RESENHAS REVIEWS

 

HTLV I, HTLV II. CADERNOS HEMOMINAS XI. Anna Bárbara de Freitas Carneiro Proietti (organizadora). Belo Horizonte: Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia de Minas Gerais, 2000. 208 pp.

 

O HTLV, descrito em 1980 como o primeiro retrovírus humano, continua sendo um desafio para o conhecimento em vários aspectos, incluindo entre outros, sua origem, transmissão, diagnóstico e as variadas formas de manifestação clínica. Neste contexto, surge esta publicação que, como esclarece a Dra. Anna Proietti, representa a 3a edição do único livro em língua portuguesa sobre os HTLV I e II, cumprindo com seu objetivo, provendo o estado da arte àqueles que desejam saber mais sobre os primeiros retrovírus humanos.

A obra tem uma dimensão e abrangência ampla, constituindo uma importante consolidação sobre o HTLV e sua complexidade. Sua esfera de interesse é vasta, podendo ser utilizada por estudantes, pesquisadores e profissionais de saúde em diversas áreas de atuação, dispondo de valioso compêndio de conhecimentos atualizados e bem revisados de forma criteriosa e de fácil leitura.

A equipe dos 14 autores apesar de não uniformemente conhecida, destaca-se por constituir-se de profissionais experientes nacionais e internacionais, incluindo uma pesquisadora da Universidade West Indies da Jamaica. O que parece relevante, no entanto, é o fato de que todos lidam em sua rotina clínica e acadêmica com as questões pertinentes à infecção e doenças relacionadas ao HTLV.

De maneira geral, as abordagens nos capítulos iniciam-se com um panorama histórico do HTLV, e paulatinamente, à luz da trajetória do desenvolvimento do conhecimento da doença, o leitor vai sendo introduzido ao acervo de avanços sobre a doença até mecanismos mais complexos de origem molecular.

São nove capítulos autônomos e complementares, que estão adequadamente conectados de forma seqüencial, a serviço justamente de colocar em pauta o que existe de mais novo e o que ainda falta ao conhecimento para o entendimento desta complexa doença.

O livro inicia-se com uma descrição detalhada das características biológicas dos vírus HTLV I/II no capítulo 1.

Segue-se a leitura dos capítulos que abordam a biologia molecular (capítulos 2 e 3), que é apresentada de forma agradável e simplificada, além de complementada com figuras didáticas que muito auxiliam o entendimento dos mecanismos envolvidos na patogênese do vírus. Esta estratégia contribui, sobremaneira, para o esclarecimento do profissional de saúde que pouco conhece deste universo molecular, minimizando portanto sua sensação de um "perplexo administrador de estranhezas."

O capítulo sobre a epidemiologia do retrovírus (capitulo 4) é abrangente, rico e didático e ao abordar o modo de transmissão e as doenças associadas à infecção pelo HTLV, introduz o leitor aos próximos capítulos que abordarão com muita competência a multiplicidade da expressão sintomatológica desta infecção.

O capitulo 5 trata das leucemias e linfomas, o 6 das mielopatias e os capítulos 7 e 8 das manifestações oculares e dermatológicas, respectivamente. Todos estes capítulos estão sistematizados sobre o verdadeiro espectro clínico da infecção, definição dos critérios diagnósticos e tratamento.

Um dos grandes méritos deste livro provavelmente, é ser capaz de interessar a todo leitor, mesmo leigo, dada à riqueza de informações, linguagem simples e direta. Um exemplo de abordagem concreta está no capitulo 9, que finaliza o livro, e que contém orientação ao doador de sangue com sorologia alterada para o HTLV I/II.

Finalmente, vale destacar como a Fundação Hemominas e o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em HTLV (GIPH) vêm tomando para si, com seriedade e competência, a tarefa de prover além dos serviços para a população, o suprimento e compartilhamento de seus conhecimentos científicos com toda comunidade. Esta é uma postura que deveria ser repetida por todas as instituições governamentais que militam na área de saúde.

A propósito, os interessados em adquirir o livro devem procurá-lo em Belo Horizonte, Minas Gerais, na Cooperativa Editora e Cultura Médica e, no interior e outros estados, contatar acs@hemominas.mg.gov.br.

 

Waleska Teixeira Caiaffa
Grupo de Pesquisa em Epidemiologia,
Departamento de Medicina Preventiva e Social,
Faculdade de Medicina,
Universidade Federal de Minas Gerais.

 

 

DA COMPAIXÃO À SOLIDARIEDADE: UMA GENEALOGIA DA ASSISTÊNCIA MÉDICA. Sandra Caponi. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2000. 100 pp.

ISBN: 85-85676-88-4

 

O livro Da Compaixão à Solidariedade: Uma Genealogia da Assistência Médica de Sandra Caponi, publicado pela Editora Fiocruz, tem o objetivo de analisar as motivações que sustentaram a constituição das intervenções sobre a saúde no decorrer do século XIX: a ética compassiva e o utilitarismo.

A autora se vale, em um primeiro momento, da leitura de Nietzsche e Hanna Arendt para a crítica das intervenções baseadas na piedade e na compaixão e da leitura de Benthan, para o utilitarismo. Em um segundo momento, detendo-se nos trabalhos de Foucault, busca demonstrar a tese de que há uma complementaridade, uma convivência entre as políticas baseadas em uma ética compassiva e as que são fundadas no utilitarismo clássico.

A perspectiva de Sandra Caponi é genealógica, isto é, a de analisar a história da assistência médica no sentido de esclarecer os traços fundamentais da sua constituição e, dessa maneira, construir de modo consistente elementos para sua transformação. Debruçar-se sobre o passado com o objetivo de iluminar e vitalizar o presente, um esforço de desvendar estratégias de poder invisíveis, mas extremamente presentes no cotidiano dos saberes e práticas médicas. A perspectiva genealógica é também uma perspectiva ética, que reconhece que o caminho para a produção do novo não se resolve com slogans ou boas intenções, impondo a necessidade de trazer luz ao que está oculto nas formas aparentemente naturais de interferência sobre a existência.

É com esta inspiração que, ao problematizar a compaixão piedosa e o utilitarismo na medicina, esclarece como ambos, ainda presentes nas instituições e práticas assistenciais de saúde, reproduzem uma racionalidade baseada em relações de subordinação que debilitam os necessitados e inviabilizam a emergência de vínculos sociais legítimos e igualitários. Ao invés disso, a autora propõe o estabelecimento de políticas que fortaleçam os sujeitos, reconhecendo neles capacidade de decisão e de diálogo.

Sandra Caponi teve a sensibilidade, o senso ético de escolher como tema o valor que apresenta maior potencial emancipatório e de construção de projetos coletivos no mundo atual: a solidariedade. Ao aprofundar filosoficamente, através da leitura de Nietzsche e Hanna Arendt, os conceitos de compaixão, piedade e solidariedade, nos estimula a pensar a elaboração de estratégias para transformar as intervenções em saúde. Estas, institucionalizadas com base na piedade e na compaixão, tendem a reproduzir mecanismos obscuros e cotidianos de coerção e controle, travestidos de humanismo.

A piedade conduz à glorificação do sofrimento alheio. Esta glorificação, "que faz da dor e da miséria elementos necessários para que o benfeitor seja reconhecido como um agente moral, se faz evidente na assistência médica sempre que ela se apresenta como um 'socorro' ou de um auxílio compassivo a quem sofre" (p. 37). A compaixão legitima as desigualdades, isola, exclui o diálogo. Já a solidariedade é um valor que se funda na vontade de universalizar a dignidade humana, pressupondo uma desapaixonada comunidade de interesses com os infortunados. A solidariedade, realização de ações que beneficiam o outro, pressupõe o reconhecimento deste como sujeito autônomo, que é capaz de fazer escolhas.

O que o texto de Caponi nos faz pensar é sobre a necessidade de estimular o deslocamento da compaixão e piedade para a compreensão e a atitude solidária, afirmando-se o respeito acima do sentimento. Nesse sentido, apresenta-se a pergunta: "é possível imaginar e propiciar a criação de um saber médico que, renunciando a ser um instrumento de controle, possa afirmar-se em um espaço solidário de vínculos entre iguais?" (p. 37).

Mesmo considerando descontinuidades e rupturas nos modelos de intervenção médica, a autora reconhece uma continuidade do discurso compassivo com os necessitados. Apesar da racionalidade médica atual apresentar-se instrumental e neutra, ela identifica a persistência de uma moralidade fundamentada na obediência e na caridade. Por exemplo, o paciente tem o dever de enunciar a verdade, tudo o que sabe a seu respeito, mas tem que conviver com o silêncio e a falta de inteligibilidade da outra parte, pois esse dever não se estende aos que são detentores do saber científico. Analisar esses mecanismos em uma perspectiva histórica auxilia a perceber de que modo eles podem ser modificados.

Centrando-se na leitura de Foucault, Caponi busca demonstrar como as formas piedosas de socorro e assistência ocultam estratégias de coerção e como ambos os discursos, o compassivo e o utilitarista, apresentam essa característica, afirmando atuar em nome do bem dos necessitados. Apesar de parecerem contraditórios, são complementares.

Finalmente, apresenta-se outro conceito fundamental para pensar a questão tratada no livro: a justiça. Trabalhando agora com o pensamento de John Rawls, a autora formula as seguintes perguntas: "Como atuar de um modo que possa ser considerado justo? Que podemos entender por justiça? Como estabelecer parâmetros capazes de garantir que uma prática possa responder às demandas de justiça?" (p. 70).

Por um lado é necessário eliminar as diferenças arbitrárias, que produzem a desigualdade e, por outro lado, respeitar as diferenças da pluralidade, que permitem que todos sejam beneficiados. A crítica de Rawls ao utilitarismo baseia-se na afirmação de que a justiça deve estar fundada em princípios que possam ser intersubjetivamente reconhecidos e beneficiar a todos. Ao contrário, a ética utilitarista, assim como a compassiva, afirmam os princípios acima dos sujeitos.

Todas as modalidades de assistência médica estudadas não têm como valor a equidade, que reconhece a pluralidade humana. Consideram apenas, por um lado, benfeitores e, por outro, necessitados, essencialmente desiguais. A preocupação central da autora é saber se é possível transformar e como, essa relação desigual em respeito e reconhecimento da dignidade do sujeito necessitado, inserindo-o em uma rede de vínculos entre iguais.

Enfim, o livro Da Compaixão à Solidariedade, apesar de tratar um tema histórico, está oportunamente sintonizado com questões da maior relevância na atualidade. Mais um exemplo que evidencia a pertinência e "praticidade" da abordagem filosófica.

 

Dina Czeresnia
Departamento de Epidemiologia
e Métodos Quantitativos em Saúde,

Escola Nacional de Saúde Pública,

Fundação Oswaldo Cruz.

 

 

COMO SE VIVE SE MUERE. FAMILIA, REDES SOCIALES Y MUERTE INFANTIL. Mario Bronfman. Cuernavaca, Centro Regional de Investigaciones Multidisciplinarias, Universidad Nacional Autónoma de México, 2000. 390 pp.

ISBN: 968-36-8144-1

 

O livro de Mario Bronfmam distingue-se ao deslumbrar facetas ainda pouco exploradas nos tradicionais trabalhos sobre mortalidade infantil, utilizando como eixos explicativos dessas mortes precoces a unidade familiar da criança e as redes sociais que ela consegue estabelecer. O texto não ignora as determinações estruturais sobre os óbitos infantis, mas se debruça sobre a questão de que famílias com situações objetivas semelhantes não são iguais nem na forma como vivem nem na forma como morrem. É fruto de sua tese de doutorado, defendida na Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.

A opção por enfocar o núcleo familiar e a rede social provém de uma antiga indagação do autor de que a mortalidade infantil, embora concentrada no grupo populacional de menor padrão sócio-econômico, concentra-se em determinadas famílias, evidenciando que a distribuição das mortes nesse grupo não é igualitária. Esse pressuposto está baseado em dados demográficos mexicanos que constataram que 19% das mulheres pesquisadas no ano de 1982, tinham tido um ou mais filhos menores de um ano mortos: 13% tinham tido um filho morto (metade da mortalidade infantil naquele ano) e 5% tinham vivenciado a morte de mais de um filho (concentrando 50% das mortes de crianças menores de um ano).

Tendo como hipótese que a tendência a repetir mortes infantis está relacionada à determinadas características da estrutura familiar, durante os anos de 1988 e 1989, o autor realizou um censo em quarenta escolas públicas de duas localidades de padrão sócio-econômico baixo na Cidade do México. Inicialmente, aplicou questionários às mães, com a finalidade de distinguir três grupos para o estudo (com 24 famílias em cada um): aquele sem filhos mortos; com um filho morto; e com mais de um filho morto antes dos cinco anos de idade, por todas as causas de morte, exceto as decorrentes de fatores congênitos ou hereditários. A comparação desses grupos quanto a algumas variáveis sócio-demográficas, ocupacionais e de atividade sexual mostra que possuem características similares, permitindo uma melhor busca das "singularidades dentro das regularidades".

A partir da seleção dos grupos, iniciaram-se as visitas domiciliares (no mínimo três entrevistas com cada família), feitas por equipe multidisciplinar: sociólogo, médico-demógrafo e terapeutas familiares. Nesses encontros foram indagados os aspectos sócio-econômicos e culturais da família, os aspectos de saúde, hábitos nutricionais, características da gravidez, partos, puerpérios, modos de criação dos filhos, dinâmica e estrutura familiar.

Dois capítulos são mais relevantes para responder à hipótese do autor: a dinâmica, estrutura e risco diferenciado dos grupos de famílias e a presença/ausência de redes sociais. Como se percebe no decorrer do texto, o arranjo familiar bem sucedido está fundamentalmente ligado ao estabelecimento de redes sociais pelo grupo familiar, atributos mais encontrado nas famílias sem filhos mortos.

O autor se baseia especialmente na teoria sistêmica para apresentar as diferenças quanto à estrutura e ao relacionamento familiares nos três grupos de famílias. As famílias com filhos mortos têm mais dificuldades em estabelecer os limites, com frágil definição de papéis distinguindo as atribuições de pais e filhos; hierarquia rigidamente focada no pai ou conjunturalmente nas mãos de qualquer membro familiar; intromissão permanente ou total isolamento da família de origem. São ainda impermeáveis a influência do ambiente, temendo a interferência de vizinhos, da comunidade e dos serviços de educação e saúde; efetuam coalizões estereotipadas, geralmente da mãe e filhos (ou família de origem) contra o esposo, ou deste e sua família de origem contra a esposa; é mais freqüente a presença de maridos violentos e alcoolistas e mulheres agredidas, com freqüentes histórias de depressão e distúrbios psicológicos, conflitos longos e intensos entre os casais além de faltar apoio familiar e do companheiro para a mulher durante a gravidez. Interessante ressaltar que as famílias com apenas um filho morto se colocam em posição intermediária na maioria das vezes, a ponto do autor supor que uma parcela dessas famílias vivenciará novas mortes infantis, igualando-se ao grupo com vários óbitos.

A relevância da existência de uma rede social de amparo à família, decorre da sua capacidade de interferir direta ou indiretamente nos fatores de risco associados às mortes infantis. Nas famílias com vários filhos mortos vê-se o isolamento familiar da rede social, seja ela dos parentes e vizinhos próximos ou de instituições como escola e postos de saúde. São tocantes os depoimentos sobre a total solidão da mãe na hora de buscar socorro para atender ao filho doente e a absoluta falta de visão sobre a possibilidade de buscar uma ajuda solidária nesses momentos de desespero.

A criação dos filhos, os acidentes e doenças vivenciados pelas crianças na família e a utilização de serviços médicos são outros capítulos que compõem o livro de Bronfmam. Vale a pena ressaltar o menor acesso à seguridade social nas famílias com vários filhos mortos, embora todas as elas utilizem similarmente os serviços públicos e privados. Nenhuma delas apresenta condutas de prevenção para riscos, tendo apenas uma prática curativa, própria do grupo social a que pertencem. O que diferencia substancialmente os grupos é a existência de uma rede social que age nos momentos cruciais, encaminhando mais corretamente e agilmente a criança doente aos serviços médicos.

Finalizando, o autor faz um ensaio sobre a antropologia da morte infantil, onde as vivências de morte são apresentadas com a reprodução de amplas falas das famílias entrevistadas. Conforme ressalta o autor, nelas se constata a vivência conflitiva, simbólica, nostálgica, dolorosa, resignada e culpada. O sofrimento permeia o dito e o escondido nas entrelinhas, que descrevem o desconhecimento das causas de morte dos filhos, o fosso existente entre as famílias e os profissionais que friamente (e geralmente tardiamente) os atenderam, o sentimento de inevitabilidade frente à morte, como se essa fora um desígnio do destino e a percepção, mesmo que indelével, de que poderiam ter agido diferente se as condições sócio-econômicas da família fossem outras.

O livro inova no estudo da mortalidade infantil e, ao mesmo tempo, ilumina campos paralelos do saber, especialmente, a área da violência contra a criança e ao adolescente, em que a dinâmica familiar e o suporte social vêm sendo estudados como fatores de risco ou protetores para o surgimento de problemas tão díspares como o abuso sexual e a desnutrição, ressalvados os casos onde haja base orgânica para o déficit nutricional.

Os leitores que se aventurarem em sua leitura terão que se deparar com longos trechos teóricos embasando os temas abordados, tais como teorias sobre a família como um sistema, sobre as redes sociais e as noções de risco, dentre muitas outras. Tal tratamento meticuloso é contrabalançado com trechos completos das falas das famílias, que impregnam e dão força ao texto.

 

Simone Gonçalves de Assis
Departamento de Epidemiologia
e Métodos Quantitativos em Saúde,

Escola Nacional de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz.

 

 

ACIDENTES INDUSTRIAIS AMPLIADOS - DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA O CONTROLE E A PREVENÇÃO. Carlos Machado de Freitas, Marcelo Firpo de Souza Porto, Jorge Mesquita Huet Machado (organizadores). Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2000. 312 pp.

ISBN: 85-85676-72-8

 

Um dos maiores desafios que os pesquisadores enfrentam quando trabalham com questões ou ambientes complexos é justamente manterem-se coerentes com a realidade e natureza complexa dos sujeitos ou universos investigados. Uma das maiores virtudes de Acidentes Industriais Ampliados - Desafios e Perspectivas para o Controle e a Prevenção talvez tenha sido a maneira em que os colaboradores debruçaram-se sobre os diversos temas, evitando determinismos e reducionismos, e a fragmentação do conhecimento em campos específicos.

A reunião de renomados especialistas brasileiros e estrangeiros deu origem a uma obra extremamente eficaz. Eficaz porque ela é claramente o produto de várias experiências consolidadas, porque reúne e aborda objetivamente questões teóricas e empíricas fundamentais para o estudo do tema, e porque gera subsídios imprescindíveis para a contínua geração de conhecimento. Para além disso, este livro vem, competentemente, cobrir uma lacuna enorme na literatura especializada brasileira.

A obra caracteriza-se pela abordagem inter e multidisciplinar em que aborda as diversas facetas do complexo universo dos acidentes industriais, proporcionando ao leitor uma visão contextualizada e ao mesmo tempo abrangente dos processos e dinâmicas sociais, organizacionais, legais, tecnológicos, políticos, econômicos, ambientais e institucionais que necessariamente interagem nos processos de prevenção, mitigação e controle de acidentes industriais. O tratamento abrangente dado às questões práticas e teóricas permitiram a aproximação e desfecho dos distintos aspectos que compõem riscos industriais e processos organizacionais. O tema abordado neste livro, acidentes industriais, induz-nos, pela sua própria natureza, a pensar de maneira "emergencial". Esta "armadilha" faz com que muitos autores sejam prescritivos. Neste processo, perdemos a oportunidade de aprofundarmos na compreensão da complexidade e dinamismo das diversas arestas inter e intrainstitucional que contribuem, ou inibem, para com a prevenção e resolução de acidentes. A "barbárie da razão", como determina Jean-Louis Le Moigne (em Morin & Le Moigne, 1999), ou "a ciência sem consciência", é objetivamente evitada nos treze capítulos que compõem o livro.

Dividido em quatro partes (Aspectos Teóricos e Metodológicos, Cenários, Planejamento de Emergências e Estratégias Institucionais de Controle e Prevenção) o livro aborda aspectos teóricos e metodológicos fundamentais, analisa as questões e contextos legais, sociais e operacionais dos acidentes ampliados, observa os aspectos causais desses acidentes, desdobra teórico e didaticamente sobre planejamento de emergências e resposta a acidentes, análise de risco, prevenção, etc. Para além de sólido referencial teórico, alguns capítulos ainda contam com leitura objetiva de exemplos práticos de acidentes e experiências passadas que enriquecem ainda mais a obra.

O livro ainda proporciona ao leitor uma visão de experiências relacionadas ao tema em diversos países tais como os Estados Unidos da América, Inglaterra, Holanda, países nórdicos e América Latina. A busca de contextualizar e retratar a realidade brasileira faz desde livro uma obra de referência.

Apesar de ter uma forte ênfase na indústria química, é uma publicação indispensável para todos aqueles, profissionais e acadêmicos, interessados ou envolvidos com questões industriais, gerenciais, ecológicas e dinâmicas sociais.

 

Guilherme Santana
Centro de Educação Superior de Ciências
Tecnológicas, da Terra e do Mar,
Universidade do Vale do Itajaí.

 

MORIN, E. & LE MOIGNE, J.-L., 1999. A Inteligência da Complexidade. São Paulo: Editora Fundação Periópolis.

 

 

A MEDIDA DO POSSÍVEL... SAÚDE, RISCO E TECNOBIOCIÊNCIAS. Luís David Castiel. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria/Editora Fiocruz, 1999. 204 pp.

ISBN: 85-86011-28-2

 

Ao propor que, de modo concomitante à operação efetiva dos dispositivos biomédicos e epidemiológicos vigentes, estejamos atentos às suas anomalias (no sentido kuhniano) Castiel se dispõe a dialogar com aqueles que admitem brechas em seus saberes biomédico e epidemiológico. Há riscos nessa abordagem que se propõe crítica em relação a aspectos estabelecidos e consagrados. Nela, o impreditível, que resulta das combinatórias do acaso, longe de ser tomado como um obstáculo, é visto como possibilidade de inovação.

O pano de fundo desse trabalho se ancora nas perspectivas de Atlan: as aporias estabelecidas pela cultura ocidental que mantém pontos de vista regidos pelo princípio da razão suficiente, com sua lógica baseada na causalidade como agente dos fenônemos naturais. Explicitar estas aporias, apontando para os limites da razão instrumental, leva-nos a considerar a complexidade dos fenômenos que transcendem a racionalidade.

É sob esta ótica que Castiel se debruça sobre a relatividade do risco. Conceito, na tardo-modernidade, fundamental na epidemiologia e na medicina preditiva, ele se expande pela mass-mídia numa verdadeira "epidemia de risco" com conseqüências bioéticas.

Essas conseqüências tornam-se mais graves quando o risco é tomado apenas pelo seu aspecto quantitativo, objetivável, independente dos complexos contextos sócio culturais. No discurso biomédico sobre as doenças, o risco assim aparece, porém na medida em que sua existência pode ser invisível, não perceptível em sinais e/ou sintomas, ele adquire características próprias, fantasmáticas, subjetivas. (A identificação de um risco genético elevado é, simplesmente, um caso especial dentro do screening para o risco.) Isso significa dizer que a abordagem do risco deve considerar não apenas seus aspectos quantitativos mas que ele deve ser também entendido como um constructo instituído histórica e culturalmente. Desse modo, a discussão sobre comportamentos de risco e estilos de vida e suas relações com o corpo, pode ser feita criticamente sem um enfoque determinista e controlador. Entender-se a dimensão múltipla da relatividade do risco significa abordá-lo como ligado a uma determinada visão de mundo, considerando a experiência humana que mescla dimensões simultaneamente biológicas, psicológicas e sócio-culturais.

A "higiomania contemporânea", no entanto, visando controlar os comportamentos de risco relativos aos estilos de vida gera uma nova e obsedante noção de higiene, mostra como a sociedade ocidental contemporânea compreende a pessoa: um sujeito racional, com um núcleo de identidade cognitivo-volitiva, que pode escolher aquilo que a ciência indica como o melhor. A insuficiência dessa abordagem é reconhecida, paradoxalmente, pela vigilância redobrada. De forma não nomeada sabe-se, assim, da existência, no sujeito, de forças profundas, inconscientes, que não estão sob o domínio da razão. É essa noção do perigo incontornável que nos coloca quase que à beira de um apocalipse como desastre.

Mas apocalipse, etimologicamente, significa revelação, desvelamento e descoberta. É esse duplo sentido de apocalipse que leva o autor a assim intitular seu segundo capítulo. As técnicas de manipulação genética, possibilitando uma reprogramação do próprio estatuto da espécie humana, trazem a imagem conjugada do medo e da necessidade. Adentramo-nos por territórios, até então, vedados ao homem: a hereditariedade e a procriação. Esses novos campos que se abrem geram novas disciplinas. A epidemiologia molecular aparece como uma delas. Uma das dificuldades dessa nova disciplina diz respeito às peculiaridades do objeto epidemiológico, objeto que é, simultaneamente, biológico e social. Apoiada na nova genética, que alguns chamam de genômica, instruindo uma medicina preditiva/prospectiva, podemos identificar várias questões que escapam ao domínio biológico no sentido puro: a interferência da economia de mercado na produção e acesso aos conhecimentos biotecnológicos, a apropriação de genomas por empresas, a repercussão na mass-mídia das informações genéticas na maioria das vezes tratadas como determinísticas e não probabilísticas, tem repercussões éticas cujas conseqüências podem ser profundas nas vidas das pessoas. Afinal, uma mulher com achado de genes ligados ao câncer de mama e/ou história de tumor mamário na família deve ou não se submeter a uma mastectomia preventiva?

Os riscos não são pequenos nesses tempos da nova genética molecular. Pode-se melhorar a qualidade de vida das pessoas minimizando seus sofrimentos mas pode-se, também, restringir esses avanços a poucos e/ou servirem de estímulo ao recrudescimento de programas "purificadores da raça". A descontextualização da identidade na atualidade, com a evanescência da noção estruturante ancorada na existência de um eu ordenado na individualidade e na universalidade, aponta para a necessidade ética de se buscar uma terceira via para a solução dessas novas questões.

Discutindo o novo milênio, Castiel busca um esboço do futuro da epidemiologia diante da tecnobiociências. Critica alguns autores que vêem o papel central da quantificação estatístico-epidemiológica na construção de verdades epidemiológicas apresentadas com a chancela de neutralidade e objetividade do conhecimento científico. Sem desconhecer alguns dos avanços fundamentais que a epidemiologia conjugada a técnicas de bioinformática. (epidemiologia molecular) tem trazido, o que se questiona é o tom grandiloqüente assumido por alguns desses autores quando não consideram fatores de imprevisibilidade. "A vida como ela é" mostra-se muito mais complexa não comportando fetichizações das coisas para que essas pareçam claras e controláveis.

Sustentada em três conceitos fundamentais - informação, adaptação e auto-organização - a biologia molecular mostra a relevância da noção de informação. Ela tanto pode servir à vertente molecular da ordem (neomecanicismo) quanto à desordem (neovitalismo) ensejando approachs opostos como os de Dennett e von Foerster. Castiel considera a informação essencial como potencialidade constitutiva do pensamento mas, lembra-nos que, no humano, viver é mais do que conhecer, é mais do que processar informação.

Nas categorias para o corpo que adoece, Castiel utiliza José Gil para criticar o que, na atualidade, Turner denomina de "sociedade somática" em que a regulação e a vigilância dos corpos e o controle de suas distância/proximidade são feitas por critérios médico-epidemiológicos. Gil mostra como o corpo se apresenta como a metáfora para a organização e mal-estares sociais. A utopia da saúde perfeita ao descrever o corpo como objeto de pesquisas, intervenções, preceitos, fiscalização e vigilância, prioriza as técnicas de visibilização, a biologia molecular e a decifração genética. O corpo, operado pelas tecnobiociências contemporâneas, fica reduzido à ordem biológica, faltando conceptualizações satisfatórias referentes ao mental. Os modos de classificação biomédica e epidemiológica se baseiam em modos monotéticos de diagnosticar e conhecer a partir da lógica conjuntista-identitária buscando o unívoco.

Nessa ótica objetivista, as doenças são classificadas sob três pontos de vista monotéticos que podem se imbricar conforme a entidade nosográfica (manifestacional - a partir de sinais e sintomas; etiológico levando em conta critérios causais e mecanísticos baseados na fisiopatogenia.) Se, em muitas situações, essa ótica mostra-se eficaz, há situações que dela escapam: as afecções crônico-degenerativas, as doenças mentais e aquelas devidas ao que se convencionou chamar estresse. (Essa última é uma discussão que o autor não faz e que está a merecer que sobre ela se debruce). Além disso, há que se considerar o reducionismo estatístico vigente nas pesquisas epidemiológicas. Uma tentativa vigorosa de manter a atuação médica lógica e racionalmente situada está na criação dos protocolos (a medicina baseada em evidências) que consistem em conjuntos de instruções que orientam, de acordo com dadas manifestações e/ou respostas a medidas terapêuticas, as decisões a serem tomadas. Neste approach, novamente a racionalidade é pensada como determinando as ações.

A utopia da saúde perfeita tem colocado os médicos no lugar de vigilantes do prazer alheio, tornando objeto de intervenção da atividade clínico-médico tudo que é passível de medicalização, isto é, práticas, serviços, equipamentos, produtos farmacológicos indicados ou desempenhados por médicos a seus clientes/pacientes, independentemente de serem ou não doenças. Esquecem-se que, na verdade, o objeto das disciplinas da saúde é o humano em sua singularidade em suas formas de sentir e manifestar seus mal-estares referidos a si e ao entorno. Mas médicos não são formados para lidarem com o sofrimento humano, não consideram subjetividades, não exploram a dimensão da narratividade que empresta sentido ao adoecer e ao sofrer. A biomedicina não dá importância às necessidade de atribuições de sentidos do existir humano. Desse modo, ao lado de sua incontestável eficácia para lidar com organismos, surge seu fracasso em trabalhar com outras abordagens que a lógica empirista não dá conta. A medicina precisa reconhecer que é necessária a compreensão de que o corpo não é apenas biológico, que ele é também inconsciente e que a narratividade é fundamental para o existir humano.

No capítulo final, Castiel se interroga se as narrativas da tecnociência podem, no Ocidente, ocupar o lugar atribuído aos discursos mitológicos estruturantes das sociedades humanas. A questão do "quem somos" abordada através da filosofia da mente, discutindo a intencionalidade, a memória, a consciência e o corpo é trazida através de vários autores (Dennett, Searle, Varela, Edelman, Rosenfield, dentre outros) cujos pensamentos mantêm divergências, por vezes, incontornáveis. Os obstáculos causados pelo problema corpo-mente continuam a ocupar um lugar central que escapa à possibilidade da enunciação de uma verdade última. A busca da verdade, que sempre norteou o desejo de conhecimento, mostra-nos que "se algo é verdadeiro, ele só o é à medida do possível... sob condições bem especificadas". Isso não significa que devamos desanimar. Pelo contrário. O que Castiel nos exorta é que, percebendo nossas limitações, poderemos não apenas usufruir dos benefícios das tecnobiociências, como ampliarmos nossos horizontes considerando a condição humana e suas vicissitudes em termos simbólicos e identitários, com suas repercussões na saúde e no viver.

 

Liana Albernaz de Melo Bastos
Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal,
Faculdade de Medicina,
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

 

REGISTROS DE SAÚDE. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (organizador). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. 244 pp.

ISBN: 85-85676-58-2

 

O ato de registrar ações, acontecimentos e ocorrências da forma escrita representou a forma de captar e passar para a história da humanidade esses acontecimentos.

A mais antiga contribuição em Registro de Saúde ocorreu no Egito em 2980 A.C. e mostrava o estudo de 48 casos de doenças estabelecendo o padrão de registros: exame físico, sintomas, diagnóstico provisório, diagnóstico definitivo, prognóstico e tratamento.

Legalmente, o registro pode ser conceituado como o conjunto de atos tendentes a ministrar prova segura e certa do estado das pessoas. Fornece meios probatórios fidedignos, cuja base é sua publicidade emanente, como função específica de provar a situação jurídica do registro e torná-la conhecida de terceiro. É ao mesmo tempo uma forma de defesa e um elemento de garantia.

Desde então, vem sendo sistematicamente usado no atendimento aos pacientes, no registro de mortes, nascimentos, enfim em todos os acontecimentos médicos que necessitam ser medidos e avaliados.

A qualidade dos dados registrados representa um ponto crítico que necessita atenção contínua e investimento do estado, para que a informação fornecida seja o mais fidedigna possível e capaz de atender às necessidades de análise, gestão e planejamento, pesquisa clínica, processos legais e outros. A escolha do instrumento que vai captar as variáveis que envolvem saúde e doença requer cuidados no sentido de facilitar a prática do procedimento em si e dar o máximo de fidelidade aos dados colhidos. É importante que se possibilite nas unidades de saúde a criação de Serviços de Registro de Saúde e Informações, dentro de padrões que se traduzam em estruturas físicas adequadas, com pessoal devidamente capacitado e que seja valorizado pelo gestor da unidade.

Na área hospitalar, dados como o número de pessoas internadas, o tempo de permanência, o tratamento, o diagnóstico do paciente assim como na área de atendimento básico, o número de pessoas atendidas, o perfil e a procedência das mesmas, a demanda reprimida, os diagnósticos além de outros, vão concorrer para a qualificação da gestão dessas unidades e para definir políticas de saúde de uma determinada região e em seu conjunto, da cidade como um todo.

O recurso humano adequado e utilizado para essa finalidade é o de nível médio. Em 14/04/89 o Conselho Federal de Educação (CFE) expediu o parecer nº 353, criando a habilitação de Auxiliar e de Técnico em Registros de Saúde, possibilitando às pessoas que completarem o Curso Técnico ingressar em carreira pública.

A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venancio (EPSJV) vem formando pessoal de nível médio em Registros de Saúde desde 1986, a maioria destes, vinculados às Secretarias de Saúde dos Municípios para exercerem suas funções nas diferentes unidades da rede pública (hospitais, maternidades e unidades de atendimento básico).

O livro em questão é um primoroso trabalho dos professores da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venancio, dirigido à clientela de nível médio, que possibilita a formação de técnicos extremamente necessários principalmente nos meios públicos, contribuindo de uma certa maneira para o aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde. Permito-me citar as palavras da Diretora da Escola, Tânia Celeste de Matos Nunes, quando refere que o livro "é, também, o reflexo do compromisso com uma proposta de formação de pessoal que confere ao nível médio a dignidade e a importância que lhe cabem na formação das equipes de saúde". Não temos ciência de outro livro em nosso meio que possibilite, de forma tão didática e clara, ensinamentos nessa área de conhecimento e que inclusive passa a servir de instrumento de consulta e orientação para implantação de sistemas de registro cada vez mais inteligentes, onde quer que estes sistemas sejam úteis tanto em serviços de saúde públicos como privados.

O livro contém uma introdução e oito textos de apoio e está escrito em linguagem clara e precisa; apresenta-se com uma primeira parte introdutória e oito capítulos.

A introdução escrita pelo professor Sérgio Munck, aborda a organização e funcionamento dos Serviços de Registros e Informações em Saúde, a Formação de Técnicos em Registros de Saúde e a Habilitação Técnica em Registros de Saúde. Ressalta a importância da organização dos registros, que se traduz no tipo de prontuário usado, nos arquivos nosológicos, nas estatísticas e informações em saúde. A necessidade sentida de formação de técnicos nesta área motivou a criação de um curso técnico voltado para pessoal de nível médio pela EPSJV. Em 1989, o Conselho Federal de Educação aprovou a Habilitação do Técnico em Registros de Saúde permitindo assim continuadamente a atualização dos conteúdos do curso.

No capítulo 1 são abordados os aspectos Históricos e Organizacionais dos Registros de Saúde, mostrando nos mais diferentes lugares do mundo e em várias épocas o surgimento e implantação dos registros. Ainda neste capítulo analisa-se a organização e administração de um Serviço de Registros e Informação, evidenciando as suas funções básicas como: identificação de pacientes, ordenamento de prontuários, coleta de dados e outros.

O capítulo 2, que fala da Interface dos Serviços Assistenciais com o Serviço de Registros (serviço social, nutrição, farmácia, etc.) reflete sobre as transformações ocorridas nos últimos anos no sistema de saúde brasileiro. Descreve as unidades básicas nas suas diferentes especificações e as definições e normas gerais para os serviços de emergência, internação e ambulatórios.

O tema do 3o capítulo é Planejamento de um Serviço de Registros de Saúde e Informação em Saúde. Fornece informações e orientações úteis para operacionalização dos Serviços de Registros, possibilitando aprimoramento no gerenciamento de uma unidade de saúde. O planejamento e organização deste tipo de serviço devem adequar-se ao perfil de cada unidade, devendo ser levado em conta o número de habitantes da área, o perfil demográfico e epidemiológico da área, o porte da unidade de saúde, os programas e ações de saúde desenvolvidos na mesma, etc. Este capítulo aborda um item importante que é a organização de um arquivo.

O capítulo 4, Índices de Referência ao Prontuário, aborda a elaboração do Prontuário Médico que concentra nos índices de referência ao prontuário boa parte dos procedimentos de trabalho. Os índices utilizados mais freqüentemente são: índice de pacientes, de números, de diagnósticos, de operações e de médicos.

O 5o capítulo, O Prontuário do Paciente, versa sobre um dos mais importantes documentos da área de Registros de Saúde que é o Prontuário Médico. Aspectos importantes são tratados como: as condições de abertura, tipos de prontuários, usos e objetivos.

São mostrados também os vários métodos de ordenamento de prontuários. Os formulários ocupam uma boa parte deste capítulo com suas inúmeras variações entre as quais podemos citar formulários de identificação, de internação e alta, anamnese e exame físico, resumo de alta, solicitação de exames laboratoriais, prescrições médicas, formulários de estatísticas vitais: declaração de óbito, declaração de nascido-vivo. Finalmente, aborda a análise dos prontuários e suas avaliações.

O capítulo 6, Controle e Conservação dos Prontuários, continua abordando o prontuário porém, sob a ótica dos cuidados e da conservação dos mesmos e também apresentando normas e métodos para o seu controle.

Ainda em pauta no capítulo 7, o prontuário, desta vez sob a ótica da Numeração e Arquivamento de Prontuários. Discute-se os principais sistemas e métodos utilizados para a organização da numeração e o arquivamento, mostrando as vantagens e desvantagens de cada um.

Finalmente, no 8o capítulo, Aspectos Éticos e Legais do Prontuário do Paciente, aparecem discussões sobre ética, justiça e aspectos legais que cada vez mais interessam aos profissionais de saúde gerando sempre situações de dúvidas e dilemas. Este capítulo apresenta estas discussões sem oferecer um manual de regras, porém permitindo a reflexão para que no decorrer do exercício da profissão esses conhecimentos possam permitir a visualização dos problemas desta esfera e a possibilidade de uma solução ética.

Ao final do livro encontra-se uma atualizada relação bibliográfica com mais de duzentos títulos e ainda documentos de legislação sobre a habilitação profissional e determinadas obrigações quanto aos Registros de Saúde.

 

Meri Baran
Coordenação de Programas de Epidemiologia,
Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.

 

 

RESHAPING HEALTH CARE IN LATIN AMERICA: A COMPARATIVE ANALYSIS OF HEALTH CARE REFORM IN ARGENTINA, BRAZIL AND MEXICO. Sônia Fleury, Susana Belmartino & Enis Baris (editores). Ottawa: International Development Research Centre, 2000. 277 pp.

 

O debate sobre o processo de reforma dos sistemas de saúde nos países latinoamericanos, ganha significativo aporte com o livro editado por Sônia Fleury, Susana Belmartino & Enis Baris, fruto de um trabalho colaborativo que envolveu pesquisadores de três países (Argentina, Brasil e México) com apoio financeiro do International Development Research Centre (IDRC) do Canadá.

Não há como deixar de constatar o avanço que se obtém com esse estudo colaborativo, concretização de um movimento em torno do diálogo entre os pesquisadores e seus respectivos centros de pesquisa - Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Brasil; (CESS), Rosário, Argentina; e Universidad Autónoma Metropolitana-Xochimilco (UAM-X), no México - já iniciado há mais de uma década.

Os resultados desse trabalho vêm à luz em um extenso volume, dividido em quatro partes, dedicadas respectivamente aos resultados de cada um dos momentos em que se desenvolveu a pesquisa: a proposta teórico-metodológica (1a parte), os estudos de caso, ou seja, a análise da política de saúde de cada país (2a parte), a discussão dos determinantes da utilização dos serviços de saúde em três cidades selecionadas - Cidade do México, Rio de Janeiro e Rosário - (3a parte) e o capítulo final, dedicado à sistematização das conclusões do estudo e à reflexão sobre os possíveis desdobramentos do processo de reforma do sistema de saúde nos três países.

Do ponto de vista teórico-metodológico é inegável o caráter inovador do estudo. Os autores buscam estabelecer um marco de referência comum aos estudos de caso (país) ao mesmo tempo em que articulam estratégias metodológicas que combinam a coleta, o processamento e a análise de dados qualitativos e quantitativos. Com isso, pretendem dar conta do estudo de processos político-institucionais no âmbito legislativo e administrativo, identificando os "instrumentos de política" através dos quais as decisões tomadas nos diversos países foram conformando modelos de organização e gestão dos sistemas, financiamento e provisão dos serviços.

Além disso, buscam identificar os efeitos desses processos na utilização de serviços pela população, investigando até que ponto a reforma dos sistemas de saúde resultou, não apenas em uma maior (ou menor) produção, senão que em maior acessibilidade da população aos serviços. Situam, assim, o estudo entre aqueles que buscam evidências empíricas que fundamentem a discussão atual sobre as desigualdades sociais e de saúde em particular, contribuindo para a problematização, sempre renovada, das políticas sociais enquanto espaço de reprodução das opções econômicas e/ou enquanto políticas compensatórias dos seus efeitos perversos, tendo como propósito a busca de eqüidade no acesso aos bens e serviços sociais e de saúde em particular.

A descrição e análise da Política de Saúde, formulada e implementada nos países selecionados, é apresentada nos capítulos que compõem a segunda parte do livro, dedicando-se dois capítulos a cada país. No primeiro de cada um deles (2, 4 e 6) são sistematizados elementos do contexto histórico-político em cada país, nas duas últimas décadas, cenários no qual se desenvolveu o processo político de reforma dos serviços e sistemas de saúde. Os autores de cada capítulo (Susana Belmartino - CESS, Rosário, Argentina - caps. 2 e 3; Lenaura Lobato & Luciene Burlandy - Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde/FIOCRUZ, Brasil - caps. 4 e 5; e Sylvia Tamez - UAM-X, México - & Nancy Molina - Uni de Bogotá - caps. 6 e 7) tratam de estabelecer, em grandes linhas, as características dos serviços de saúde no período anterior ao processo de reforma, identificando os "sub-sistemas" existentes - público, privado e seguridade social - e as relações entre eles. Em seguida, contextualizam a emergência de propostas e contra-propostas de reforma, identificando os atores políticos que as sustentavam e as mudanças ocorridas na legislação e no desenho institucional (reformas administrativas das instituições gestoras) dos "sub-sistemas", concluindo com uma avaliação geral do processo político no âmbito da saúde em cada país. A leitura comparada de cada um dos três capítulos, dedicados ao contexto e ao processo de reforma em cada país, permite ao leitor a identificação das semelhanças e diferenças entre os distintos processos, preparando-o para a compreensão dos resultados alcançados em cada um dos países.

Estes, por sua vez, são apresentados nos capítulos subseqüentes (3, 5 e 7) incluindo uma caracterização geral da população e dos serviços de saúde em cada país, ponto de partida para a descrição das transformações operadas no sistema a partir do processo de reforma. A visão geral da situação de saúde da população e dos serviços de saúde foi construída utilizando-se informações sócio demográfica (população por idade e sexo) e epidemiológicas (mortalidade geral por causa) bem como alguns dados relativos à distribuição do gasto (público e privado) com serviços de saúde nas duas últimas décadas, cobertura (população por sub-sistema) e infra-estrutura de recursos em saúde (número de estabelecimentos por tipo, leitos hospitalares e profissionais de saúde). Constata-se o esforço dos pesquisadores em estabelecer um patamar mínimo que permita a comparação, embora se perceba que em alguns casos, como o do Brasil, foi possível agregar informações mais detalhadas, tanto sobre a população em geral (distribuição da pobreza por região) quanto sobre os serviços de saúde, o que pode refletir o grau de desenvolvimento dos sistemas de informação em cada país.

As transformações ocorridas no sistema de saúde em decorrência do processo de reforma, são analisadas com ênfase nas mudanças nas relações entre os organismos financiadores, os provedores e os usuários (pacientes) analisadas em sua singularidade (financiadores - provedores; provedores - usuários; financiadores - população). Encontra-se aí a maior contribuição do estudo, ao introduzir, na "análise concreta de situações concretas" o modelo de análise apresentado no capítulo introdutório (p. 22) o que permite a construção do objeto de estudo, para além da descrição do processo político-institucional da reforma do sistema de saúde, qual seja, a configuração das relações entre organismos financiadores e provedores, entre si e com a população que participa como comprador (mediante pagamento direto ou indireto) no mercado de serviços, ou como cidadão cujo consumo é garantido pelo Estado, e, em todo caso como consumidor de ações e serviços de saúde.

Até que ponto este processo tem gerado um aumento da acessibilidade da população aos serviços? Ou seja, até que ponto, as transformações operadas na estrutura de relações entre órgãos financiadores, provedores e população têm implicado uma extensão de cobertura, uma ampliação do consumo, o acesso de segmentos anteriormente excluídos ao consumo de serviços de saúde? Essa é a pergunta que move a pesquisa a desdobrar-se em um estudo de utilização de serviços em três cidades selecionadas nos respectivos países em foco - cuja autoria coube a Enis Baris (IDRC, Canadá), Maurício de Vasconcellos (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Brasil) & Moisés Balassiano (FGV, Brasil).

O desenho do estudo incluiu a aplicação de um questionário a uma amostra estratificada da população de determinadas áreas das cidades estudadas, áreas estas selecionadas a partir da estratificação da cidade por nível socio-econômico da população. O inquérito contemplou a investigação sobre a existência de "condições traçadoras" (hipertensão, pré-natal - gravidez - e diarréia) na família entrevistada, e o comportamento face à existência dessa condição, buscando-se correlacioná-lo posteriormente com um conjunto de variáveis e categorias que poderiam explicar o padrão de utilização dos serviços em cada estrato estudado. Ainda que não conclusivos, os resultados desse inquérito apontam a necessidade de realização de novas investigações que se ocupem dos efeitos dos processos de mudança nos sistemas de saúde em nossos países, as quais, provavelmente, vão além de mudanças na relação oferta/demanda de serviços e implicam complexas transformações nas concepções e práticas de saúde da população.

As conclusões do trabalho, inicialmente, sistematizam as tendências macroeconômicas e sociais, estabelecendo comparações entre os três países estudados. Com base na síntese da análise do processo de reforma do sistema de saúde em cada país, é apresentada uma análise comparativa que destaca alguns elementos centrais, quais sejam o "timimg" da reforma e o significado do processo de descentralização da gestão do sistema, finalizando-se com um apanhado geral das tendências e perspectivas em cada país, o que permite à autora (Sônia Fleury) desenhar três cenários possíveis para os próximos anos: um cenário competitivo, no qual prevalecerá a lógica do mercado enquanto estruturador das relações constitutivas do sistema de saúde, um cenário dual, no qual, como o nome sugere, haverá em certo paralelismo entre as tendências estruturantes do sistema público e do sistema privado e um cenário especializado, no qual poderá se verificar uma configuração segmentada, em que as instituições públicas e privadas distribuirão entre si as clientelas, segundo grupos da população. Poderíamos entender esta última situação, talvez a mais provável, como aquela na qual não haveria competição, nem paralelismo, senão uma certa "complementariedade" perversa, na qual a desigualdade social se espelharia na desigualdade do acesso aos serviços de saúde.

Como se pode perceber, a divulgação deste livro, fruto de uma pesquisa cuidadosa e de uma reflexão abrangente e instigante, é urgente e necessária. A explicitação das "lições" extraídas das experiências estudadas, complemento com que os autores nos brindam no final do livro, serve tanto aos pesquisadores da área quanto, e principalmente, aos atores políticos envolvidos nos processos de formulação e implementação das reformas dos sistemas de saúde. Esperamos vê-las traduzidas em textos e propostas políticas, brevemente, em nosso meio.

 

Carmen Teixeira
Instituto de Saúde Coletiva,
Universidade Federal da Bahia.

 

 

SALUD: LA REFORMA SILENCIOSA. POLITICAS SOCIALES Y DE SALUD EN EL PERU EN LOS 90. Juan Arroyo. Lima: Universidad Peruana Cayetano Heredia, 2000. 213 pp.

 

O título do livro - Salud: La Reforma Silenciosa - expressa a temática que, a modo de fio condutor, uniria a maioria dos artigos da obra. O autor refere-se a mudanças de tipo molecular que vêm sendo introduzidas no âmbito das instituições do setor, em direção à privatização ou modernizações gerenciais, com vistas à maior eficiência e produtividade, como preconiza a ortodoxia internacional. O livro reúne uma série de trabalhos, relatórios e artigos escritos por Juan Arroyo em diferentes épocas, a partir de 1991. Refletem, assim, pesquisas e análises do autor em torno dos problemas, circunstâncias e aspectos históricos das instituições médico assistenciais do Peru, bem como considerações sobre "a crise da saúde pública" e os novos paradigmas que estariam emergindo. Em conjunto, trata-se de um material extremamente rico e informativo que bem mostra as tortuosas trajetórias das políticas de saúde do Peru.

Embora o autor não explicite, essas trajetórias inserem-se num país permanentemente tensionado, e mesmo traumatizado, pela impossibilidade de as elites dominantes de diversas vocações ditatoriais ou autoritárias e variadas estirpes (oligárquicas ou burguesas, militares ou civis) lidarem, desde o Estado, com o conflito de classes e a modernização econômica e, sobretudo, com a heterogeneidade cultural e a integração das massas na sociedade nacional. O dilema colocado pela exclusão/inclusão que atravessa a história do Peru (e da América Latina em geral) neste século, tem sido enfrentado pela violência institucional, a cooptação corporatista e o populismo, provocando uma tensão sistêmica crescente. Espetaculares levantes camponeses pela reforma agrária, levas de invasores do perímetro urbano de Lima por títulos de propriedade e revoltas operárias, marcaram a segunda metade deste século (Stepan, 1980), logo seguindo-se movimentos guerrilheiros que, em nome da justiça social e da participação política, têm assolado o país.

Por outra parte, como o autor menciona, traumas não menores derivados das crises fiscais e econômicas que, em meados dos anos 70, afetaram os incipientes planos de desenvolvimento incubados nos anos 60, aliaram-se para que iniciativas governamentais de estender a proteção social às massas se frustrassem, além de agravar-se a pobreza que, segundo dados para 1990 citados pelo autor, alcançam 70,7% da população, correspondendo 40,7% à miséria estrutural.

Especialmente esclarecedor é o último capítulo Políticas Sociales y de Salud en el Perú en el Siglo XX. Del Desamparo Social Tradicional al Desamparo Social Moderno. Essa análise, junto com diversas passagens sobre a evolução dos serviços de saúde, contidas em vários capítulos, em particular o primeiro deles - La Reforma del Sector Salud en el Perú, 1990-98. En Busca de Nuevos Modelos de Políticas Sociales - permitem ter uma visão de conjunto dos muitos processos inacabados, abortados ou ainda em projeto, que acompanham o percurso das políticas setoriais. Essa descontinuidade, e mais o autoritarismo político e o receituário neoliberal, têm contribuído para se tomarem decisões que vêm acentuando os traços do sistema de saúde peruano - fragmentado, desarticulado, desregulado e indefinido em seu formato, além de iníquo, já que, como mostra o autor, 25% da população não teria qualquer cobertura em atenção à saúde, ou 60% em um distrito de Lima, segundo pesquisa de 1992, também referida. Para essa iniqüidade, contribui o limitado impacto do Instituto Peruano de Seguro Social (IPSS) destinado aos trabalhadores do mercado formal visto que, em 1990, o subemprego no país era de 83% da população economicamente ativa. Certamente, a reforma privatizante da seguridade social e as soluções de mercado para os serviços estatais contribuem para a sedimentação de tais distorções a não ser que, como propõe o autor, uma reforma sanitária ou "reengenharia sistémica radical" seja empreendida.

Esse é o objeto do capítulo Reforma Sanitaria: Proceso Político Institucional que ordena análises dispersas sobre as várias mudanças propostas ou executadas no heterogêneo panorama institucional da saúde no Peru. Trata-se de relatório realizado por encargo ministerial, o que de certa forma explica o enquadramento do diagnóstico de "ingovernabilidade", "desinstitucionalização", "informalização", "corporativização", "desregulação", "desprofissionalização" e outros traços nos limites do âmbito setorial.

Partindo de um repertório de pertinentes críticas às concepções de reforma vigentes no país e alhures, Arroyo coloca elementos para una reforma sanitaria deseable, factible y viable. Em apertada síntese, que omite os argumentos do autor, a proposta inclui: articulação entre análise epidemiológica e modelo de atenção; vinculação da eficiência com a eqüidade; aproveitamento das idéias da "nova saúde pública" para mudar o discurso, a cultura organizacional e a ética de trabalho; financiamento através da demanda; ampliação da cobertura mediante combinação ótima público/privado com focalização subsidiada; correspondência entre tipos de oferta e segmentos de demanda, com flexibilidade e especialização; integração programática nacional, descentralização regional, sistemas locais e participação social. Quanto aos traços que caracterizariam as instituições, sobre tudo o ministério da Saúde, o autor propõe várias "reconversões" na esfera do poder: fortalecimento da alta direção; construção de sistema de tomada de decisões e projetos de apoio à função de governo; legislação para implementação progressiva da reforma setorial, com monitoramento do processo; papel coordenador e orientador do ministério; restituição da regulação; profissionalização da direção e do pessoal; regime de cargos, salários, incentivos e capacitação em recursos humanos; redesenho das relações intersetoriais, com esquema eficiente de articulação Executivo-Parlamento, entre outros.

O autor reconhece a inviabilidade de uma estratégia que acompanhe as etapas clássicas de elaboração política, jurídica e institucional de um novo modelo - desenho, construção, implementação e avaliação - bem como a inerência do conflito, além de colocar a necessidade de construir consensos a partir de uma renovação de forças sociais e setoriais capaz de desencadear o processo, lideradas, ao parecer, por uma renovada tecnoburocracia sanitária.

Entretanto, visto os graves e profundos problemas do sistema de saúde peruano, as propostas de Arroyo poderiam ser situadas no plano da utopia. Isto devido, certamente, ao fato do mencionado artigo propositivo sobre a Reforma Sanitaria, acima mencionado, ter se originado em relatório oficial elaborado no governo de Alberto Fujimori.

Em termos do plano geral do livro, o autor não necessariamente precisava tangenciar, ou mesmo omitir, considerações relativas à dimensão política, quer dizer, às vicissitudes e instabilidades políticas e institucionais de toda ordem que têm afetado o Peru com inusitada intensidade nas duas últimas décadas.

Cabe apenas lembrar com Cotler (Montserrat Filho, 2001), o reconhecido cientista político peruano, que Fujimori e seus aliados militares, para tirar o país da turbulência, do caos, da profunda crise de governabilidade dos anos 80, receberam um cheque em branco balizado pelas tendências da globalização. Essa conjunção explicitou pela primeira vez na história nacional a concorrência de apoio enérgico de forças internas e externas, que foram aproveitadas pelo "fujimorismo" para lograr uma concentração inusitada de poder. Ao contrário do prometido, o governo personalista de Fujimori não acabou com o narcotráfico nem a corrupção, eliminou o sistema político partidário e passou a controlar com mão dura a vida política da nação pelos meios mais espúrios. O regime de mando pessoal e de nenhuma transparência significou uma segunda década perdida. O resultado foi um desastre político de tal monta que, segundo Cotler, para superá-lo será indispensável fundar novas instituições e não apenas refundar as antigas, posto que isto poderia levar à regressão, ao passado. O objetivo, inédito na história moderna do país, seria levar os peruanos, a começar pelas elites, a se comportarem dentro da lei e das instituições. Mas, para esse analista, essa é uma tarefa quase impossível neste mundo globalizado, onde os interesses privados estão com força máxima.

Em face dessas considerações, poder-se-ia perguntar se, dado o contexto do "fujimorismo", as mudanças na saúde, analisadas por Arroyo, poderiam ser caracterizadas de outra forma a não ser como tortuosas, "silenciosas" decisões políticas revestidas de incoerente pragmatismo, tomadas autocraticamente nos bastidores do poder, mesmo porque é próprio do autoritarismo dispensar a legitimação social. Quanto à reforma sanitária vislumbrada pelo autor, cabe assim mesmo indagar se a hegemonia dos interesses privados em geral, vai deixar brechas para que apenas no setor saúde ocorram transformações "radicais" que apontem (com urgência) em direção a maiores graus de eqüidade, qualidade, cobertura e acesso no que diz respeito à provisão de assistência médico sanitária à desvalida população peruana.

 

Maria Eliana Labra
Escola Nacional de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz.

 

 

MONSERRAT FILHO, J., 2001. O desastre institucional do Peru. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 jan.

STEPAN, A., 1980. Estado, Corporativismo e Autoritarismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br