE, TRABALHO E MODOS SEXUADOS DE VIVER. Jussara Brito. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. 200 pp.
ISBN: 85-85676-63-9
Este livro apresenta os resultados de uma pesquisa com trabalhadoras e trabalhadores das indústrias de processos químicos no Rio de Janeiro. Enfatizando que as pesquisas sobre o trabalho refletem questões de fundo relacionadas com uma ciência a serviço de interesses dominantes, e que a precariedade das condições de trabalho de muitos trabalhadores têm gerado "estratégias defensivas" por parte deles, que dificultam o reconhecimento (e a resolução) dos problemas coletivos vividos. A preocupação central da autora foi não apenas dar visibilidade aos problemas enfrentados, mas ao mesmo tempo mostrar as dificuldades em percebê-los. Nesta tarefa, defende uma aproximação entre pesquisadores/as e trabalhadores/as na geração de um novo conhecimento menos fragmentado e que recompõe o sentido da experiência operária coletiva, necessário para a pesquisa que visa uma utilidade social.
Aqui, a "invisibilidade" dos riscos, operada como categoria central, permite relacionar conceitos advindos de vários campos de conhecimento, em uma demonstração elegante do valor de um enfoque interdisciplinar. Este exercício, inscrito em uma visão dialética da realidade social, não somente articula mas amplia o sentido de vários conceitos, mostrando a necessária (isto é, inevitável) inter-relação entre dimensões "subjetivas" e "objetivas" - tanto para os grupos estudados como na produção científica.
Nesta re-elaboração conceitual, a autora introduz novos e diversificados enfoques nos estudos da relação trabalho/saúde, em particular franceses, canadenses, e italianos, que superam o entendimento binário das abordagens clássicas mas reafirmam a importância do trabalho na conformação tanto da saúde como da vida social como um todo. Noções de saúde, precarização do trabalho, trabalho real, risco, experiência, saúde integral, são revistas e situadas na construção do seu argumento.
No que diz respeito à questão das especificidades de gênero, apresenta trabalhos nacionais e internacionais que mostraram como a "homogenização" da classe trabalhadora foi tanto conceitual como concretamente operativa, balizou a exclusão das trabalhadoras dos espaços organizativos operários, e reforçou a noção dominante da identidade feminina situada na esfera da reprodução, na família. A autora rejeita, no entanto, uma postura de exclusiva preocupação com o gênero feminino, e defende uma análise conjugada de homens e mulheres, perguntando: "Até que ponto as condições de trabalho das mulheres interferem nas dos homens? Até que ponto a inexistência da voz feminina nos movimentos de trabalhadores não significa perda irreparável para a compreensão dos problemas que atingem também os homens?" (p.18).
Sua apresentação da problematização da divisão sexual do trabalho pelos estudos feministas nos últimos 20 anos, mostra como a noção de trabalho foi ampliada para incluir o trabalho doméstico, ao mesmo tempo em que a histórica participação de mulheres no trabalho remunerado foi recuperada, e a importância das articulações entre a esfera do trabalho/ da produção e a esfera da família/da reprodução constatada. Nesta discussão, enfatisa os trabalhos seminais do Groupe d"Études sur la Division Sociale et Sexuelle du Travail, ao qual se filia, e que elabora a tese da coextensividade das relações de classe e de gênero, que fundamenta o "paradigma de transversalidade" das relações sociais. Desta ótica conceitual, não se pode entender nem classe social nem gênero sem a consideração de ambas as dimensões.
A partir daí, aponta que o trabalho das mulheres pode ser focalizado em seu "caráter particularmente contraditório", como espaço de exploração e prazer, de reprodução das relações de gênero e de desconstrução das mesmas. No entanto, alerta para o fato de que as tendências atuais de reorganização da ordem produtiva internacional, que instauram uma "vultosa precarização do trabalho" e extenso desemprego, têm reforçado certas diferenças de gênero, e não conduzem a pressupostos celebratórios - nem para homens nem para mulheres da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, afirma e demonstra como a incorporação da questão de gênero como dimensão das relações de produção - e a noção de "modos sexuados de viver" - é essencial em avançar no campo de estudos de trabalho e saúde.
O estudo empírico inclui análise de dados secundários; observações do processo de trabalho masculino e feminino em várias indústrias, realizadas a partir da ótica da ergonomia situada; e entrevistas com trabalhadores e trabalhadoras. Operacionalização do pressuposto principal inicial, de que os riscos das trabalhadoras são invisíveis, coloca a delicada tarefa de reconstituir experiências em princípio "sujeitas a barreiras ideológicas, defensivas, simbólicas, e relativas à própria linguagem" com "a intenção de transpor o terreno da percepção e da representação" (p.57). Este entendimento do método contrasta fortemente com a idéia de entrevistas como simples coleta de dados, reconhecendo que o guia de entrevista é o melhor tratado como "instrumento de reflexão", situado em um processo dinâmico de construção de entendimentos intersubjetivos.
A partir do terceiro capítulo, estão apresentados com uma fascinante análise da produção da invisibilidade nas vidas das operárias: de como a construção das identidades de gênero no espaço da família integra o espaço do trabalho, favorecendo e ocultando uma superexploração das mulheres, ao mesmo tempo em que reforça uma tendência à autodesvalorização e à reprodução de relações de antagonismo (entre trabalhadoras, e entre trabalhadores e trabalhadoras) desfavoráveis aos movimentos coletivos de transformação. O positivo, os prazeres representados, são também referidos à esfera da reprodução, mas freqüentemente no sentido do escape temporário das preocupações resultantes da violência e má qualidade de vida que contextualiza a vida familiar nas favelas.
Em seguida, uma análise dos riscos de trabalho é balizada pelos conceitos de "trabalho pseudodesignado" e "prescrição naturalizada do trabalho", que iluminam o enredo dos "dispositivos materiais e imateriais de coerção", de mecanismos disciplinares e estratégias de defesa, onde trabalho e família, produção e reprodução, biológico e social, subjetivo e objetivo, indivíduo e coletivo, se constituem mutuamente na dinâmica da exploração e do adoecimento, da resistência possível, e da solidariedade.
Neste trabalho, exemplar de um exercício acadêmico a serviço da transformação, haverá aspectos específicos que iluminam os interesses diversos dos leitores/as. Na área dos estudos de gênero, sair da invisibilidade foi um passo necessário em um processo que começou com uma preocupação com todas as mulheres, e uma ligação estreita com as lutas das menos favorecidas. Na medida em que a "conquista" do espaço acadêmico favorece um distanciamento destas lutas, e promove uma fascinação com a abstração, o valor deste trabalho é redobrado. Esta conjunção dos saberes oferece, concretamente, novos ângulos e instrumentos na luta pela saúde no trabalho - de homens e de mulheres. Não apenas porque sua sofisticação conceitual é expressada com clareza e seu estilo didático, mas porque o desvendamento da trama complexa dos "modos sexuados de viver" demonstra como a construção das diferenças de gênero é parte essencial da reprodução da exploração de homens e mulheres, das desigualdades de classe social.
Karen Giffin
Departamento de Ciências Sociais,
Escola Nacional de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz
A CRISE DA SAÚDE PÚBLICA E A UTOPIA DA SAÚDE COLETIVA. Jairnilson Silva Paim & Naomar Almeida Filho. Salvador: Casa da Qualidade Editora, 2000. 125 pp.
ISBN: 85-85661-52-0
Este livro conciso e em linguagem clara expõe em 6 capítulos independentes reflexões sobre questões políticas, teóricas, metodológicas e epistemológicas diante das quais se coloca a saúde pública a partir dos anos 80. O ponto central é o esgotamento dos marcos de referência que dominaram o pensamento do campo durante mais de meio século.
Certamente, como os próprios autores reconhecem, esta não é uma crise apenas da saúde pública, mas revela vários impasses a que chegou a sociedade contemporânea. Os textos procedem a uma revisão das práticas, movimentos e propostas de ação que marcaram a saúde pública; ao mesmo tempo, procuram delimitar as novas pautas teóricas, epistemológicas, teóricas e políticas que caracterizam a saúde coletiva como proposta alternativa: "um campo científico e âmbito de práticas muito mais aberto à incorporação de propostas inovadoras, do que qualquer outro movimento equivalente na esfera da saúde pública mundial."
O capítulo inicial é dedicado à busca de definição mais precisa do conceito de paradigma, discutindo-se os usos e abusos que a utilização do termo com diferentes significados tem levado. Inclusive, não é demais lembrar, por parte do próprio Kuhn, a partir de quem passou a ser amplamente empregado, ultrapassando as fronteiras do campo da filosofia e da história da ciência.
De qualquer forma, os autores identificam uma crise paradigmática no campo não só da saúde, mas da ciência - ou das ciências - de um modo geral. Mostram que, como parte da sociedade, a saúde pública não poderia estar imune nem à crise de paradigmas nem à transição paradigmática. A utopia aspirada é que a superação dessa crise signifique " uma oportunidade para efetivamente se incorporar o complexo "promoção - saúde - doença - cuidado" em uma nova perspectiva paradigmática, mediante por exemplo, políticas públicas saudáveis e a "participação mais efetiva da sociedade nas questões de vida, saúde, sofrimento e morte." Enquanto a saúde pública institucionalizada enfrentaria sua crise "escolhendo entre mais mercado, mais Estado ou mais comunidade", a saúde coletiva é vista como um campo aberto a novos paradigmas em uma luta contra-hegemônica - e a favor da emancipação.
Como parte do motor da transformação paradigmática, eles identificam a contínua produção de novos objetos pela ciência, o que acaba levando à superação de suas fronteiras disciplinares e à instauração de formas alternativas de disciplinaridade.
Do ponto de vista da formação de profissionais de saúde, seria preciso que se instituísse novas formas e conteúdos de ensino-aprendizagem. A idéia é que a prática se sustente em um tripé contemplando análises de situações concretas, produção científica e reflexão teórico-epistemológica, dentro de um envolvimento político com projetos de reforma em saúde e reatualização do ensino. Um dos instrumentos necessários para se alcançar esse objetivo seria a constituição de redes de instituições de formação que, através da cooperação técnica, dinamizaria o processo de desenvolvimento curricular contemplando capacidades de articulação política, de investigação e produção de tecnologias, de gestão moderna de escolas e de cooperação técnica. A formação em saúde coletiva requereria, assim, a ampliação dos campos de práticas e uma "incursão ampliada na esfera do político", o que, por sua vez, suporia "mudanças nas relações de poder das instituições de ensino e de serviços de saúde, mas sobretudo no Estado e na sociedade".
A noção de complexidade - e com ela a concepção de uma lógica múltipla regendo os fenômenos abordados - ocupa um lugar central na produção de conhecimentos que abarca esta proposta, pois, nas palavras dos autores, não se estaria mais diante de "um objeto obediente às determinações da predição, aquela das antecipações limitadas e limitantes, rigorosas e precisas. Efetivamente, o objeto saúde é muito mais tolerante a formas aproximadas de antecipação de seu processo, ressaltando a natureza não-linear de sua determinação e a imprecisão de seus limites".
Vislumbra-se a superação do preventivismo preditivo da saúde pública, tanto no sentido de sua aplicação em geral ou ao indivíduo, na direção de uma saúde coletiva previsional, ou "pré-visionária", que deveria ser capaz "de propor visões, formas, figuras e cenários, em vez de predizer algumas poucas medidas e seus pobres efeitos".
Esta proposta de rearticulação teórica e prática significa um deslocamento epistêmico segundo o qual a saúde coletiva é pensada como um campo operando a partir de múltiplas possibilidades discursivas e metodológicas. Isso é importante, pois se é certo que a saúde coletiva constituiu-se como um movimento de crítica à saúde pública, não se pode ignorar que em seu primeiro momento - e até mesmo como condição para seu potencial de resistência - seus princípios se definiram com base em um modelo onde o pressuposto da determinação econômica e estrutural dos processos sociais e de saúde-doença conformava o quadro a partir do qual a realidade era conhecida.
Por outro lado, se hoje os limites das tentativas de predição e do rigor das determinações são reconhecidos, a busca das "causas" ou "determinações" dos mais distintos fenômenos sociais e naturais foi sempre uma espécie de atitude movendo cientistas e sujeitos políticos. Motor da produção de conhecimento e da transformação das relações sociais, na saúde pública essa busca possibilitou sua própria renovação em direção à "utopia da saúde coletiva".
Uma nova condição discursiva vem redefinindo o campo de produção de conhecimentos e das práticas da saúde coletiva. A emergência de novos sujeitos sociais e novas categorias de análise contribuiram para redesenhar fronteiras disciplinares e derrubar hierarquias causais. A produção de abordagens interdisciplinares e complexas sobre os processos saúde/doença/cuidado pode ser vista, portanto, como parte das propostas surgidas das transformações sociais e discursivas contemporâneas.
Nessa forma de produção, o conhecimento reconhece seus limites e, tendo perdido a pretensão de produzir certezas, apresenta-se com múltiplas possibilidades descritivas. A questão é construir teorias, métodos e instrumentos de intervenção que, de acordo com uma nova imagem do objeto da ciência, permitam apreender a multiplicidade, os paradoxos e a pluralidade de relações que produzem as formas e conteúdos dos processos de promoção de saúde, doença e cuidado.
Estas questões, que marcam o debate contemporâneo sobre a ciência e sua relação com a ética e a política, estão presentes nos temas abordados, que evidenciam a transição pela qual vem passando a saúde coletiva e as perspectivas que se colocam hoje. Em um momento de aumento das desigualdades sociais e iniqüidades em saúde, é uma constribuição que não apenas explicita a possibilidade de uma saúde coletiva renovada teórica e epistemologicamente, mas que tira de sua tradição crítica a força para construir uma utopia de novo tipo para o século XXI.
Jeni Vaitsman
Departamento de Ciências Sociais,
Escola Nacional de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz.
AMAMENTAÇÃO: UM HÍBRIDO NATUREZA-CULTURA. João Aprígio Guerra de Almeida. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 1999. 120 pp.
ISBN: 85-85239-17-4
A literatura tem dado conta de um amplo espectro de condições e fatores relacionados à institucionalização do desmame precoce no país, no decorrer do presente século. Em nome da ciência, acobertado pela ordem médica, o marketing do leite em pó, constitutivo do complexo social da disseminação da cultura do aleitamento artificial, é apontado como referência no desencadeamento do processo de reversão da prática do aleitamento materno, concebido como sendo, desde sempre, regido pelas leis da natureza.
Levando em conta as desvantagens dessa reversão, num movimento de reação, é preconizada, nos anos 80, a necessidade de recuperação do aleitamento natural, dimensionado enquanto prática social. Tendo por pressuposto que o aleitamento transcenderia, agora, à esfera da tradição familiar, a par das campanhas promocionais, tal movimento, dentre tantas outras medidas, envolveria descupabilizar as mães pelo insucesso da amamentação, sendo preconizada a urgência de sua (re)educação, a ser assumida pelos profissionais de saúde e grupos de apoio, com base num saber especializado, científicamente consubstanciado.
Corretas, em princípio, estas proposições, sugestivamente cunhadas pela contraposição entre aleitamento natural x artificial, encerravam ambigüidades, na medida em que reiteravam a concepção de uma ordem biológica naturalizada, que fundamentava, por sua vez, processos abstratos de mudança, num plano pretensamente histórico. É neste campo de impasse que se situa a contribuição do presente livro.
Adotando o realismo histórico, na linha de Latour, o autor trata do aleitamento materno como um híbrido natureza-cultura, construindo abertura para a superação das referidas reduções, dando conta das razões do desmame, e da possibilidade de lidar com a ambivalência entre o querer e poder amamentar.
Incursionando na trajetória da história dos saberes sobre aleitamento entre nós, o autor remonta ao período colonial, situando a contraposição entre a prática do aleitamento materno vigente entre os índios e sua condenação explícita por parte dos colonizadores. Em consonância com o pensamento europeu da época, os portugueses concebiam a prática do aleitamento materno como instintiva e, por isso mesmo, imprópria para o homem civilizado. Na ausência de substitutivos do leite materno, se institucionaliza, como padrão, o recurso às amas de leite.
Disposições contrárias a estas concepções emergem em meados do século XIX, preconizadas pelos higienistas. De acordo com o autor, neste processo, a partir da reconstrução do ciclo gravídico puerperal, em nome de posturas modernizantes relativas aos papéis femininos, é resgatada a valorização da maternidade e da amamentação referida à sobrevivência dos filhos. Recuperando a concepção dos hábitos naturais e instintivos, comuns aos mamíferos, este movimento reforça a imagem da mãe-mulher, sendo condenado o recurso às amas de leite. Em meio ao reducionismo biológico que se instala, a mãe passa a ser culpabilizada pelo insucesso da amamentação. Nestas circunstâncias, de acordo com o autor, ocorre verdadeira epidemia de insucessos, justificados pelas mães como decorrência do leite fraco, constatando-se a impossibilidade de ver descartado o recurso às amas de leite.
Neste contexto, a reorganização do país que se instala com a República, marcada pelo desenvolvimento urbano-industrial, viria assistir à reinalguração da apologia do desmame precoce, na medida em que se instala a produção de leite em pó, já na primeira metade do século XX. Na esteira das transformações dos papéis femininos em curso, a disponibilizacão de um produto alternativo ao leite materno vislumbraria subtrair, de acordo com o autor, a inconveniente presença das amas de leite no cenário da amamentação, paralelamente à ampla disseminação do desmame precoce, na altura dos anos 70.
Nesta recuperação dos fluxos e refluxos de concepções e justificativas sobre as práticas de amamentação em nosso meio, o texto sinaliza para a mobilização social em torno da recuperação do aleitamento materno a partir dos anos 80, associada à relação que se estabelece entre o desmame precoce e os elevados níveis de mortalidade infantil. A pediatria, segundo o autor, redescobre as vantagens do aleitamento natural - como se a disponibilização destas mensagens acarretassem, automaticamente, a mudança de comportamento - ficando a utilização dos leites modificados reduzidas, no modelo de excepcionalidade, aos casos de prematuridade, intolerâncias e alergias alimentares etc.
O reducionismo biológico sobre o qual se estrutura o esforço promocional desencadeado, estabelece, mais uma vez, limites aos avanços que se observam, no sentido da recuperação do aleitamento materno, ao mesmo tempo que resguarda, em nome de uma "vanguarda científica", a alternativa estratégica de reserva de mercado para os leites modificados.
O Programa de Iniciativa Hospital Amigo da Criança, a partir de 1992, traria um novo fôlego, no dizer do autor, à consideração do desmame, resistentemente prevalente a despeito dos avanços alcançados na promoção do aleitamento materno, incorporando significados de proteção e apoio às mães, para além das formulações restritas à divulgação de suas vantagens. O redimensionamento do plano biológico de consideração da amamentação fundamentaria a oportunidade de dimensionamento de um novo paradigma, capaz de compatibilizar determinantes biológicos com condicionantes sociais.
Incursionando na consideração da construção da amamentação como um híbrido natureza-cultura, mais do que estabelecer relações entre aspectos biológicos e sociais, o autor se dispõe a buscar a dinâmica que se estabelece entre estas instâncias. Propondo modelos explicativos, ele se volta para a questão da síndrome do leite fraco, perpetuada secularmente, a despeito do consenso, cientificamente fundamentado, de que toda a mãe é capaz de amamentar.
Explicitando este percurso, o autor elege a qualidade como categoria que articula questões a serem reelaboradas a propósito das indagações e condutas associadas à prática do aleitamento. Assinalando que o leite materno é mais que uma fonte de nutrientes adaptada à capacidade metabólica do lactente, o autor evidencia, como contraponto, a importância da consideração da mama, que imprime ao leite marcas metabólicas com base em matrizes maternas originadas nas condições sociais da vida da mulher. Funcionando como um processo de transferência de memória sociobiológica, estas mulheres criam respostas imunológicas, mobilizadas sob o ângulo de razões de oportunidades articuladas, portanto, ao meio ambiente.
Nesta seqüência, o autor focaliza a composição do leite materno para entender a forma como se estrutura. Identificando fases constitutivas da amamentação, o autor registra que a criança não recebe um único leite no decorrer da mamada. O leite materno, diante deste olhar, é um produto dinâmico, mutável e ajustado a cada momento, em função de um complexo de interações, que remete à composição de sua constituição, às necessidades das crianças e das condições maternas.
Enveredando na questão da quantidade/qualidade do leite materno, o autor refere que a apojadura não implica necessariamente na imediata saída do leite. Situando as fases (endócrina e autócrina) que compõem a fisiologia da lactação, o autor explica "porque o leite não sai", levando em conta interações relacionadas com mecanismos regulatórios da célula alveolar, na vigência do controle autócrino, particularmente no tocante à capacidade de síntese do leite.
Levando em conta que o nível de prolactina, por si só, não é suficiente para desencadear este processo de síntese do leite, o autor esclarece que certas mulheres apresentam verdadeira incapacidade para liberar o leite. Sem desprezar o componente psicológico do reflexo de ejeção, o autor situa a explicação do problema basicamente no âmbito da fisiologia da lactação, associada a uma produção maior do que a demanda da criança, paradoxalmente considerada, no plano cultural, como insuficiência de leite.
Reiterando que o peito e o bebê constituem o duplo referencial da "rede desenhada pelo leite humano", o autor evidencia a importância de serem observados os avanços no conhecimento da fisiologia da célula alveolar, para efeito de desconstrução da concepção de que " lactar é um ato fisiológico, basta por o bebê no peito que o leite aparece".
À luz de um novo paradigma reconfigura-se a consideração da questão da saciedade da criança, em resposta às indagações, sempre presentes, por parte das mães que se dispõem a amamentar seus filhos. A construção de um modelo explicativo para tanto, segundo o autor, passa necessariamente pela compreensão das relações que se estabelecem entre as peculiaridades fisiológicas de seu metabolismo e as particularidades do leite humano. Por vezes, a grande produção de leite impede que a criança alcance sugar todo o leite ofertado. A fome pode resultar, em casos como estes, do fato do bebê não acessar a terceira fase da lactação - a da emulsão - que disponibiliza matéria graxa que confere a sensação de satisfação; a criança nestas situações fica irritada e perde peso.
Sem pretender esgotar todos os pontos explorados pelo autor no tratamento dado à categoria adotada, a preocupação com o sabor do leite, que anteriormente era tratada como curiosidade, ganha novo espaço sob a perspectiva de consideração do aleitamento como um híbrido. O leite humano, ao contrário da monotonia das fórmulas lácteas, vária de composição e gosto, ao longo da lactação, na dependência da dieta materna, preparando a criança para participar dos hábitos de alimentação familiar. Assim procedendo, o autor, em sua disposição de romper com o clássico paradigma que, na verdade, lastrea a anti-cultura do aleitamento materno, evidencia a importância de buscar transcender às fronteiras da consideração biológica estrita, em direção ao social, na perspectiva da ecologia do desenvolvimento humano.
Em torno da dinâmica que se estabelece entre a fisiologia da lactação e do crescimento e desenvolvimento do lactente, socialmente referenciada, o autor, num novo patamar de argumentação, se detém nas razões do abandono do aleitamento materno, enfrentando a resistente alusão ao " leite fraco". Descortinando uma ordem de conhecimento capaz de "lidar com a ambivalência entre o querer e poder amamentar", o autor avança na área acobertada pelo reducionismo biológico, viabilizando, dessa forma, instrumentalizar o apoio requerido pela mães, informadas das vantagens do aleitamento materno. Não é sem razão que os Bancos de Leite Humano (BLH) se constituem no espaço privilegiado de emergência destas considerações.
Na linha da cruzada contra as amas de leite, os BLH se apresentam como moderna alternativa, constituindo-se as primeiras instituições, segundo o autor, em estruturas de apoio às situações de complicação do desmame, sob a égide da comerciogênise do leite em pó. Sua existência passaria a ser questionada, posteriormente, diante dos riscos de saúde que ofereciam aos receptores de seus produtos e de condutas comprometedoras em relação ao estímulo à amamentação.
Em meio à mobilização em torno da recuperação do aleitamento materno que se segue, o PNIAM reverte o destino dos BLH que passam a atender emergências para os casos de impossibilidade das mães amamentarem (situações de prematuridade, baixo peso, etc.). O BLH do Instituto Fernando Figueira da FIOCRUZ, a mais antiga das instituições congêneres, passa a se responsabilizar por esta reestruturação operacional, que culmina com o desenvolvimento do atual paradigma. A par da normatização de procedimentos e fundamentação de nova legislação, do desenvolvimento de pesquisas operacionais, qualificação profissional e apoio aos demais BLH, a mãe passa a ser o alvo das atenções, no contexto de uma política de estímulo ao aleitamento materno, rompendo com a imagem consagrada de equivalência destas instituições às amas de leite do século XX.
Neste processo de reestruturação se expande a rede de BLH. Diante, porém, do atual arrefecimento do processo de coordenação instituído pelo PNIAM, o autor defende a proposta de realização de um projeto de controle da política estatal no âmbito dos BLH no país, norteado pela perspectiva de ver resguardado, ao lado das atividades assistenciais, o desenvolvimento de competências para gerar e implementar novas formas de pensar as questões relativas à amamentação, fundamentada, cientificamente, pelos diferentes campos de saber - como convém à consideração da amamentação como um híbrido natureza-cultura.
Paulete Goldenberg
Escola Paulista de Medicina,
Universidade Federal de São Paulo.
MAL DE FOME E NÃO DE RAÇA: GÊNESE, CONSTITUIÇÃO E AÇÃO POLÍTICA DA EDUCAÇÃO ALIMENTAR - BRASIL - 1934-1946. Eronildes da Silva Lima. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000, 288 pp.
ISBN: 85-85676-79-5
O presente livro é baseado na tese de doutoramento da autora e teve por objetivo compreender a gênese, a constituição e a ação política da educação alimentar através dos escritos dos seus fundadores, ou seja, daqueles que lançaram a pedra fundamental da nutrição no Brasil, quer por meio da formação e consolidação dos primeiros cursos de formação de profissionais, quer por meio de ações voltadas para a difusão dos princípios da "alimentação racional" para a população, ou ainda, instrumentalizando o Estado na elaboração e implementação de políticas públicas de alimentação e nutrição.
Segundo a autora, a maioria dos estudos que discutem as políticas de alimentação, o papel do profissional, ou a avaliação nutricional da população brasileira peca ao trazer como referência inicial para a difusão da educação alimentar (alimentação racional) os anos pós-Segunda Guerra, não remetendo aos primórdios da fundação da Ciência da Nutrição e ao pensamento dos seus fundadores na gênese e constituição da educação alimentar e do papel profissional, sendo esta a principal justificativa para a realização do trabalho.
O livro apresenta-se dividido em três capítulos. No capítulo 1, encontra-se a apresentação teórico-metodológica seguida no estudo. No capítulo 2, tem-se a exposição acerca do surgimento dos primeiros escritos sobre nutrição no Brasil, enfatizando-se os anos de 1934 a 1939, quando foi formulada a tese "mal de fome e não de raça". O capítulo 3, que engloba os anos de 1940 a 1946, refere-se ao período em que, além de definirem-se os marcos conceituais e disciplinares da nutrição como ciência e a sua institucionalização acadêmica mediante a criação do Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, tem-se o reconhecimento como fundadores e a afirmação de identidade do grupo de autores destacados no período anterior. O estudo foi empreendido tomando-se como base 14 livros, um folheto e uma cartilha, escritos no período de 1934 a 1946 por dez autores, incluindo-se Thalino Barbosa, José Messias do Carmo, Josué de Castro, Dante Costa, Ruy Coutinho, Sálvio Mendonça, Alexandre Moscoso, Peregrino Júnior, Rubens Siqueira, e Cleto Veloso, sendo o mais conhecido, dentro e fora da área da nutrição, Josué de Castro, que escreveu diversos livros que foram traduzidos e publicados em diferentes países.
No capítulo 1, a autora justifica o recurso a autores do campo da História em geral (principalmente Le Goff e Adam Schaff) e da História das Ciências como base para a periodização apresentada no seu estudo e a compreensão não só do afloramento da nutrição como ciência, como também dos paradigmas que lhe deram sustentação e aglutinaram os cientistas pioneiros.
No capítulo 2, Eronildes discute o desenvolvimento da fisiologia e sua influência tanto na investigação e na prática médicas, quanto na estruturação da Ciência da Nutrição no Brasil, assim como aborda a emergência do método geográfico e a conexão entre o biológico e o social nos estudos desenvolvidos na época. Na verdade, essa junção entre o biológico e o social, entre o fisiológico e o geográfico, é que vai permitir a unificação do pensamento dos pioneiros da nutrição e da educação alimentar, tendo como base a explicitação da fome/subalimentação como a expressão da privação, e não uma questão de raça, possibilitando uma contraposição à eugenia nos moldes apresentados por Goubineau.
É no capítulo 3 do livro que Eronildes aprofunda mais a exposição do pensamento dos autores estudados quanto ao desenvolvimento de modelos explicativos para compreensão da fome, da subalimentação, do subdesenvolvimento que atingia a população brasileira. A autora ainda percorre, neste capítulo, o pensamento dos autores sobre as diversas áreas da nutrição e as necessidades de conhecimento na formação e no desempenho profissional dos nutricionistas e dos nutrólogos. Eles destacavam, em seus livros, conteúdos vinculados à fisiologia, higiene alimentar, dietética e dietoterapia, e a educação alimentar aparece com destaque em vários autores, quer como campo próprio de atuação, quer como ação associada a outros tipos de intervenção sobre os possíveis agravos nutricionais.
O livro é proveitoso para aqueles que transitam no campo da nutrição mais diretamente, e não só no âmbito da educação alimentar/nutricional, bem como para aqueles que se interessam pela história dos vários modelos explicativos sobre os processos de saúde-doença que têm acometido a população brasileira e que possibilitam a compreensão das políticas e das práticas de saúde atuais.
A síntese da literatura feita pela autora possibilita o estímulo para a leitura das publicações originais e a reflexão sobre o estado atual da formação e atuação dos profissionais ligados à nutrição, particularmente no seu fazer pedagógico dentro e fora do espaço acadêmico.
Cristina Pinheiro Mendonça
& Luiz Antonio dos Anjos
Departamento de Nutrição Social,
Universidade Federal Fluminense