Simone Monteiro, Elizabeth Moreira dos Santos | Debate sobre o artigo de Mary Jane P. Spink Debate on the paper by Mary Jane P. Spink |
Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. msimone@ioc.fiocruz.br Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. bmoreira@ensp.fiocruz.br
| Naturalização do risco: do molde à modulação? |
A estrutura híbrida do campo da saúde pública (saberes e práticas), as características de sua produção teórica e a importância da categoria risco na informação de sua vertente intervencionista, fazem deste debate um exercício de encantamento e razão. O jogo de desconstrução da argumentação para atá-la em novos níveis de abstração, recuperando fios e diferenciando dimensões e significados, dão o sentido de pertinência de nossa prática ao mundo contemporâneo. É daí que estamos falando, da prática intelectual, de um campo sem limites setoriais e da possibilidade de teorização sobre os usos de linguagem de uma noção que operacionaliza em instâncias coletivas (como no caso da gestão ambiental) e individual (como no caso da incorporação de comportamentos saudáveis). Nesse sentido, podemos dizer que o texto de Mary Jane Spink, Trópicos dos Discursos sobre Risco: Risco-Aventura como Metáfora na Modernidade Tardia é, sem dúvida, um ensaio instigante.
Tendo por base a descrição dos sentidos históricos do conceito de risco, a autora procura demonstrar que "a noção de risco, entendida na perspectiva da linguagem em uso, permite explorar as mudanças que vêm ocorrendo nas formas de controle social", interpretadas como a transição da sociedade disciplinar (característica da modernidade clássica) para a sociedade de risco (identificada na modernidade tardia). Fundamentada nesse ponto de vista, a autora tece considerações sobre as atuais formas de destradicionalização do risco e define o seu termo argumento, o risco aventura, para "enfatizar um deslocamento importante dos sentidos modernos do risco que recuperam a aventura como dimensão positivada da gestão de riscos". Teoricamente é a noção de repertório interpretativo (Potter & Wetherell, 1987) que fundamenta a análise das figuras de linguagem, que no texto explicitam os movimentos (síntese e reposicionamento) das mudanças de sentido observadas no uso de risco na linguagem, seja através de sua dimensão institucionalizada como discursos cristalizados, seja na perspectiva dinâmica do uso no contexto das práticas discursivas. Trata-se de uma forma específica de análise narrativa.
Uma transposição lógica do texto nos parece problemática. A imbricação nos usos de linguagem do risco (tomando por base de pesquisa os textos referidos pelo autora) com a análise. A historicidade do controle da incerteza em nível dos saberes, seja na forma da magia, religião ou ciência, aqui entendida em todo o seu conjunto de disciplinas, implica numa mediação entre a história de sua produção e o modo de produção em que eles se inscrevem. É necessário frisar que essa relativização metodológica não tem a ver com análises reducionistas, mas procura problematizar pelo menos duas questões de fundo: a metamorfose das relações sociais e a mudança da base produtiva industrial para a sociedade do conhecimento.
Como pontuado pela autora e discutido por Foucault (1977), o poder sobre a vida nas sociedades modernas se constitui em dois pólos interligados entre si por múltiplas redes de relações. O primeiro pólo se refere ao desvendamento e produção de discursos e práticas sobre o corpo humano, abordando-o enquanto máquina a ser otimizada, disciplinada em sua docilidade e produtividade. Esse pólo se organiza num conjunto de dispositivos disciplinares, que Foucault denomina anátomo-política do corpo. O segundo pólo, centrado em processos biológicos e sociais tais como reprodução, nascimento e morte, emerge de processos de controle aos quais Foucault denomina biopolítica das populações. É importante recuperar essas dimensões, uma vez que através delas o autor constrói a categoria dispositivo e o qualifica como disciplinar. Conforme discutido por Deleuze (1992), Foucault situou as sociedades disciplinares, contrapondo-as às sociedades de soberania, e sistematicamente sinalizou a brevidade daquele modelo.
Para Deleuze, as sociedades da modernidade tardia têm se transformado de sociedades disciplinares em sociedades de controle, em que o molde (veiculado pela fábrica, pela escola, pelo hospital) é substituído pela modulação. Em suas palavras: "uma moldagem auto deformante que mudasse a cada instante" (Deleuze, 1992:221) em que, por exemplo, a empresa (sem forma fixa, gás) substitui a fábrica (molde, corpo). O princípio modulador, diz o autor, se objetifica em controlatos (por exemplo o salário por mérito, a formação permanente) que, de forma complexa, se imbricam em geometria variável. Geometria esta imagética e virtual, como discutida por Virilio (1993). A vinculação discursiva risco e controle é inerente, mas se inscreve em esferas de análise diferentes, que só podem ser clarificadas tomando-se como base a sociedade do conhecimento, em que a informação é o produto principal de acumulação, modulador fundante dos processos de gestão da produção, hoje acontecimento sistêmico e simultâneo.
Ressaltamos, por fim, que as reflexões de Spink sobre as "novas modalidades de uso dos repertórios interpretativos sobre o risco" contribuem para o campo da saúde pública, na medida em que lançam luzes sobre as intervenções do controle de riscos, sejam eles como fatores de ordem individual ou coletiva, orientadas por escolhas racionais cuja lógica está informada pela economia material ou simbólica, centrada nas óticas do custo eficiência, ganho e perda etc. Cabe registrar que investigações no campo da saúde têm demonstrado que a percepção do risco de uma doença e a adoção de medidas preventivas não estão limitadas ao acesso a informações e à decisão individual; as mesmas decorrem de um processo dinâmico, construído a partir da experiência social e da visão de mundo dos sujeitos. Nessa perspectiva, estão conjugadas as representações das formas de vulnerabilidade à doença, assim como a percepção pessoal do risco e dos meios de controle do mesmo. As conexões entre a experiência social e as representações e práticas de risco (ou de proteção) devem ser entendidas à luz das mudanças nos sentidos de confiança e risco, promovidas pelas condições da modernidade (Giddens, 1991).
Pondera-se todavia, que algumas aproximações propostas no texto, por exemplo a transposição dos repertórios interpretativos acerca do risco, originários dos discursos sobre os indivíduos, para discursos referentes ao risco no plano coletivo são problemáticas. A utilização da análise narrativa é um instrumental pertinente à análise de discursos, entretanto, o texto em foco, no qual não são explicitados os exames parciais das fontes utilizadas, dificulta a lógica da argumentação. Nos parece assim, que a reflexão proposta necessita ampliar articulações entre categorias dos diferentes campos e saberes referidos, para que melhor subsidie a compreensão de representações e práticas em saúde coletiva.
DELEUZE, G., 1992. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34.
FOUCAULT, M., 1977. A Vontade do Saber. Rio de Janeiro: Graal.
GIDDENS, A., 1991. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Editora Unesp.
VIRILIO, P., 1993. O Espaço Crítico. Rio de Janeiro: Editora 34.