Madel Teresinha Luz | Debate sobre o artigo de Mary Jane P. Spink Debate on the paper by Mary Jane P. Spink |
Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. madelluz@uol.com.br | Risco, perigo e aventura na sociedade da (in) segurança: breve comentário |
O artigo de Spink sobre risco coloca em jogo questões atuais de natureza teórico-metodológica e substantiva para as ciências sociais, que valem a pena mencionar, e na medida do possível, aprofundar, ainda que em "breve comentário", pretensão dessas notas.
A propósito da categoria de risco e seus usos diversos na contemporaneidade, que a autora designa como modernidade tardia, Spink desenvolve uma reflexão bastante densa sobre as relações entre linguagem, estrutura discursiva, produção de sentidos, suas funções e variações na cultura através da noção de repertório interpretativo. Variações que são de natureza histórica, é claro, mas também simbólica, expressas por meio de linguagem, ancoradas em discursos mais ou menos estruturados, relativos a grupos sociais, a saberes ou mesmo a formas de agir, a práticas. A complexa abordagem implicada na análise da autora supõe uma interdisciplinaridade em que antropologia, psicologia social, sociologia, história, genealogia e lingüística têm que andar de mãos dadas. A produção social de sentidos através da história, expressa em metáforas, palavras, conceitos, pode ser uma janela aberta para a compreensão das mudanças da sociedade, de seus momentos de rupturas, de continuidades, bem como da apreensão da direção dessas mudanças. Através da análise da transformação dos termos, dos conceitos, dos lugares comuns, das figuras de linguagem, enfim do que Spink designa como repertório interpretativo, é possível abordar, "a partir de um fenômeno específico", as profundas transformações em curso na cultura, atingindo talvez o mesmo tipo de percepção que Foucault (1966) evidenciou em sua obra As Palavras e as Coisas como a passagem de uma cultura da similitude a uma cultura da representação (modernidade clássica), quando pôs em foco o conceito de episteme, estabelecendo uma reflexão ainda hoje atual sobre a gênese das ciências humanas. Deste ponto de vista, o artigo de Mary Jane interroga essas ciências tanto do ponto de vista metodológico (como trabalhar em perspectiva interdisciplinar para desvendar surgimentos, evoluções e mutações na produção discursiva de sentidos?) como conceitual (qual o papel arquetípico das formações discursivas relativas a determinados termos, como o de risco, para entender as transformações culturais e sociais em curso?) Essas questões são em si mesmo inovadoras, e chamam a atenção para a interação entre a produção de sentidos, o imaginário social e as práticas sociais nas diferentes culturas.
Mary Jane Spink trabalha com o que podemos designar, parafraseando Isabelle Stenghers, como um operador conceitual, mais que um simples conceito, que é o de repertório interpretativo, que evidencia o papel estratégico da linguagem na sua abordagem, bem como com a análise de uma categoria que escolheu como "metáfora da modernidade tardia" - risco - significativa do momento de passagem de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de risco.
A linguagem relativa ao risco é situada numa panorâmica sócio histórica dessas variações, vistas sob uma tripla dimensão do risco, entendido e analisado como forma de se relacionar com o futuro, como conceituação e como gestão. O termo é focalizado desde sua emersão na cultura em termos de palavra (a questão da linguagem é, mais uma vez, a base do esclarecimento dos sentidos historicamente produzidos) no século XIV, em catalão, daí se espraiando para as línguas latinas e anglo saxônicas (século XVII), apontando para a idéia de eventos imprevisíveis no futuro, o qual passa a ser representado no imaginário social como controlável. A repertorização dos sentidos na história do termo risco é feita em perspectiva genealógica (no sentido foucaultiano), retraçando a evolução de sentidos de "fatalidade à fortuna", de hazard (perigo) - em francês acaso - à sorte e chance, no intuito de demonstrar a construção metafórica progressiva, dos séculos XII ao XVII, da categoria de risco, que se torna um dos conceitos básicos da modernidade clássica referidos ao futuro.
Por outro lado, o futuro concebido como um conjunto de eventos controláveis é próprio da lógica do capitalismo moderno, como nos ensinou Max Weber (1987) na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. A objetivação do futuro como uma série de eventos ou operações controláveis é a ambição máxima da modernidade, tanto em termos de conhecimento ("ciência moderna") como em termos de ação social ("ética do trabalho"). Spink nos refere como essa reflexão aparece em Bourdieu, que nos mostra como a incorporação da categoria de risco supõe uma "racionalização" da conduta e da vida em relação a um futuro abstratizado, cuja imprevisibilidade é mensurada (ou pelo menos "calculada"), evitando-se assim as "aproximações arriscadas e desinteressadas (...) de uma moral de generosidade", típicas de sociedades pré-capitalistas, segundo o sociólogo francês.
A passagem de termo a conceito envolveu a constituição de saberes estruturados na modernidade, como a matemática e a estatística (com o desenvolvimento da teoria da probabilidade), sua adoção como ciência de estado (séculos XVIII e XIX) até que o discurso estruturado na ciência sanitária como "gestão dos riscos" produziu no século XIX, segundo a autora, "o primeiro deslocamento no enredo arquetípico do discurso sobre o risco", passando, em termos de lingüística, da "metáfora à metonímia". Entretanto, apenas no século XX, segundo a autora, já em sua segunda metade, o risco, através da ciência epidemiológica, estruturou-se como um saber de gestão de riscos, gerando sofisticados modelos de análise, visando a calcular, controlar e/ou prevenir riscos.
Esse modelo, que representa, segundo Spink, a passagem da metonímia à sinédoque da categoria de risco na sociedade contemporânea, gera um campo interdisciplinar de análise, prevenção e intervenção extensivo a áreas crescentes de conhecimento e atividade social, visando à percepção e gestão de riscos nessas áreas, e envolvem a economia, a saúde, a tecnologia e seus efeitos, a educação, as políticas públicas e, mais recentemente, a comunicação (uma vez que, segundo a autora "a participação pública (...) passou a ser elemento imprescindível no controle social dos riscos"). Entretanto, o modelo "global" de cálculo, prevenção e controle de riscos enfrenta duas questões até o momento insolúveis: a questão dos valores implícitos nos riscos (sua percepção, sua definição) e a questão da transformação da natureza dos riscos, progressivamente mais sistêmicos e globalizados. O que cria para tal modelo uma situação de "não controle" ou de passagem para um novo modelo, o da "gestão de riscos", que assinala, segundo Mary Jane Spink, a mudança de uma "sociedade moderna, disciplinar", em perspectiva foucaultiana, para uma sociedade de "modernidade tardia, de riscos".
No primeiro caso, da sociedade industrial capitalista, tratava-se de gerir e controlar a vida, basicamente das populações, o que trouxe à tona o conceito foucaultiano de biopoder, conjunto de estratégias disciplinares da docilização dos corpos para o trabalho, o que levou Foucault a elaborar por coerência o conceito de governamentalidade como mecanismo básico de gestão objetiva/subjetiva da sociedade disciplinar. No segundo caso, temos um processo de deslocamento da gestão da vida para a gestão dos riscos, em que "globalização", "individualização e "reflexividade" como características básicas da modernidade tardia, implicam com a transnacionalização do capitalismo, em processos de "destradicionalização", de "singularização", sobretudo do que Spink designa como "ironia" nas estruturas discursivas, que mudam a natureza dos riscos, as estratégias de gestão dos riscos pelos indivíduos, e mesmo os mecanismos de gestão das populações, embora os relativos ao momento anterior da modernidade não estejam descartados. O mais importante a assinalar aqui talvez seja a mudança do próprio sentido de risco na cultura em função dos processos em atuação.
Do meu ponto de vista, a mutação discursiva mais significativa em relação a risco apontada no artigo, talvez seja a da conexão de risco e aventura em diversos setores das atividades sociais e dos valores culturais da atualidade: na economia, na educação, nas atividades empresariais, no esporte, nos jogos. O cultivo do risco como questionamento passa a ser associado à coragem, à bravura, à têmpera, à resistência, à disciplina, e mesmo ao espírito de equipe, à solidariedade focal. Spink associa essa conexão ao processo de globalização e aos efeitos destradicionalizantes e desterritorializantes do capitalismo transnacional, com a imponderabilidade sistêmica dos riscos tornando-se um impedimento ao seu controle e gestão, gerando novos sentidos metafóricos e novas práticas discursivas sobre o risco.
Estamos vivendo em uma sociedade onde emergem sentidos do risco como prática contínua de busca de rompimento dos limites humanos, inclusive da vida humana, isto é, como um arriscar-se, ou então como tentativa de controle do imponderável através do exercício obsessivo do cálculo de probabilidades em busca de "segurança" nos mais diversos campos da atividade social, sobretudo no econômico (é só refletir sobre a imponderabilidade e a vulnerabilidade crescentes das "apostas" da bolsa de valores). Talvez as novas práticas sociais e discursivas do risco estejam sinalizando para alguns sentidos implícitos a serem desvelados, como o de mimetismo da insegurança do sistema globalizado. Talvez estejam chamando a atenção, de forma paradoxal, para a incapacidade da sociedade atual de lidar com seus "riscos" mais evidentes: a dissolução de relações e instituições sociais tidas historicamente como permanentes, a enorme concentração de riqueza, a exclusão social crescente como bola de neve, a fragilidade de uma economia mundial interdependente que se assemelha a um grande jogo de azar. A busca de segurança em meio à prática do risco (como ilustra a imagem citada do operário sentado em uma viga no alto da construção, "dominando o mundo" de suas alturas) talvez sinalize, como um sentido "sintoma", que a segurança supõe, paradoxalmente, uma constante exposição ao risco, como exposição ao perigo de vida. A leitura do artigo de Mary Jane Spink, apesar de instigante, não nos deixa em posição confortável quanto ao futuro da cultura atual, quanto aos sentidos que está gerando, ao menos no que concerne à noção de risco e futuro.
FOUCAULT, M., 1966. Les Mots et les Choses - Une Archeologie de las Sciences Humaines. Paris: Gallimard.
WEBER, M., 1987. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 5a Ed. São Paulo: Pioneira.