ARTIGO ARTICLE

 

Luciene Burlandy 1
Luiz Antonio dos Anjos 1,2

Acesso a vale-refeição e estado nutricional de adultos beneficiários do Programa de Alimentação do Trabalhador no Nordeste e Sudeste do Brasil, 1997

 

Access to food stamps and nutritional status of adults from Northeast and Southeast Brazil, 1997

 

1 Departamento de Nutrição Social, Universidade Federal Fluminense. Rua São Paulo 30, 4o Andar, Niterói, RJ 24040-115, Brasil. burlandy@uol.com.br
2 Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil.
anjos@ensp.fiocruz.br
 

Abstract Access by adults (³ 20 years of age) to the Workers' Food Program was investigated in a probabilistic sample of the Brazilian population living in the Northeast and Southeast regions. Only 19.9% (Northeast = 11.7% and Southeast = 24.9%) of the working population were beneficiaries of the Program. Receiving the benefit increased in direct proportion to income in both regions, but with a huge gap in the NE: 19.% of individuals in the 5th income quintile and only 3.6% in the 1st quintile were beneficiaries of the Program. Overweight (BMI ³ 25kg.m-2) was more prevalent (38.5%) than underweight (BMI < 18.5). Underweight was more prevalent in women (6.1%) than men (3.4%). More overweight than underweight individuals were beneficiaries of the Program (31.7 and 23.5%, respectively). These data indicate that the Program fails to provide food supplementation to the most needy workers in the two regions of Brazil, i.e., its original target population.
Key words Nutrition Programmes; Occupational Health Services; Nutritional Status; Adult Health

 

Resumo Analisou-se, a partir dos dados da Pesquisa sobre Padrões de Vida (PPV) inquérito de base domiciliar realizado em 1996/97, nas regiões Sudeste e Nordeste do Brasil, a distribuição do recebimento de vale-refeição/cesta básica e sua relação com o estado nutricional (índice de massa corporal - IMC) de adultos com idade ³ 20 anos. Do total da população ocupada, somente 19,9% recebia o benefício (24,9% no Sudeste e 11,7% no Nordeste) concentrando-se na área urbana (15,8% no Nordeste e 25,9% no Sudeste) e com aumento conforme a elevação da renda domiciliar per capita. Observou-se um quadro de sobrepeso (IMC ³ 25) importante (38,5%) particularmente no Sudeste e na área urbana (@ 41%). O baixo peso (IMC < 18,5) foi maior nas mulheres (6,1%) do que entre os homens (3,4%) e mais indivíduos com sobrepeso recebiam o benefício do que os com baixo peso (31,7 e 23,5%, respectivamente). Aparentemente, há uma inadequação entre as características do grupo alvo e o acesso a vale refeição (ou cesta básica) no Nordeste e Sudeste.
Palavras-chave Programas de Nutrição; Serviços de Saúde Ocupacional; Estado Nutricional; Saúde do Adulto

 

 

Introdução

 

Estratégias de formulação e implementação de uma política nacional de nutrição remontam à década de 40, quando, desde então, vêm sendo estabelecidos alguns eixos centrais de intervenção para o setor, como: a Suplementação Alimentar; a Racionalização do Processo de Produção e Comercialização de Alimentos Básicos e a Educação Alimentar. Dentre os grupos prioritariamente atendidos pelos programas de nutrição, ao longo das seis últimas décadas, destacam-se os trabalhadores. O objetivo das intervenções destinadas a este grupo alvo refere-se ao planejamento nutricional institucionalizado, através da oferta de refeições, visando atender aos desgastes do processo de trabalho e simultaneamente formar hábitos alimentares saudáveis (Valente, 1996; Vasconcelos, 1988). Essas ações vêm sendo implementadas fundamentalmente no âmbito do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) criado em 1976 e operacionalizado a partir de 1977, tendo como estratégia o subsídio por parte do governo e empregadores de 80% do preço final de pequenas (300kcal) e grandes refeições (1.400 kcal) para trabalhadores do setor formal (Silva, 1994). A oferta dessas refeições pode se dar através de restaurantes das próprias empresas, serviços de terceiros ou pela distribuição de cupons (vale-refeição) num esquema de refeições convênio, que possibilitam acesso a estabelecimentos credenciados, além do fornecimento de cestas de alimentos (IPEA, 1994; Valente, 1996). O valor monetário do vale-refeição deve possibilitar atender às exigências nutricionais estipuladas no programa e a empresa deve orientar seus trabalhadores quanto a melhor forma de utilização. O vale-refeição não pode ser utilizado para compra de gêneros alimentícios ou outros produtos, nem estar sujeito à cobrança de ágio pelos estabelecimentos comerciais credenciados (Mendonça, 1995). A opção pela modalidade de distribuição de cestas de alimentos se deu a partir do início da década de 90 (1991) e constitui na oferta de alimentos in natura, exclusivamente ou de forma complementar ao fornecimento de refeições. Em caso da cesta básica ser a única modalidade de oferta, ela deve atender integralmente aos valores energéticos preconizados pelo programa (Mendonça, 1995). A empresa também pode fornecer tíquetes que permitam ao funcionário adquirir os alimentos in natura em estabelecimentos comerciais (vale-alimentação).

Estimava-se na década de 80 que 40% das empresas participantes utilizavam serviços próprios (Filho & Carvalho, 1989). Em 1995, 55% das empresas utilizavam a modalidade convênio, sendo 44% refeição/alimentação convênio e 11% cestas básicas; 20% tinham serviço próprio e 25% sistema fornecedor (Silva, 1998).

Análises setoriais indicam que a operacionalização de programas de nutrição, principalmente os de suplementação alimentar, apresenta uma série de distorções que comprometem sua eficácia, como: o uso político, a descontinuidade, a cobertura reduzida frente à necessidade e à dissociação da prestação de serviços de saúde (Peliano, 1988). Os coeficientes de atendimento por regiões e por faixas de renda, expressam de igual modo uma situação pouco favorável dos programas em relação ao princípio da equidade (Peliano, 1990).

Esta situação também caracteriza o processo de implementação do PAT que apesar de voltar-se para a melhoria das condições nutricionais da classe trabalhadora, especialmente a de baixa renda, acaba concentrando seu atendimento nas regiões e estratos de maior renda (IPEA, 1994; L'Abbate,1989). Em 1991, foi introduzida a obrigatoriedade de atendimento a todos os trabalhadores com salários inferiores a cinco salários-mínimos. No entanto, parte destes trabalhadores está em empresas que não aderiram ao programa ou no mercado informal. No que se refere aos setores de atividades, a indústria é o que mais participa do programa (52%) o que explica a concentração da cobertura na Região Sudeste (IPEA, 1994).

Este quadro se deve em parte a própria dinâmica de operacionalização do programa, que se diferencia de iniciativas anteriores por não utilizar-se da estratégia de constituição de uma rede estatal de unidades de alimentação (como o antigo Serviço de Alimentação da Previdência Social - SAPS - extinto em 1967). Em contrapartida, o programa fortalece os vínculos entre trabalhador e empresa e portanto reforça uma seletividade regulada pelos contratos formais de trabalho, no lugar de uma relação direta entre o Estado e beneficiários (Torres Filho & Carvalho, 1989). Uma vez que a adesão ao programa é espontânea, boa parte das empresas, principalmente as pequenas, não se interessa no credenciamento por não considerar vantajoso o incentivo fiscal oferecido, que pode ser através de redução de imposto devido ou abatimento do custo das refeições, calculado pelo preço de referência do Ministério do Trabalho (Carvalho, 1991). Além disso, de forma geral, os programas que em sua operacionalização dispõem de forma mais expressiva de equipamentos institucionais tendem a uma seletividade iníqua, atingindo em menor grau os grupos sociais e regiões mais pobres (Lopes, 1995).

Apesar destas considerações, cabe destacar que para um trabalhador que ganhe um salário mínimo mensal, a complementação de renda que o PAT possibilita é da ordem de 50% (IPEA, 1994). Além disso, o programa apresentou expansão considerável em termos de número de trabalhadores beneficiados nas duas últimas décadas (Silva, 1998).

Uma avaliação de impacto do PAT na década de 80, indicou que as famílias dos beneficiados tinham maior ingestão protéica e energética, e o estado nutricional de seus menores de cinco anos era melhor do que o esperado para o nível de renda (Peliano, 1988). No entanto, constatou-se que 87% dos trabalhadores atendidos localizavam-se nos centros urbanos da regiões Sul e Sudeste que sozinhas concentravam 79% dos beneficiários do programa (Carvalho, 1991). A expansão maior se deu portanto nos centros industrializados, conforme esperado, dadas às especificidades operacionais do programa, que não apresenta atrativos para integração de pequenas e médias empresas (Carvalho, 1991; Silva, 1994).

Dados de 1992, indicam que apenas 33% do total de trabalhadores do setor formal da economia beneficiavam-se do programa (IPEA, 1994). Em 1993, verificou-se um crescimento de 10% no número de empresas filiadas e, segundo dados oficiais, a Região Sudeste continuou apresentando o maior índice de cobertura do programa (cerca de 70% dos trabalhadores beneficiados) contra 7% na Região Nordeste (Silva, 1998). Atualmente, estima-se que o programa atenda dez milhões de trabalhadores (MS, 1998).

No que se refere a adequação dos cardápios oferecidos face às exigências nutricionais, diferentes estudos de caso sobre o PAT indicam uma inadequação quanto ao fornecimento de energia e proteínas preconizadas (Freire & Salgado, 1998; Gambardella, 1990; Moura, 1986; Silva, 1998).

Ainda que decorram mais de duas décadas de implantação do PAT, estudos avaliativos de âmbito nacional, conjugando acesso a benefícios sociais e situação nutricional de adultos, são ainda escassos e carecem de atualização. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é identificar os beneficiários preferenciais deste programa, especificamente no que se refere à oferta de cestas básicas e vale refeição/alimentação, a partir dos dados da Pesquisa sobre Padrões de Vida (PPV) realizada pelo IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) nas regiões Sudeste e Nordeste, entre 1996 e 1997. A análise destina-se inicialmente, a uma abordagem comparativa do acesso por regiões e área (urbana/rural) além do diferencial por faixas de renda, visando identificar os segmentos populacionais prioritariamente atendidos. Num segundo momento essas informações são correlacionadas ao estado nutricional da população beneficiária, a partir dos dados antropométricos dos indivíduos entrevistados.

 

 

Materiais e métodos

 

Os dados aqui apresentados referem-se ao conjunto de adultos, com idade igual ou superior a vinte anos, avaliados na PPV, um inquérito populacional de base domiciliar realizado entre março de 1996 e março de 1997, nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil, em dez estratos geográficos, a saber: Região Metropolitana de Fortaleza, Região Metropolitana de Recife, Região Metropolitana de Salvador, restante da área urbana do Nordeste, restante da área rural do Nordeste, Região Metropolitana de Belo Horizonte, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Região Metropolitana de São Paulo, restante da área urbana do Sudeste e restante da área rural do Sudeste.

A amostra da pesquisa foi desenvolvida em dois estágios de seleção, com estratificação das unidades primárias (setor da base geográfica do Censo Demográfico de 1991), seleção proporcional a uma medida de tamanho e seleção aleatória das unidades de segundo estágio (domicílio). Para cada estrato geográfico, o tamanho da amostra foi fixado em 480 domicílios, sessenta setores e oito domicílios em cada setor. Excepcionalmente, para os estratos que correspondem ao restante da área rural de cada região fixou-se em trinta o número de setores, e em 16 o número de domicílios selecionados por setor, em função da dificuldade de acesso a esses setores (IBGE, 1998).

No total foram investigados 19.409 indivíduos em 4.940 domicílios das áreas urbana e rural, o que representa aproximadamente 70% da população nacional total, ou 103.640.611 pessoas. No Nordeste a amostra foi de 10.506 indivíduos, representando uma população de 42.012.225 (40,5%) e no Sudeste foram avaliadas 8.903 pessoas representando uma população de 61.628.386 (59,5%). Na faixa etária estudada (³ 20 anos) existiam informações de 11.255 indivíduos (5.272 homens e 5.983 mulheres) representando, quando os valores são expandidos para a população, 59.861.078 pessoas (28.406.048, ou 47,5% homens e 31.455.030, ou 52,5% mulheres).

As informações incluídas na presente avaliação foram obtidas diretamente dos microdados produzidos e disponibilizados pelo IBGE (1998) e são: a idade (calculada a partir da data de nascimento e de avaliação), o gênero, a posição na ocupação principal nos sete dias anteriores à resposta do questionário, o recebimento de vale-alimentação/refeição ou cesta básica nos trinta dias anteriores, a renda domiciliar per capita expressa em quintis de distribuição nacional, e as medidas antropométricas (peso e estatura). Uma vez que a PPV não diferencia dados de recebimento de vale-refeição dos de cesta básica, supõe-se que informações sobre recebimento em população não ocupada referem-se à cesta básica, cujo acesso, a princípio, não pode ser atribuído ao PAT, que destina-se apenas a trabalhadores ocupados.

A avaliação nutricional foi realizada calculando-se o índice de massa corporal (IMC) como a razão do peso em quilogramas pelo quadrado da estatura em metros (kg/m2). O diagnóstico nutricional foi realizado como sugerido pela Organização Mundial da Saúde - OMS (WHO, 1995), como: Baixo peso III - IMC < 16; Baixo peso II - 16 £ IMC < 17; Adequado - 18,5 £ IMC < 25; Sobrepeso I - 25 £ IMC < 30; Sobrepeso II - 30 £ IMC < 40; e Sobrepeso III - IMC ³ 40.

Os resultados para as informações presentes nos microdados para a subpopulação em estudo, foram obtidos com o fator de expansão calculado para a pesquisa, utilizando-se a opção WEIGHT no procedimento FREQ do pacote estatístico SAS (SAS, 1988). Não havia informações sobre renda e antropometria para 705 e 1.082 indivíduos, respectivamente, fazendo com que o cruzamento dessas informações com o recebimento do vale-refeição/cesta básica resultasse num número menor de pessoas. Assim, a estimativa expandida nesses cruzamentos de variáveis foi incluída nas tabelas.

 

 

Resultados

 

Do total de adultos com idade maior ou igual a vinte anos, 36.756.866 (61,4%) tinham ocupação (Tabela 1), freqüência bem maior para homens do que para mulheres (80,1 e 44,2%, respectivamente) e também maior para a Região Nordeste (66,7%) e para a área Rural (69%). Dos indivíduos ocupados, a maior parte era de empregados seguido de trabalhadores por conta própria.

 

 

O percentual da população ocupada que recebia vale-refeição (ou cesta básica) foi de 19,9% (Tabela 2) sendo maior na Região Sudeste (24,9%) do que na Região Nordeste (11,7%) e principalmente na área urbana das duas regiões (15,8% no Nordeste e 25,9% no Sudeste). Da população não ocupada, 3,6% recebiam o benefício, destacando-se que a área rural da Região Sudeste apresentou o maior percentual (5,3%). De toda a população, 13,6% recebiam o benefício.

 

 

O percentual de recebimento de vale-refeição cresceu conforme o aumento da renda (Tabela 3) em ambas as regiões, porém com um gradiente bastante expressivo no Nordeste. No total, 20,8% dos indivíduos com a maior renda recebiam o benefício, sendo que o diferencial regional é expressivo, principalmente quando compara-se os três primeiros quintis de renda das duas regiões, por exemplo, no primeiro quintil de renda mais de três vezes da população ocupada do Sudeste recebiam o benefício em relação à do Nordeste (12,3 e 3,6%, respectivamente).

 

 

A avaliação nutricional indicou um quadro de sobrepeso importante (38,5% de toda a população apresentou algum grau de sobrepeso, Tabela 4) particularmente na Região Sudeste (41,0%) e na área urbana (41,1%; dados não apresentados). O baixo peso (somatório dos três níveis de baixo peso) foi maior entre as mulheres (6,1%) do que entre os homens (3,4%). De igual modo, a Região Nordeste apresentou os percentuais mais elevados de baixo peso, totalizando 6,1% quando somados os três níveis, enquanto que na Região Sudeste este valor foi de 4,2%.

 

 

Com relação a recebimento de vale-refeição (ou cesta básica) mais indivíduos com sobrepeso, que teoricamente não necessitariam do benefício, receberam tal auxílio do que os com baixo peso (31,7 e 23,5%, respectivamente). O recebimento do benefício foi semelhante para os indivíduos com baixo peso em ambas as regiões (Nordeste = 23,6% e Sudeste = 22,8%) mas bastante diferenciado para os com sobrepeso (Nordeste = 16,8 e Sudeste = 38,4%).

 

 

Discussão

 

A análise da oferta de vale refeição e cesta básica, a partir dos dados da PPV, indica que a cobertura deste benefício é menor do que estimado oficialmente, visto que apenas 19,9% do total da população adulta (³ 20 anos de idade) ocupada referiu receber o auxílio, além do recebimento ser muito variado, dependendo: da região do país, da área rural ou urbana, do gênero e do quintil de renda. De fato, a cobertura é duas vezes maior no Sudeste (24,9%) do que no Nordeste (11,7%) tanto para a população ocupada como para a que não declarou ocupação (4,4 e 1,9%, respectivamente, Tabela 2) apesar do maior grau de pobreza no Nordeste e maior prevalência de sobrepeso no Sudeste. O diferencial regional permanece sendo mais expressivo do que o urbano/rural, uma vez que no Sudeste rural (17,0%) o acesso é maior que no Nordeste urbano (15,8%).

Segundo avaliação governamental, a focalização do PAT nas faixas de renda mais baixa vem sendo atingida, uma vez que 77% dos beneficiados encontram-se na faixa de renda de até seis salários mínimos (IPEA, 1994). No entanto, uma questão sempre controversa em relação ao programa é a concessão do benefício independente da faixa salarial, uma vez que segundo o próprio Ministério do Trabalho, no início da década de 80, 28% dos trabalhadores beneficiados recebiam menos de dois salários mínimos (que correspondia então ao nível máximo de renda permitida para inserção de famílias em programas de suplementação alimentar) e 29% acima de cinco salários mínimos (Torres Filho & Carvalho, 1989; Peliano, 1988). Sendo assim, a situação não se modificou significativamente, considerando que, numa outra ótica de análise dos mesmos números, percebe-se que, na década de 80, 70% dos beneficiários recebiam acima de dois salários mínimos, indicando que a faixa salarial mais carente não é a principal beneficiária.

Em relação à focalização nos grupos mais economicamente vulneráveis, os dados da PPV indicam uma inadequação, considerando que a cobertura dos benefícios é diretamente proporcional à renda em ambas as regiões do país, ou seja, a população situada nos quintis de renda mais alta tem maior acesso ao recebimento de vales refeição e de cestas básicas. O contraste regional, neste caso, é dramático, visto que no primeiro quintil de renda domiciliar, três vezes mais indivíduos do Sudeste (12,3%) recebem o benefício comparativamente aos do Nordeste (3,6%) do mesmo quintil de renda (Tabela 3). Na verdade, os indivíduos avaliados no Sudeste declararam receber mais o benefício do que os do Nordeste para qualquer faixa de renda. Neste sentido, esses dados permitem questionar as avaliações feitas pelo Governo Federal sobre a focalização do PAT, citadas anteriormente, que afirmam haver um direcionamento adequado do programa para as classes de renda mais baixa (IPEA, 1994).

A correlação com o estado nutricional reitera a inadequação do processo de focalização no que se refere à vulnerabilidade biológica, uma vez que a menor proporção de acesso ao benefício ocorreu justamente nas localidades que concentram os percentuais mais elevados de desnutrição (Região Nordeste e área rural). Há de se mencionar que, apesar dos percentuais de recebimento do benefício serem bastante semelhantes entre os indivíduos com baixo peso do Nordeste (23,6%) e Sudeste (22,8%) esses valores são inferiores aos dos indivíduos com sobrepeso no Sudeste (38,4%, Tabela 4).

Considerando os objetivos definidos pelo PAT, tanto a questão do desgaste físico, psíquico e social, advindos de mudanças nos processos de trabalho e em suas formas de regulamentação, quanto os fatores relacionados à constituição de hábitos de vida em geral, assumem uma enorme complexidade na atual conjuntura. O desempenho dos programas sociais, para além de características relacionadas à dinâmica intrínseca do planejamento e gestão, vem sendo fortemente limitado pela diferenciação crescente de situações de risco em saúde. Apesar da limitação de dados em alguns aspectos para a população brasileira, especula-se que tenha havido transformações significativas no padrão de vida e consumo com tendência a comportamentos de risco, representado por redução na atividade física, diminuição do tempo destinado ao lazer e modificações de hábitos alimentares, que potencializam as chances de incidência de problemas como obesidade, doenças cárdio-vasculares e outros (Monteiro et al., 1995). A coexistência de um perfil de morbidade relacionado a questões comportamentais, com patologias associadas ao subdesenvolvimento social e diferenciação crescente dos processos produtivos, torna o quadro nutricional e sanitário da população brasileira extremamente complexo, particularmente nas camadas de mais baixa renda. Essa condição desafia o campo das políticas públicas, tanto por repercussões no processo de definição de beneficiários para os programas, que em alguns casos ainda utilizam apenas a renda como critério seletivo, quanto pelas dificuldades na adequação entre as intervenções propostas e o perfil sanitário/nutricional dos grupos alvo.

Considerando os programas de suplementação alimentar para adultos, por vezes voltados para o atendimento da família, a convivência de quadros de desnutrição e obesidade no mesmo grupo familiar indica os enormes desafios em termos de identificação e intervenção em fatores determinantes específicos (Solymos, 1997). Neste sentido corre-se o risco de tratar de forma homogênea um determinado grupo alvo, enquanto na realidade as situações sociais e de saúde são extremamente heterogêneas.

Análises de inquéritos de âmbito Nacional nas três últimas décadas têm documentado as transformações do quadro nutricional e de saúde da população, bem como o acesso aos programas. Uma análise comparativa de dois inquéritos de âmbito nacional (o Estudo Nacional de Despesas Familiares - ENDEF - realizado em 1974/1975 e a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição - PNSN - realizada em 1989) indica, por um lado, declínio significativo na proporção de adultos com déficit energético, em todas as regiões do país e nos distintos estratos populacionais - urbano rural e, por outro, um aumento importante na proporção de adultos obesos e com sobrepeso, observado em todos os estratos econômicos e em ambos os sexos, mas tendendo a ser mais significativo em mulheres pertencentes a classes de renda mais baixas (Monteiro et al., 1995).

A tendência secular das alterações da dieta é diferente dependendo da região do país (Monteiro et al., 2000): no Norte/Nordeste parece haver um aumento do consumo de lipídeos e no centro-sul do país houve declínio no consumo de ovos e recuo discreto da elevada proporção da energia lipídica, na comparação entre as duas últimas Pesquisas sobre Orçamentos Familiares. Quanto à atividade física, os dados são ainda mais escassos (Anjos, 1999). Uma análise preliminar da tendência da atividade física ocupacional nas últimas décadas, não conseguiu explicar o acentuado aumento na prevalência de sobrepeso na população adulta com ocupação declarada entre 1975 e 1989 (Anjos & Vasconcellos, 1998). Na PPV, somente 20% de toda a população relatou realizar alguma atividade física no lazer (Anjos, 2000), valor que se reduz para aproximadamente 15% para a população com idade ³ 20 anos.

A compreensão dos fatores determinantes deste quadro nutricional merece análise aprofundada, considerando que para além de um processo de transição, que sugere uma passagem linear de uma situação para outra, as condições de nutrição e saúde da população brasileira indicam a co-existência de padrões distintos. A prevalência de déficit energético crônico, parece configurar uma distribuição concentrada em adultos do sexo masculino, residentes nas regiões rurais do Nordeste e Sudeste e pertencentes às classes de renda mais baixa, nas áreas rurais do centro oeste e urbanas do Nordeste (Monteiro et al., 1995). Sendo assim, os dados avaliados da PPV parecem indicar que o acesso a vale refeição (ou cesta básica) caminha no sentido contrário da demanda e dos grupos alvo prioritários.

A análise apresentada sugere que propostas de reorientação do programa devam garantir sua extensão ao trabalhador rural, aos trabalhadores do setor informal e àqueles vinculados ao seguro desemprego, além da divulgação e apoio a pequenas e médias empresas no sentido de facilitar sua adesão ao programa. De igual modo, o estímulo ao desenvolvimento por parte das empresas de ações educativas de promoção à saúde é um objetivo a ser perseguido. Essas questões vêm sendo abordadas no âmbito da Comissão tripartite do PAT (composta por representantes do governo, trabalhadores e empresas) que destaca a importância de implantação de um programa permanente de Educação Alimentar, proposto pelo Ministério do Trabalho (Ata da 1a Reunião Ordinária da Comissão Tripartite do PAT, no ano de 2000 - 08 de fevereiro de 2000).

Também a atual Política Nacional de Alimentação e Nutrição, formulada pelo Ministério da Saúde, prevê no âmbito das estratégias de articulação intersetorial, o desenvolvimento, junto ao Ministério do Trabalho e Emprego, de estratégias de: avaliação das condições nutricionais dos trabalhadores frente ao PAT e sua relação com a redução dos acidentes de trabalho; acompanhamento e a orientação dos agentes envolvidos (empresas beneficiárias, trabalhadores e empresas fornecedoras e ou prestadoras de serviços de alimentação), expansão do benefício para as regiões mais carentes e para a população trabalhadora de mais baixa renda e identificação das repercussões do PAT sobre a atividade econômica, geração de emprego e de renda, e o crescimento da demanda de produtos agropecuários (MS, 1998).

 

 

Referências

 

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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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