Mary Jane P. Spink


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Inicio esta réplica, pontuando a importância da seção Debate dos Cadernos de Saúde Pública pela oportunidade de troca de idéias entre especialistas e por propiciar o contexto necessário para que os leitores possam exercer plenamente sua criatividade reflexiva, pondo a dialogar perspectivas e interpretações diversas sobre um mesmo fenômeno. Sigo, agradecendo com muita sinceridade aos doze debatedores. Sei que a tarefa de discutir um texto que aborda tão diversas questões não é fácil e pode até ter sido concomitantemente instigante e irritante. Entendo também, que a inversão lingüística proposta - onde linguagem é ação, é prática social e não apenas elo condutor ou mediação de sentidos - pode ter causado estranheza para alguns. Ao mesmo tempo em que agradeço o empenho de todos, declaro minha dificuldade de fazer jus a tão instigante coleção de comentários. Foram tantas as questões levantadas que múltiplos são os caminhos para o debate: a tarefa de responder ou comentar torna-se assim problemática tendo em vista o espaço destinado à réplica.

Difícil também a tarefa pelas novas conotações que assume o texto que norteia o debate nesses tempos atuais. É quase inoportuno falar de risco-aventura diante do espetáculo recente de insegurança frente ao terror organizado. Como concluiu Madel Luz em sua cuidadosa revisão das questões centrais à linha de argumento do artigo, as novas práticas sociais e discursivas sobre o risco talvez estejam sinalizando para a incapacidade da sociedade atual de lidar com seus riscos mais evidentes: a dissolução das instituições sociais, a enorme concentração de riqueza nas mãos de poucos, a crescente exclusão social (no interior das nações, entre nações, entre blocos de nações) enfim, a fragilidade da economia mundial. É significativo, nessa perspectiva, que a temática da exclusão social, associada aos processos de transformação da sociedade disciplinar em sociedade de risco, tenha sido um elo comum a tantos comentários.

Buscando atentar para a diversidade de aspectos abordados pelos debatedores, retomo os objetivos e a linha de argumento do texto em discussão. Tratava-se, antes de tudo, de uma reflexão sobre os processos de sociabilidade na contemporaneidade, sendo risco tomado como um foco conveniente para pensar as transformações que vêm ocorrendo nas formas de governamentalidade. É pertinente, assim, o pedido de esclarecimento de Edinilsa Ramos da Silva sobre o uso da partícula na como elo de ligação, no título, entre risco como metáfora e modernidade. Pertinente até porque alguns debatedores entenderam que eu estava propondo risco como metáfora da modernidade. Usei a partícula na por entender que outras metáforas podem expressar aspectos distintos da contemporaneidade - isso que Luis David Castiel denominou de "nossos tempos labirínticos", caracterizado pela produção de novas e engenhosas tecnologias e correspondente aceleração das trocas econômicas, das estratégias de comunicação, da diluição de matrizes identitárias e pelo clima generalizado de ambigüidade quanto às perspectivas de sentido. Não se trata, portanto, de pensar risco-aventura como plot de uma meta-narrativa sobre a tardo-modernidade, como interpretou Maria Helena Cardoso. As meta-narrativas são pouco adequadas a esses tempos labirínticos.

Sendo o foco da reflexão as transformações nos processos de governamentalidade, a tese sustentada implica tanto na narrativa histórica (para falar da passagem da sociedade disciplinar para a de risco e o papel da noção risco nesse processo) como na busca de compreensão das possibilidades de produção de sentido sobre os riscos na vida cotidiana. Essa proposta, nomeada por José Ricardo Ayres, de "tese da transformação", traz em seu bojo, como aponta o autor, tanto a ruptura das "condições de validade no horizonte normativo da modernidade", como novas formas de sensibilidades sociais diante do que Ayres denominou de "meio-hostil" (a imponderabilidade dos riscos manufaturados). Pergunta ele se não se trataria de novas formas adaptativas no enquadre do "bom e velho darwinismo social". É possível que assim o seja para alguns neodarwinistas (Archer, 2001), mas não creio que o determinismo implicado nessa proposta seja adequado às vicissitudes dos processos de produção de sentidos em que se enquadra esta reflexão sobre o risco. Concordo, entretanto, com o autor - até por ser ela intrínseca aos processos exacerbados de individualização nessa modernidade tardia - que se trata sim de disciplina, embora de outro tipo. Concordo, ainda, que sendo menos visível (até porque vivida de forma mais solitária), mais difícil fica rebelar-se contra ela.

Nessa mesma direção procedem as observações feitas por Simone Monteiro & Elizabeth Moreira, a partir da leitura de Deleuze (1992), sobre a transformação da sociedade disciplinar em sociedade de controle, onde o molde é substituído pela modulação, sendo a informação o modulador fundante dos processos de gestão. É rica a observação e, se nesse enquadre, a informação é o modulador essencial dos processos de gestão, então o acesso à informação passa a ser aspecto central para entender não apenas os discursos contemporâneos sobre risco, mas também os novos processos de exclusão.

Ainda nessa direção, até porque pertinente à metáfora orientacional discutida por Luis David Castiel, vale a indagação da sustentabilidade da reflexão sobre risco-aventura no "lado debaixo" do Equador, preocupação verbalizada também por Edinilsa Ramos da Silva. Trata-se de questão que pede um debate mais aprofundado, impossível de ser feito no espaço destinado a esta réplica. Mas, muito sucintamente, sendo a circulação de repertórios interpretativos cada vez mais alicerçada na "ordem social da imagem mediática", tomando de empréstimo a expressão utilizada por Maria Helena Cardoso, seu potencial de sentido extrapola o espaço geograficamente pensado. Entretanto não deixa de ser, como propõe Castiel, "um ponto de vista acentuadamente marcado pelos signos do acesso aos mercados e da participação nos processos consumidores".

Retoma-se, dessa maneira, a temática da exclusão apontada por tantos dos comentaristas. Com certeza, concordando com Silvana Weller, os novos discursos do risco podem constituir uma nova modalidade de encobrimento das iniqüidades sociais já que, ao "equiparar lo inequiparable", encobre variações de opção dos diferentes grupos humanos. Nessa perspectiva, vale a pergunta colocada pela autora sobre as "futuras derivações do interjogo do risco-aventura e a realidade material de milhões de pessoas que hoje parecem simplesmente viver 'em perigo' ".

Ainda com relação ao acesso às mensagens mediáticas, vários debatedores apontam como problema que os sentidos do risco são sempre socialmente situados. Na perspectiva discursiva, os sentidos são certamente produzidos em contextos históricos e culturais por meio de processos de interanimação dialógica os quais fazem circular, no aqui-e-agora, repertórios de tempos históricos diversos, matizados pelas experiências do tempo vivido (Spink e Medrado, 1999). Essa relação entre posições de sujeito e sentidos do risco é objeto de pesquisa ora em andamento (Spink, 1999). Não era, porém, o foco da reflexão proposta no texto em debate. Assim, embora familiarizada com as teorizações de Thompson, Wildavsky e da própria Mary Douglas, também as atitudes frente ao risco decorrentes de diferentes projetos de modernidade - a oportunidade por mim perdida, segundo Carlos Machado - não constituíam foco da discussão travada no texto em debate. Diga-se de passagem, que a abordagem em questão, por seu teor estruturalista, dificilmente poderia ser compatibilizada com a perspectiva discursiva que busca na linguagem dos riscos as possibilidades de produção de sentidos, sempre fluídas e situadas nos micro-espaços de interanimação dialógica, e as posições de sujeito disponíveis na ótica dos processos de governamentalidade.

Embora a Saúde Pública - e mais especificamente os programas de prevenção à AIDS - constituíram o ponto de partida para as pesquisas que venho desenvolvendo desde 1997 sobre a temática risco e modernidade tardia, as possibilidades de ressignificação do risco nos trabalhos de educação em saúde não constituiram foco específico de reflexão do artigo em pauta. Para além das "cobranças" ou frustrações pela ausência de reflexão específica sobre essa temática, vários debatedores preencheram ou deram pistas de possíveis caminhos para aprofundamento da questão. A eles sou agradecida. Assim, Rita Barata, posicionando-se estritamente como uma "praticante da Epidemiologia", problematiza o texto a partir da contraposição da assepsia conceitual do risco epidemiológico com a "explosão polissêmica" do "deslizamento" da reflexão para a linguagem em uso no cotidiano. Sem disputar que os gêneros de fala de diferentes campos são distintos, pontuo apenas, que os valores adentram a linguagem pelo uso que se faz dela. Assim, a própria autora acaba por afirmar - em sua conclusão - que "a complexidade e os aspectos contraditórios inerentes à delimitação e cálculo dos riscos repercutem fortemente nas formas de percepção dos riscos pela população, e também nas possíveis propostas de gestão dos riscos seja pela comunidade de especialistas seja pelos próprios indivíduos".

Outras comentaristas buscaram levar suas reações ao texto para arenas diversas de atuação em Saúde Pública. Por exemplo, Maria Lucia da Silveira considerou que o texto permite avançar na compreensão dos motivos que determinam o paradoxo da "distância intransponível entre o saber e o fazer". Levando-o a passear pelas experiências do cotidiano, propõe uma profusão de perguntas dirigidas ao campo da Saúde Pública (ou assim o interpretei) mais do que especificamente a mim. Edinilsa Ramos de Souza faz um exercício reflexivo sobre risco e jovens vítimas de violência, refletindo sobre as diferenças entre assumir riscos como "atributo individual" e estar em risco como fruto da vulnerabilidade. Sandra Caponi, apoiada em Canguilhem, reflete sobre a dimensão da aventura na definição de saúde. Contrapondo riscos medicamente aceitáveis e formas corrompidas de risco, coloca a instigante questão da possível diluição de fronteiras entre riscos socialmente desejáveis e os que a Saúde Pública historicamente considera como "não aceitáveis", a partir do trabalho de redução de danos na AIDS.

Já Dora Lúcia de Oliveira, familiarizada com a literatura sobre risco e modernidade, identifica-se com a posição por mim assumida e alerta que as "teses sobre a diversidade semântica, sobre lógicas e racionalidades do risco (...) ainda são estranhas aos paradigmas da saúde pública". Anuncia possibilidades de incorporação desta linha de reflexão citando autores e pesquisas recentes - inclusive sua recente tese de doutorado.

Mesclam-se assim, interpretações diversas do texto em debate e seleção de diferentes aspectos, com reações mais pessimistas (quanto ao futuro, à exacerbação dos processos de exclusão, à forma que tomam os processos disciplinares na sociedade contemporânea) ou mais propositivas (como trabalhar com a positividade do risco na Saúde Pública) dependendo da ótica priorizada na discussão. Termino estas poucas considerações reafirmando a riqueza do exercício do debate para que, a despeito de quaisquer divergências teóricas, possamos "manter a conversação fluindo" (Rorty, 1979:370).

 

 

Referências

 

ARCHER, J., 2001. Evolution and behaviour. Psychologist, 14:414-419.

DELEUZE, G., 1992. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34.

RORTY, R., 1994. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

SPINK, M. J. P., 1999. Risco e Incerteza na Sociedade Contemporânea: Vivendo na Sociedade de Risco. Projeto Integrado. São Paulo: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. (mimeo.)

SPINK, M. J. P. & MEDRADO, B., 1999. Produção de sentido no cotidiano: Uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In: Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano: Aproximações Teóricas e Metodológicas (M. J. P. Spink, org.), pp. 41-61, São Paulo: Cortez Editora.

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