ARTIGO ARTICLE
Mary Braga de Lima 1,2 Dalva A. Mello 3 Ana Patrícia P. Morais 4 Weber C. da Silva 1 | Estudo de casos sobre abandono do tratamento da tuberculose: avaliação do atendimento, percepção e conhecimentos sobre a doença na perspectiva dos clientes (Fortaleza, Ceará, Brasil)
Non-adherence to tuberculosis treatment: a study on perceptions and knowledge of the disease and evaluation of health services from the patient perspective (Fortaleza, Ceará, Brazil) |
1 Departamento de Enfermagem, Universidade de Fortaleza. Av. Presidente Castelo Branco 3182, Fortaleza, CE 60312-060, Brasil. dmello@solar.com.br 2 Secretária Estadual do Ceará. Av. Santos Dumont 6400, bloco A, apto. 801, Fortaleza, CE 60150-160, Brasil. 3 Núcleo de Saúde Pública, Universidade de Brasília. SQN 315, bloco B, 504, Brasília, DF 70744-020, Brasil. 4 Departamento de Enfermagem, Universidade Estadual do Ceará. Rua Minas Gerais 462, Fortaleza, CE 60441-030, Brasil. | Abstract This research was developed in 1995-1996 in the Oliveira Pombo Health Center (CSOP), Fortaleza, Ceará, Brazil. The aim was to explore factors influencing non-adherence to tuberculosis treatment. Specific objectives were: dynamics of tuberculosis notification and treatment of non-adherence cases at the CSOP; demographic, social, economic, and cultural profiles of clientele (social actors); default reasons that interrupt treatment; and knowledge and perception of the disease. The methodological approach was based on descriptive epidemiology and on sociological interpretivism. A semi-structured interview was used for questions related to the social actors, such as: demographic, social, economic, cultural, and behavioral factors; knowledge and perceptions of tuberculosis and treatment; impact of the disease on patients' lives; and perspectives concerning health service attendance. Results show that treatment non-compliance involved multiple and complex interrelated factors. Key words Tuberculosis; Health Services; Treatment Refusal
Resumo Esta pesquisa foi desenvolvida em 1995 e 1996 no Centro de Saúde Oliveira Pombo, Fortaleza, Ceará. Os objetivos foram os seguintes: geral - identificação de fatores que determinam o abandono do tratamento da tuberculose; específicos - análise da dinâmica do atendimento e da freqüência de casos e de abandono do tratamento; identificação das características sócio-econômicas e culturais dos clientes (atores sociais); causas impeditivas ao tratamento; conhecimentos e percepção da doença pelos clientes. Duas abordagens metodológicas foram utilizadas: de natureza epidemiológica descritiva e sociológica interpretativa, utilizando questionário semi-estruturado com os seguintes conteúdos: sexo; idade; estado civil; escolaridade; ocupação; rendimento; descrição da residência; formas de deslocamento; níveis de conhecimentos e percepção sobre a doença e o tratamento; identificação de sentimentos reativos à doença; avaliação sobre o atendimento; comportamento e estilos de vida prejudiciais; decisões de mudanças para melhoria da saúde. Os resultados obtidos apontaram fatores múltiplos de natureza complexa, que influem direta ou indiretamente para o abandono do tratamento. |
Introdução
A tuberculose tem ampla distribuição geográfica, ocorrendo em países desenvolvidos ou de economias emergentes, mas que expõem contrastes profundos de desenvolvimento, estando a doença associada a altos indicadores de pobreza. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) (WHO, 1998), a tuberculose vem ceifando mais vidas humanas do que a malária e a AIDS juntas. Ainda de acordo com essa instituição, só no ano de 1997, cerca de um terço da população mundial foi infectada pelo Mycobacterium tuberculosis e oito milhões de pessoas adoeceram. O Brasil está em sexto lugar entre os países com altos índices de tuberculose, tendo registrado, no ano de 1998, um total de aproximadamente 129 mil doentes e nove mil mortes (Jornal Ciência Hoje, 1998). Apesar de existirem drogas eficazes, a realidade quanto ao êxito do tratamento aponta fatores complexos que intervêm nos resultados, entre os quais, a resistência aos medicamentos, o tratamento incompleto e o abandono.
Tendo em vista essas considerações, realizamos uma investigação cujo objeto foi identificar os fatores que estariam contribuindo para o abandono do tratamento da tuberculose no Brasil. Justificamos a escolha do assunto pelo fato de que os estudos sobre o tema ainda são poucos e se referem basicamente aos levantamentos de freqüência de casos de abandono, cujos percentuais encontrados até o momento variaram entre 4,5% a 20,3% (Azevedo, 1993; Bethlem, 1995; Costa et al., 1998; Gonçalves, 1998; Gonçalves et al., 1999; Hijjar, 1992; Merchán-Hamann, 1997; Natal, 1997; Olinda, 1990; SMS, 1995/1996).
Metodologia
A pesquisa foi desenvolvida no período de 1995-1996 no Centro de Saúde Oliveira Pombo, Distrito Sanitário-6 (CSOP/DS-6), Fortaleza, Ceará, que faz atendimento ambulatorial primário, mediante demanda espontânea ou referenciada por outros serviços, incluindo também as atividades pertinentes ao Programa de Controle da Tuberculose (PCT) no município. A execução da investigação ocorreu em duas fases simultâneas:
Fase A
Nessa fase, procuramos compreender a dinâmica do PCT no CSOP/DS-6, através da descrição do fluxo de atendimento aos clientes, realizando levantamento de freqüência de casos de tuberculose e de abandono ao tratamento. As fontes para o levantamento das informações foram a ficha geral de atendimento e o livro de registro de controle e tratamento do centro de saúde. Para o levantamento dos dados dessas fontes primárias, foi elaborada uma ficha apropriada para tal fim, contendo: identificação do cliente; grau de instrução; profissão; identificação clínica; procedimentos e acompanhamento do tratamento.
Fase B
Nessa fase, procuramos compreender a problemática do abandono do tratamento pelos clientes do PCT do centro de saúde em questão, identificados como atores sociais da pesquisa.
A metodologia utilizada foi a sociológica interpretativa, como postulada por Secker et al. (1995), que aborda informações pautadas na compreensão de totalidade, cujo propósito é explorar, analisar e interpretar conteúdos que são elaborados e narrados por atores sociais. O instrumento empregado nessa fase foi um questionário semi-estruturado, contendo perguntas fechadas e abertas, aplicado por meio de entrevistas aos clientes do CSOP/DS-6 que abandonaram o tratamento da tuberculose. Os conteúdos das perguntas fechadas se referiram a fatos concretos relacionados às categorias de: sexo, idade, estado civil, escolaridade, ocupação, ganho mensal (salário mínimo), descrição da unidade física residencial. As perguntas abertas foram realizadas com base em roteiros sobre temas relacionados ao abandono do tratamento, propostos de forma tal que o entrevistado pudesse discorrer com liberdade. Os conteúdos das narrativas abordaram: níveis de conhecimento, linguagem e percepção em relação à doença, prevenção e cura; identificação de sentimentos reativos ao meio familiar, amigos, vizinhos e ambiente de trabalho; identificação das causas que levaram ao abandono do tratamento; níveis de conhecimento sobre o tratamento e suas reações; identificação de comportamentos e hábitos de vida prejudiciais ao indivíduo com tuberculose; pretensões para mudanças de vida e/ou decisões tomadas para melhoria das condições de saúde e a avaliação dos atores sobre o atendimento no centro de saúde.
As entrevistas ocorreram em um clima descontraído de diálogo. A postura ética, explicitada através da garantia do sigilo e do anonimato, a interação de confiança e respeito - entre entrevistador e entrevistado -, foram compromissos assumidos publicamente. Os critérios de inclusão na pesquisa ficaram definidos como a condição de os atores sociais estarem cadastrados no PCT do CSOP/DS-6 entre janeiro de 1995 e 1996, serem maiores de 15 anos, e terem iniciado e abandonado o tratamento após trinta dias. Os dados obtidos foram analisados de acordo com as duas fases do trabalho e suas especificidades de coletas, acompanhando o seguinte roteiro.
Resultados e comentários
Fase A
Fluxo de atendimento aos clientes no Programa de Controle da Tuberculose do Centro de Saúde Oliveira Pombo/Distrito Sanitário-6
As atividades do PCT no CSOP/DS-6 têm uma dinâmica de atendimento que segue caminhos com diversos desdobramentos. Os profissionais responsáveis no centro de saúde são médico (em rodízio), uma enfermeira, uma assistente social e um agente administrativo. O centro recebe dois tipos de clientes: indivíduos com sintomatologia respiratória que vão diretamente à instituição e pessoas que tiveram comprovação diagnóstica de tuberculose em outras instituições, mas que, independente do endereço residencial, são também encaminhadas ao centro.
Após preenchimento da ficha geral de atendimento, os clientes são encaminhados para a seguinte rotina: primeira consulta - exame clínico e encaminhamento para exames de laboratório; segunda consulta - com a comprovação etiológica e/ou clínica, o cliente é inscrito no programa, onde serão preenchidas as fichas de notificação, investigação e controle de tratamento; essa rotina se finaliza com o preenchimento de dados no livro de registro de controle e tratamento; terceira consulta (médica ou de enfermagem) - está voltada principalmente para fornecer orientações sobre a doença e a prescrição dos medicamentos. O cliente é então encaminhado à farmácia do centro de saúde para recebimento da medicação, devendo, entretanto, retornar ao consultório, onde os profissionais darão as orientações específicas quanto à ingestão dos medicamentos.
O controle do tratamento requer retorno do cliente ao centro, uma vez por mês, para consulta e recebimento de medicamentos, e a cada dois meses, para acompanhamento da evolução do diagnóstico clínico e etiológico. O desligamento do cliente do PCT ocorrerá quando houver cura, abandono, transferência, erro de diagnóstico ou óbito.
Freqüência de casos de tuberculose e de abandono ao tratamento
No período de 1995-1996, foram atendidos 239 casos de tuberculose no CSOP/DS-6. Entre esses, 218 tinham a forma pulmonar e 21 a extrapulmonar. Na Tabela 1, está consolidada a distribuição da freqüência da forma pulmonar para os sexos masculino (124/56,8%) e feminino (94/43,2%). As faixas etárias com menor número de casos se situaram abaixo de 14 anos (2,4%; 2,7%; 4,1%), aumentando substancialmente a partir dos 15 anos (12,3%), com um pico de 49,3% no intervalo de 30-39 anos. Os dados sobre o abandono ao tratamento, baseados nos prontuários de cada cliente, estão consolidados por faixa etária e sexo na Tabela 2. A casuística foi de 28 pessoas com forma pulmonar, correspondendo a 12,8% dos clientes, sendo 19 (67,3%) do sexo masculino e 9 (32,2%) do feminino. A decisão de abandonar o tratamento pelos clientes, todos com Esquema I (procedimento de tratamento da tuberculose, padronizado nacionalmente, para casos novos de todas as formas - pulmonar e extrapulmonar - à exceção da meningite tuberculosa. Inclui duas fases de tratamento: a primeira de dois meses, utiliza três drogas - Rifampicina, Isoniazida e Pirazinamida -; a segunda é de quatro meses utilizando a Rifampicina e a Isoniazida), foi tomada em diferentes períodos de uso dos medicamentos, como segue: um mês (um cliente); dois meses (oito); três meses (onze); quatro meses (dois); cinco meses (quatro); e sem indicação de período (dois). O maior número de casos concentrou-se entre dois a três meses após o uso dos medicamentos. Segundo dados dos registros da Secretaria de Saúde de Fortaleza para os anos de 1995 e 1996, os percentuais de abandono no CSOP/DS-6, de 15,8% (14,5% - 18,4%) e 13,5 (8,3% - 18,8%), respectivamente, não diferiram muito daqueles encontrados em outros distritos sanitários.
Fase B
Fatores que contribuíram para o abandono do tratamento
a) Características do perfil sócio-econômico e cultural dos atores sociais.
Essa fase da pesquisa foi predominantemente qualitativa, porém os dados agregados sobre as características do perfil sócio-econômico e cultural dos atores sociais puderam ser quantificados. No período de 1995 a 1996, ocorreram 28 casos de abandono, mas, por problemas de localização de endereços, só conseguimos realizar 15 entrevistas (53,6%). Todos os atores sociais entrevistados, 11 homens (73,3%) e quatro mulheres (26,6%), tinham a forma pulmonar de tuberculose. A faixa etária entre os homens variou de 20 a 59 anos e, entre as mulheres, de 20 a 39.
A Tabela 3 expõe os dados agregados, que qualificam a situação das precárias condições de vida dos atores sociais, os quais, em sua totalidade, residem em bairros pobres ou em favelas periféricas distantes. Estão presentes desemprego, mercado de trabalho informal de baixa renda e instabilidade de ganhos financeiros necessários ao provimento das necessidades básicas da família. O nível de educação é incipiente, prevalecendo a categoria do analfabetismo funcional ou total. Embora a água tratada esteja presente em mais de 90% das residências, não existe destino adequado dos dejetos e do lixo, espelhando falta de qualidade ambiental e insalubridade. As residências, interna e externamente, têm precárias condições físicas e de higiene. A alta densidade populacional por unidade residencial - 3,7 habitantes -, expõe um ambiente de risco propício à tuberculose. Hábitos de vida prejudicais à saúde, a exemplo do fumo, álcool e drogas ilícitas, estão presentes e colaboram para agravar o quadro clínico da doença. Entre os atores, seis (40,0%) eram dependentes de fumo e álcool, entre os quais uma mulher de 23 anos; dois usavam só o álcool e três do sexo masculino, além de fumo e álcool, faziam uso de drogas ilícitas (maconha, cocaína, inalantes e comprimidos). Foi relatado que o consumo de álcool e cigarro era diário - os fumantes consumiam entre uma e duas carteiras de cigarro por dia -, e que o hábito de beber havia sido adquirido quando jovens.
b) Agregação, análise e interpretação dos conteúdos das narrativas dos atores sociais.
As narrativas sobre a tuberculose traduziram a dimensão da realidade existencial, cotidiana e vivencial dos atores. Descreveu-se um conjunto de conhecimentos diversos sobre a doença, o impacto e o significado da mesma em suas vidas, tanto nas relações afetivas e sociais, quanto no ambiente familiar, da vizinhança e do trabalho, em relação às expectativas, sentimentos, atitudes, bem como a sua percepção das relações com o serviço de saúde. Dessa forma, seguindo a lógica explicativa dos atores, foi possível elaborarmos a interpretação das narrativas como seguem abaixo.
1) A percepção sobre o estado de saúde: A percepção dos entrevistados sobre sua saúde foi exposta pela maioria (66,6%) como sendo entre razoável e boa, embora apresentassem estado de gripe e sintomas e sinais de tuberculose. Essa percepção nos remeteu à presença de uma concepção própria e situacional de saúde, segundo a qual sinais e sintomas sentidos só têm significado de doença quando advém a incapacitação física. Três pessoas, no entanto, declararam que não estavam se sentindo bem, e duas não responderam.
2) A tuberculose, o agente e a transmissão: Onze pessoas responderam que conheciam a doença entre casos da família, de amigos e colegas de trabalho. Apesar de dez entrevistados não saberem como haviam adquirido a tuberculose, duas mencionaram textualmente que "um bacilo" era o causador da doença, e três imputaram enfaticamente como causas principais as farras e/ou a falta de alimentação e esgotamento físico. Doze pessoas explicitaram a tuberculose como uma doença infecciosa e de comprometimento pulmonar. Todas foram unânimes em apontar o contágio como caminho para "pegar a doença", através do compartilhamento de utensílios domésticos, roupas, cigarros e gotas de saliva de doente. Outros atores mencionaram que a doença poderia ocorrer em virtude da inalação de produtos químicos, banho de lagoa, exposição ao sol e à chuva e da transmissão genética.
3) Sinais e sintomas: Todos foram capazes de identificar e descrever a doença em suas manifestações patentes como seguem: tosse seca e/ou com catarro e sangue, catarro fedido, perda de peso, emagrecimento, fastio, cansaço, fadiga, vômito com sangue, tontura, dores nas costelas, no peito e nas pernas, febre e frio. O conjunto desses sinais e sintomas foi o motivo principal da procura de um serviço de saúde.
4) Medidas de prevenção e controle: Treze pessoas afirmaram que a tuberculose poderia ser evitada, mas as colocações foram, às vezes, equivocadas: não fumar e nem usar drogas; tomar os remédios; deixar de beber; não compartilhar pratos; ter uma alimentação reforçada; não usar objetos de pessoas doentes; não usar água quente; ter cuidado e higiene com o corpo. Duas pessoas afirmaram que desconheciam o assunto.
5) Visão do processo de cura: Treze pessoas disseram que a tuberculose poderia ser curada se houvesse o seguimento da recomendação médica, ressaltando a necessidade de se iniciar o tratamento tão logo o diagnóstico estivesse concluído; acrescentaram que as medidas preventivas apontadas no item anterior complementariam o processo de cura. Dois atores discordaram dessa postura de forma enfática, uma vez que para eles "só Deus poderia ter esse poder".
6) Impacto da tuberculose na vida dos atores sociais: (a) Reação ao diagnóstico: A revelação do diagnóstico foi o primeiro impacto na vida cotidiana dos atores sociais. A maioria (13) se sentiu mal ao saber que estava com tuberculose, expondo emoções diversas tais como: "fiquei com a cabeça atacada" ou "senti uma coisa ruim". Um dos atores, que trabalhava em ambiente insalubre, lidando com produtos altamente tóxicos (tintas e solventes), não acreditou no resultado do diagnóstico, pois, de acordo com seu entendimento sobre a tuberculose, os sintomas não condiziam com o que estava sentindo. Não obstante, acatou a orientação médica, tomando a medicação encaminhada pelo centro de saúde, mas, como seu estado de saúde foi se agravando, abandonou o tratamento e buscou outro serviço de saúde, onde, segundo ele, novos exames constataram o equívoco do diagnóstico anterior. (b) Mudanças de vida: As narrativas sobre mudanças de vida foram muito sucintas: seis pessoas relataram que "não mudou muita coisa"; sete deixaram de trabalhar por tempo indeterminado e duas diminuíram o ritmo de trabalho ("ficou sem ânimo", "piorou da cabeça", "se afastou da família passando...a comer separado", estava tentando "deixar de beber e de fumar"). (c) Reações da família: À exceção de um ator, todos relataram ter tido apoio afetivo dos familiares, os quais manifestaram preocupação, medo, apavoramento, perturbação, contrariedade e resignação. Somente uma pessoa declarou o incentivo explicito da família em relação ao seguimento do tratamento. (d) Reações dos amigos: Sete pessoas destacaram que não tiveram qualquer tipo mudança nas atitudes e comportamento dos amigos; duas ressaltaram que os amigos se prontificaram para qualquer ajuda; cinco testemunharam o afastamento dos amigos. (e) Reações dos vizinhos: Nove pessoas não perceberam qualquer tipo de mudança em relação aos vizinhos, três mencionaram que eles ofereceram apoio e duas ficaram isolados. (f) Reações no ambiente de trabalho: Seis pessoas avisaram no trabalho que estavam com tuberculose; duas não avisaram; uma trabalhava por conta própria; duas não estavam trabalhando; uma era aposentada e três não responderam. Os atores que comunicaram a situação no trabalho não perderam o emprego e informaram que os patrões manifestaram apoio e compreensão, liberando-os temporariamente para o tratamento e recuperação da doença. Entre os dois atores que não comunicaram no trabalho, um já estava com a licença médica e o outro não acreditava no diagnóstico. Somente um ator relatou que os companheiros de trabalho, ao tomarem ciência de seu estado de saúde, afastaram-se do convívio.
A consolidação das narrativas mostrou que a tuberculose foi percebida pelos atores sociais como sendo uma doença familiar, que podia afetar todos os membros e seu entorno das relações sociais, levando-os a atitudes de resignação diante do diagnóstico. Embora estivesse presente idealização de condutas desejadas, as narrativas expuseram os diversos constrangimentos, o estigma social e a auto-estima baixa. Os conteúdos apontaram as descrições das condutas reativas dos familiares e amigos que conviviam com os doentes, a exemplo das falas que seguem: "Tive que me mudar porque briguei com o pessoal de casa"; "Os amigos se isolaram com medo de pegar a doença"; "Os vizinhos e os amigos tiveram pena de mim"; "Os vizinhos e amigos não disseram nada"; "Minha patroa mandou almoçar em casa"; "Meus parentes ficaram preocupados"; "Minha família me trata mal"; "Meus amigos de farra sumiram"; "Os vizinhos falaram para minha companheira que ela iria ficar doente... ela foi embora"; "Minha família não me deu apoio e os amigos me isolaram..." etc.
7) Tratamento e nível de conhecimentos sobre os medicamentos: Os atores sociais não sabiam os nomes dos medicamentos que receberam do centro de saúde. A maioria (86,6%) afirmou que as dificuldades em seguir o tratamento eram grandes, principalmente para os dependentes de fumo e álcool. Os comprimidos eram grandes, muitos, e difíceis de engolir, e tomados em jejum "traziam provocação". Sentiam muitas reações desagradáveis, como: coceira no corpo, dores na barriga, náusea, vômito, tontura, sono, pressão baixa, aumento na freqüência da micção, agravamento dos sintomas da doença ("mais piora do que ajuda"). As mulheres gestantes especificaram que os medicamentos faziam mal, tanto para eles quanto para os fetos que estavam se desenvolvendo no ventre materno. Outros motivos, não menos importantes, levaram também a interromper o tratamento: exames de raio X e de baciloscopia negativos; desaparecimento de sintomas; falta de dinheiro para transporte; horário de trabalho nem sempre compatível com o do centro; medo do médico, da perícia e da discriminação social; conjunto de crenças relacionadas ao poder divino da cura e visão da doença como herança familiar.
8) Pretensões para melhorar a saúde: Os 15 atores tinham a intenção de "fazer alguma coisa para melhorar a saúde": as gestantes pretendiam voltar a tomar os medicamentos após o parto; um foi ao "encontro da fé e do apoio dos irmãos crentes" como suporte para que sua vida "se libertasse dos vícios da bebida, do fumo e das drogas"; outros relataram que estavam tentando evitar a praia, expor-se ao sol, ficar perto de fumantes, ingerir bebidas alcoólicas e fazer extravagâncias, no entanto "sempre voltava aos vícios"; uns procuravam "tomar muita vitamina por conta própria", mesmo acreditando "que só Deus dá a saúde e em segundo lugar a medicina".
9) Percepção e atitudes sobre o atendimento no PCT do CSOP/DS-6: Do total de atores, 93,3% afirmaram que, ao sentirem os sintomas compatíveis com tuberculose, procuraram atendimento em diferentes serviços da rede pública de saúde. Apesar de terem feito a primeira consulta em hospitais e em centros, todos foram encaminhados para o CSOP/DS-6, uma vez que residiam na área de abrangência dessa instituição. Os profissionais foram avaliados pelos atores como sendo alguns grosseiros e outros educados. As opiniões da maioria sobre o agendamento da primeira consulta variaram entre regular a ótimo, relevando os aspectos relacionados à atenção e presteza na solicitação dos exames laboratoriais e à medicação gratuita, mas apontaram como referências negativas do serviço a demora e a fila grande para o atendimento.
O CSOP/DS-6, quando fica ciente de casos de abandono, procura utilizar meios de comunicação nos contatos com os clientes: visita domiciliar; telefone; aerograma; recado e orientação direta no centro. Doze atores sociais foram contatados pelo centro da seguinte forma: visita domiciliar (seis pessoas); visita domiciliar e envio de aerograma (uma); visita e telefonema (uma); aerograma (duas); telefonema e recado (uma); orientação direta no centro (uma). Entretanto, nenhum dos atores retornou para receber as orientações devidas, justificando que "não estava com vontade", "não tinha quem o levasse", "não tinha dinheiro para o transporte", "não tinha com quem ir", "não via resultado no tratamento", "trabalhava no horário do atendimento" ou "tinha medo da perícia no trabalho". A interação dos profissionais versus atores com o processo dos meios de comunicação e de informação, que deveria ser o elemento catalisador para gerar mudanças, não foi suficiente para estimular os atores.
As críticas dos atores apontaram uma série de obstáculos nas etapas burocráticas do centro sobre o atendimento, traduzindo a natureza da relação profissional de saúde versus cliente como sendo de desiguais: "Os médicos deveriam chegar na hora marcada ... pois se anda muito no sol"; "Os médicos deveriam ficar mais tempo no serviço, pois um chega às 10h e sai às 11h, outro chega às 12h e sai às 13h"; "Seria melhor se pudesse atender mais pessoas"; "Tem que ter sempre alguém para fazer consultas". Segundo os atores, há necessidade "de melhorar o atendimento para diminuir as filas"; "de mais médicos e enfermeiras"; deveria haver reserva de "fichas para quando a pessoa fosse suspeita de ter a tuberculose e estar sendo atendida pela primeira vez"; há necessidade também de que "as pessoas cumpram o horário de trabalho".
Discussão e conclusões
A pesquisa que desenvolvemos no CSOP/DS-6 apontou diversos fatores que parecem influenciar na adesão ao tratamento da tuberculose. As discussões sobre a questão nos remeteram a reflexões sobre as narrativas dos atores sociais na direção de quatro vertentes.
A primeira vertente está diretamente relacionada à dinâmica do atendimento e reacende a discussão institucional sobre o serviço de saúde e o papel desempenhado no controle da tuberculose. Considerado como um dos pontos polêmicos e importantes, o campo institucional tem sido responsabilizado pelo insucesso do tratamento (Irurzun et al., 1990; Kilpatrick, 1987; Snider, 1982). Snider (1982) enfatizou a importância do acompanhamento contundente e motivador para o cliente e para a família na adesão ao tratamento. Pesquisas conduzidas nos Estados Unidos (Reichman, 1987), Argentina (Irurzin et al., 1990) e Espanha (Caminero et al., 1996) mostraram que a relação de afeto e respeito entre os profissionais de saúde e clientes estimula o seguimento do tratamento. A veiculação de informações claras na visita domiciliar e o apoio para os deslocamentos dos clientes também colaboraram muito para a adesão.
Os atores sociais espelharam com clareza, no cenário do CSOP/DS-6, a intricada burocracia que os sujeitava a filas, horários inflexíveis e preenchimento de formulários que inviabilizam um atendimento fluente e de qualidade. Quanto aos profissionais, os atores ressaltaram que o não-cumprimento dos horários refletiam na qualidade do exame clínico e na interação com o cliente.
A segunda vertente diz respeito à reflexão de que a tuberculose é uma doença assentada predominantemente em variáveis de natureza econômica, social e cultural, concepção essa respaldada por Chaulet (1983), Teklu (1984), Reichman (1987), Irurzin et al. (1990), Schluger et al. (1995), Dick et al. (1996), Dick & Schoeman (1996), Natal (1997) e Costa et al.(1998). Como pudemos ver, o espaço vivencial dos atores tem como referência precárias habitações, falta de saneamento básico e destino do lixo, carência de escolaridade e ausência de lazer, desqualificação profissional e desemprego, compondo um conjunto de clivagens de ordem econômica, social, espacial, cultural (Nascimento, 1994), facetas do estado de exclusão social em que vivem.
A terceira vertente comprovou que os atores sociais foram capazes de construir um corpo conceitual de conhecimentos, percebendo e descrevendo com clareza a tuberculose em seus diferentes níveis de complexidade (a doença, sua história natural e social), incorporando conteúdos informais vivenciados e formais adquiridos a partir da fala repetitiva dos técnicos de saúde. Na interpretação das narrativas, identificamos etapas relacionadas às disfunções e injúrias ao corpo biológico, tais como: a doença e suas causas; os sinais e sintomas; os mecanismos de transmissão, assim como as medidas de prevenção, controle e processo de cura. O impacto da tuberculose na vida dos atores sociais mostrou que houve um esforço na direção de tentar administrar uma problemática que alterou relações sociais. Ao tornar público constrangimentos vivenciados por eles ("Os amigos se isolaram com medo de pegar a doença"; "Os vizinhos falaram para minha companheira que ela iria ficar doente ... ela foi embora"), prevaleceu em cada um profundo enfraquecimento da auto-estima, expressando atitudes de resignação em face da doença. Barayobre et al. (1987) projetaram a doença como sendo um acontecimento impactante para o indivíduo-sujeito, cuja história de vida cruza o social com o status de pobreza, colaborando para o abandono do tratamento. Liefooghe et al. (1995) verificaram que os atores percebiam a tuberculose como doença perigosa, contagiosa, de aceitação difícil; tinham ansiedade, medo, desgosto, raiva, pois se sentiam rejeitados socialmente. A concepção de que a tuberculose é ainda uma doença carregada de estigma social (Gonçalves, 1998) reforça as atitudes de resignação dos doentes diante do sofrimento. Mesmo compreendendo que a tuberculose tem cura, prevalece, no entanto, entre os atores, o credo no reaparecimento constante da doença na família e/ou entre amigos e companheiros de ambiente de trabalho, reforçando a passividade e descrença, além de comportamentos negativos em relação a mudanças de hábitos nocivos à saúde, a exemplo da bebida alcóolica, fumo e drogas ilícitas.
A reflexão sobre a última vertente nos reporta à problemática específica do tratamento. Não obstante considerarem o tratamento de fundamental importância para a cura, as dificuldades em lidar com ele foram muitas. Snider (1982), ao analisar a magnitude e complexidade do problema em foco, enfatizou que as perspectivas para soluções do tratamento da tuberculose passa necessariamente pela identificação e avaliação dos fatores que determinam a aderência, principalmente o papel institucional, destacando que: "Cuanto más cumplicado sea el tratamiento, más largo será el tiempo que transcurrirá antes de obtener un efecto y cuanto menos importante él aparezca, el enfermo tendrá más dificultades para adoptarlo". As recentes pesquisas de Costa et al. (1998) e Gonçalves et al. (1999) apontaram também uma série de fatores de risco no abandono, que se articulam àqueles identificados em nosso trabalho.
Acreditamos que, ao lado das tradicionais abordagens de intervenção institucional, poderíamos refletir sobre outras que contemplassem uma dimensão integradora, na direção da concepção do modelo de promoção à saúde. Pensando de forma global, porém de acordo com as especificidades de cada contexto social e cultural vivencial, uma multiplicidade de níveis de intervenção processual poderia ser testada, incorporando as expectativas dos clientes e o envolvimento ativo da família e de seguimentos organizados da comunidade, a exemplo de outras pesquisas acima mencionadas.
Agradecimentos
Este trabalho é parte da tese de mestrado em Saúde Pública apresentada à Universidade Federal do Ceará em 1997. Nossos agradecimentos são para a enfermeira Cileide J. Freire, do Centro de Saúde Oliveira Pombo, para a Escola de Saúde Pública do Ceará, pelo apoio financeiro, para o professor José U. Braga (Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz) e para os atores sociais, por sua participação voluntária e cooperativa.
Referências
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