OPINIÃO OPINION
Luiz Jacintho da Silva 1,2 | Guerra biológica, bioterrorismo e saúde pública
Biological warfare, bioterrorism and public health
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1 Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Cidade Universitária Zeferino Vaz, Campinas, SP 13083-970, Brasil. 2 Superintendência de Controle de Endemias, Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo. Rua Paula Souza 166, São Paulo, SP 01027-000, Brasil. ljsilva@sucen.sp.gov.br | Abstract Biological agents as weapons are not new to mankind. For centuries and into the present, biological warfare has been the subject of much research and speculation, but little action. Their limited use has probably been due to fear of unexpected counter-effects and doubts about their efficiency as weapons. Recently a new form of terrorism employing infectious agents has emerged slowly and without much fanfare, until the recent events with Bacillus anthracis in the United States. Smallpox is potentially the most devastating of these agents. Less than 25 years after the eradication of smallpox, the public health field is now forced to deal with the possibility of its re-introduction. The author discusses the scenario of smallpox re-introduction into Brazil.
Resumo O uso de agentes biológicos como arma não é novidade para a humanidade. Durante séculos, até a atualidade, a guerra biológica tem sido objeto de muita pesquisa e especulação, mas de pouca ação. O medo de efeitos contrários e dúvidas sobre sua eficiência como armas devem ter limitado seu uso. Recentemente, se verificou uma nova forma de terrorismo, empregando agentes infecciosos, devagar e sem muito alarde, até as ocorrências recentes com o Bacillus anthracis nos Estados Unidos. A varíola é possivelmente o mais devastador desses agentes. Menos de 25 anos passados desde sua erradicação, a saúde pública tem que lidar com a possibilidade de sua re-introdução. O cenário da re-introdução da varíola no Brasil é discutido. |
"Tempora mutantur, nos et mutamur in illisI" (Os tempos mudam, e nós mudamos com eles), John Owen [1564?-1622?], Epigrammata, 1615.
O uso de agentes infecciosos como arma não é novidade. Das dez pragas do Egito, infligidas por Deus para castigar o faraó, a quinta e a sexta teriam sido antraz (Marr & Malloy, 1996).
De uma maneira aparentemente inesperada, a saúde pública passa a se ver envolvida com um assunto antes de interesse apenas de militares e autores de novelas de espionagem. O emprego de agentes infecciosos como estratégia terrorista data de alguns anos, os acontecimentos recentes, do emprego de esporos do Bacillus anthracis como arma, foram previstos e anunciados (Anonymous, 2000; Fauci, 2001).
Antecedentes históricos
Consta que o homem de Neanderthal teria colocado fezes de animais nas flechas para aumentar seu poder letal, e que legionários romanos contaminavam os poços de seus inimigos com carcaças de animais. Em 1346, os tártaros lançavam cadáveres de pessoas mortas por peste para dentro dos muros da cidade sitiada de Caffa. Em 1763, o exército britânico na América, em guerra com os franceses, mandou cobertores e lenços previamente utilizados num hospital para pacientes com varíola para os índios Delaware, aliados dos franceses (Christopher et al., 1997).
No século XX, a guerra biológica ganhou foros de ciência. Durante a I Guerra Mundial, os alemães desenvolveram e empregaram diversas armas biológicas, mas o impacto dessas não é conhecido (Christopher et al., 1997).
Mais recentemente, durante a II Guerra Mundial, tanto os exércitos aliados como os do Eixo, empreenderam pesquisas com o intuito de desenvolver armas biológicas. Até onde é possível saber, apenas os japoneses, durante a ocupação da China, teriam empregado armas biológicas em maior extensão (Christopher et al., 1997, Osterholm, 2001).
Na segunda metade do século XX, durante a guerra fria, os Estados Unidos e a então União Soviética, sem dúvida se valendo da experiência acumulada de japoneses e alemães, implantaram projetos para o desenvolvimento de armas biológicas, da mesma maneira que o Canadá e o Reino Unido. Em 1972, o tratado sobre armas biológicas e tóxicas foi assinado e ratificado por diversos países, mas não todos. Apesar da existência do tratado, pelo menos dez países teriam mantido e expandido seus programas de desenvolvimento de armas biológicas (Lancet, 2001; Osterholm, 2001).
Armas biológicas, ameaça real ou fantasiosa?
Armas biológicas são artefatos de controle difícil e de potencial destrutivo desconhecido. Nunca houve um emprego em larga escala dessas armas, salvo talvez pelo exército japonês na Manchuria, e a possibilidade do feitiço virar contra o feiticeiro era, e é, um risco real. Somente em anos recentes é que a biotecnologia veio trazer instrumentos mais precisos para a elaboração de armas biológicas (Anonymous, 2000; Fauci, 2001).
Alemães e soviéticos teriam desenvolvido cepas de Francisella tularensis, agente causador da tularemia, doença muito semelhante à peste bubônica, resistentes a praticamente todos os antimicrobianos existentes (Osterholm, 2001). Que os soviéticos teriam chegado a um grau avançado de desenvolvimento de armas biológicas, ficou evidente depois da revelação de detalhes do acidente de Sverdlovsk, em 1979 (Meselson et al., 1994). Por um motivo qualquer, houve a dispersão acidental de uma quantidade desconhecida de esporos do B. anthracis. Inúmeros casos e óbitos por antraz em humanos e em animais foram detectados, os humanos tanto da forma inalatória como da digestiva. Esse episódio sugere que os soviéticos teriam conseguido uma forma eficiente para disseminar os esporos do B. anthracis por via aérea. Um livro (Biohazard) escrito por um ex-diretor adjunto do programa de armas biológicas da União Soviética, Kanatjan Alibekov, e publicado no Ocidente, revelou que a União Soviética estava preparada para lançar um ataque biológico com o vírus da varíola sobre os Estados Unidos, no caso de uma guerra nuclear (Woodall, 1999).
Há evidências do uso de armas biológicas, ainda que limitado, por grupos fanáticos já desde 1984. No Estado do Oregon, Estdos Unidos, membros de um grupo religioso, seguidores de Bhagwan Shree Rajneesh contaminaram, intencionalmente, saladas expostas em buffets de diferentes restaurantes de uma cidade, causando 751 casos de gastroenterite por Salmonella enterica, serovar Typhimurium (Torok et al., 1997).
O grupo ultranacionalista japonês, Aum Shinrikyo, autor do ataque com gás Sarin no metrô de Tóquio, já havia empregado esporos do B. anthracis, mas sem causar vítimas (Osterholm, 2001).
O bioterrorismo é, portanto, uma realidade. Ataques mais graves possivelmente não teriam acontecido pela dificuldade ou mesmo incapacidade de disseminar de maneira eficiente os agentes infecciosos, sem dúvida o aspecto mais complexo no desenvolvimento das armas biológicas (Osterholm, 2001).
Bases clínicas e biológicas das armas biológicas
Em tese, praticamente qualquer agente biológico pode ser usado como arma. O B. anthracis, o vírus da varíola, a Yersinia pestis e a toxina do Clostridium botulinum podem ser considerados os "clássicos" das armas biológicas. Desses, dois já foram sérios problemas de saúde pública, o vírus da varíola e a Y. pestis (Anonymous, 2000; Osterholm, 2001).
A Y. pestis se prestaria para ser usada como arma biológica por sua capacidade de transmissão inter-humana na forma pulmonar. Epidemias de peste pulmonar foram poucas, mas ocorreram e apresentam uma alta letalidade. Ainda que exista uma vacina contra a peste, esta é de eficácia limitada, sendo seu uso em massa impraticável (Silva, 2000b). A possibilidade de existirem cepas de Y. pestis, modificadas geneticamente para serem resistentes aos antibióticos não é uma paranóia, cepas resistentes já foram encontradas na natureza num surto em Madagascar (Guiyoule et al., 2001).
O vírus da varíola talvez seja o mais preocupante dos agentes potencialmente utilizáveis como arma biológica (Jahrling et al., 2000). Causador de epidemias devastadoras até época recente, seu desaparecimento não se deu de forma natural, mas por força de uma campanha mundial de erradicação através da vacinação, a primeira doença a ser erradicada por ação humana deliberada. O último caso de varíola se deu em 1977 (Barquet & Domingo, 1997), mas ainda houve um último caso documentado em 1978, em Birmingham, na Inglaterra, resultado de um acidente de laboratório, em que houve disseminação do vírus num centro de pesquisa (Barquet & Domingo, 1997; Jahrling et al., 2000).
A varíola como arma biológica: implicações para a saúde pública
A disponibilidade do vírus é desconhecida. Supostamente, somente os Estados Unidos e a Rússia teriam ainda vírus estocado. Pouco depois da erradicação da varíola, a Assembléia da Organização Mundial da Saúde determinou a destruição dos estoques existentes de vírus. Todos os países teriam concordado e destruído seus estoques, com exceção dos Estados Unidos e da então União Soviética. A decisão de destruir esses dois estoques restantes tem sido adiada, a última data proposta é 2002. Não se sabe se alíquotas de vírus teriam sido desviadas para laboratórios de outros países com programas de armas biológicas, como o Iraque (Barquet & Domingo, 1997; Jahrling et al., 2000; Silva, 2000a).
A vacinação contra a varíola foi interrompida no início da década de 80, ainda que em alguns países da América do Norte e da Europa Ocidental isso tenha ocorrido alguns anos antes. A re-introdução da varíola determinaria um número elevado de casos, uma vez que mais de 40% da população mundial nunca foi vacinada e o restante deve ter imunidade declinante (Anonymous, 1999; Barquet & Domingo, 1997; Jahrling et al., 2000; Silva, 2000a).
A letalidade da varíola é de cerca de 30%. É uma doença altamente contagiosa; se o vírus for veiculado no aeroporto de uma grande cidade, não só haveria um elevado número de casos, mas esses seriam dispersados por praticamente todo o mundo, lembrando que o período de incubação da varíola varia de 7 a 17 dias, geralmente de 12 a 14 (Anonymous, 1999; Barquet & Domingo, 1997; Jahrling et al., 2000; Silva, 2000a). Em 1972, um peregrino retornou de Meca para a então Iugoslávia, com febre. Nas quatro semanas seguintes ao seu retorno, 150 pessoas adoeceram em diversos lugares. Foi esse o tempo necessário para se chegar, finalmente, ao diagnóstico de varíola (Anonymous, 1999).
O ressurgimento da varíola no Brasil. Cenários possíveis
A natureza imprevisível do terrorismo não permite que país nenhum se escuse de considerar a possibilidade de ser ele o alvo, intencional ou não, de um ataque com arma biológica (Anonymous, 2000, 2001; Osterholm, 2001).
Difícil prever as conseqüências da re-introdução da varíola no Brasil. É razoável aceitar que mais provavelmente se daria num grande centro urbano do Sudeste, possivelmente São Paulo ou Rio de Janeiro. Um cenário plausível seria o da chegada de um ou mais indivíduos infectados no decorrer de um ato de bioterrorismo num aeroporto norte-americano ou europeu ocidental.
Mesmo um único paciente, infectado em outro país e chegando ao Brasil no período de incubação, teria a possibilidade de transmitir a doença a um número elevado de pessoas, a exemplo do que ocorreu na Iugoslávia em 1972 [vide acima] (Anonymous, 1999). Se esse paciente for um terrorista que tenha sido infectado deliberadamente para se transformar num agente disseminador de varíola, o número de pessoas que poderiam se infectar a partir dele passa a ser muito maior.
O controle da varíola é feito através da vacinação, não há tratamento eficaz. O Brasil não dispõe de estoque estratégico de vacinas. A produção da vacina era nacional, o que pressupõe a possibilidade da sua retomada, uma medida a ser tomada independentemente da ocorrência de caso ou casos. O custo da vacina não é elevado. Sem dúvida deverá se optar pela vacina antiga, com produção do vírus em bezerros. Essa vacina oferece uma boa proteção, mas não podemos esquecer que a varíola anteriormente existente no Brasil, era a varíola minor, ou alastrim, com letalidade baixa, de 1%, comparada com 30% na varíola major. O uso da varíola como arma biológica sem dúvida deve ser com a varíola major.
A vacina da varíola apresenta um alta incidência de efeitos colaterais, sendo estimada uma letalidade de um óbito para cada um milhão de pessoas vacinadas, isso numa época de poucos indivíduos imunocomprometidos. Essa relativamente alta incidência de eventos adversos é o principal aspecto que contra-indica a estratégia de vacinação em massa. Além disso, há a dificuldade operacional de vacinar um grande número de pessoas num espaço curto de tempo, principalmente desde que os injetores de pressão foram considerados de risco para transmissão de vírus como o da hepatite C, AIDS e hepatite B. A vacinação de pessoal de maior risco, como funcionários de aeroportos e hospitais, além de bombeiros e policiais, estaria na dependência da magnitude e continuidade do risco, isto é, a possibilidade de número maior de casos-índice.
Algumas medidas seriam razoáveis para serem adotadas a priori: a obtenção de um estoque estratégico de vacinas contra a varíola e o aprimoramento dos sistemas de vigilância epidemiológica para fazer frente a um novo tipo de ameaça de introdução de uma doença.
A vacinação de bloqueio foi a tática mais eficiente da campanha de erradicação, sem dúvida deverá ser empregada no caso da re-introdução da varíola. Para tanto, há necessidade de recursos humanos adequadamente treinados, a geração que conduziu a campanha de erradicação já está, em sua maioria, aposentada.
A saúde pública se vê agora com uma incumbência adicional: neutralizar ou minimizar as conseqüências de atos de bioterrorismo, uma incumbência que lhe é, até certo ponto, estranha. Implica o envolvimento com ações policiais, agregando a criminalística à epidemiologia.
Nessa nova perspectiva da saúde pública, o impensável se tornou realidade, e não existe quem tenha experiência anterior. Um inevitável período de aprendizado ocorrerá, cabe empreender esforços para que seja curto e com o menor número de conseqüências desagradáveis.
Referências
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