NOTA RESEARCH NOTE
Teresa Cristina Mendonça 1 | Mutilação dentária: concepções de trabalhadores rurais sobre a responsabilidade pela perda dentária
Dental mutilation: rural workers' concepts of responsibility for tooth loss
|
1 Loteamento Recreio de Ipitanga, Quadra 24, Lote 11-A, Lauro de Freitas, BA 42700-000, Brasil. teresacristinam@hotmail.com | Abstract Brazilian oral hygiene institutions have promoted tooth extraction as a dental health practice. This article investigates the issue of dental loss within a rural drought area in the State of Bahia. Based on verbal information provided by local inhabitants, the author investigates dental extraction as perceived by the community, i.e., as a commonplace fact. The main goal is to analyze both representations of the oral cavity based on individual experiences and their associations with oral care practices, derived from the social reality in which they are immersed. The author considers the issues of both individual responsibility and that of government agencies and dentists.
Resumo O desdentamento no Brasil é uma prática instituída pelas instâncias de Saúde Bucal como cuidado sanitário. Este artigo apresenta a questão da perda de dentes, investigada em uma área rural de um município da Bahia, localizado no polígono das secas. A autora examina o desdentamento como fato corriqueiro entre os membros desse segmento rural, apoiada no discurso como elemento básico de informação. Seu objetivo principal é analisar as representações sobre a boca, reveladas a partir das experiências individuais, assim como as associações feitas pelos atores sobre práticas corporais (bucais), decorrentes da realidade social onde eles se encontram imersos, sendo a partir daí colocada a responsabilidade individual da perda dentária, assim como a do Estado e a dos praticantes da Odontologia. |
Introdução
A perda de dentes (mutilação dentária/desdentamento) é tida como temática de relevância avaliada pela saúde pública, haja vista que é considerada como uma decorrência das doenças bucais mais prevalentes. Um enfoque que chama a atenção pela abordagem numérica (edentulismo ou ausência total de dentes), onde investigações sob o paradigma biologicista, apontam a cárie dentária e a doença periodontal como determinantes na elevada incidência de mutilação dentária, e pela diversidade de rótulos acerca do desdentamento no Brasil, sem entretanto fazer qualquer atribuição à ausência de políticas públicas em saúde bucal.
São muitas as evidências de uma Odontologia que, também, transfere responsabilidades, quando o assunto é mutilação de dentes. A primeira delas remonta a era das extrações e um passado distante, onde a Odontologia encontrava-se "em estágio radical, devotado ao alívio das dores"; a segunda diz respeito à sua concepção biológica da doença bucal; e a terceira que entende motivação do indivíduo como estratégia de cuidado. Quanto a este aspecto, a semântica odontológica é ricamente esclarecedora, notadamente quando o assunto é a redução e a eliminação da doença bucal. Raciocínio perante o qual seus representantes (odontólogos e pára-odontólogos) apontam como cuidados básicos e preventivos, a escovação correta, três vezes ao dia, a periodicidade de visita ao dentista e a abolição ou diminuição do consumo de açúcar; resultando dessa abordagem biologicista da saúde bucal, a responsabilidade atribuída exclusivamente ao sujeito.
Responsabilidade, pressupõe obrigação de responder pelos próprios atos ou pelos de outrem (Ferreira, 1982). A questão da responsabilidade sobre a perda dental, chama a atenção para o seu exame sob a ótica da sujeição do homem ao que lhe é "dado" como forma de cuidado de saúde. Um direcionamento dado a esta pesquisa, com o intuito de identificar a noção de norma (Canguilhem, 1982), em relação à extração de dentes como prática de saúde bucal.
Esta investigação tem como pressuposto que a responsabilidade da perda dentária não é cultural, pois o cidadão usuário ao procurar as instâncias de saúde bucal, creditam nelas o restabelecimento de um estado de saúde.
Material e métodos
A pesquisa foi realizada no Município de Pintadas, na Bahia, a 255km de Salvador, inserido na parte semi-árida do Nordeste do Brasil. Pintadas é uma sociedade de base camponesa que tem 10.130 habitantes.
Esta pesquisa foi desenvolvida no período de janeiro de 1997 a junho de 1998, e considerou as representações sociais para o seu esquema analítico sobre a responsabilidade da perda dentária. Foram utilizados métodos qualitativos, combinando a abordagem de observação e participação (Léssard-Hérbert, 1990). Fez parte do processo de coleta de dados a utilização da entrevista semi-estruturada. Os entrevistados, selecionados aleatoriamente, foram categorizados quanto à perda dental, sexo e faixa etária, tendo sido classificados como desdentado parcial e total.
Resultados e discussão
Os entrevistados, moradores de bairros rurais, trabalhavam em atividades diversas no bairro rural ou na sede do município (zona rural). Dos oito homens entrevistados, dois não tinham escolaridade, a faixa etária variou entre 29 a 73 anos, dentre eles um era desdentado total e sete desdentados parciais. Entre as 12 mulheres, apenas uma não tinha iniciação escolar, a faixa etária variou de 23 a 60 anos e entre elas cinco eram desdentadas totais e oito desdentadas parciais. Nos registros feitos quanto às razões do desdentamento, os resultados apresentados para o total de entrevistados, apontaram a responsabilidade civil, que aparece na forma de responsabilidade subjetiva, atribuída aos prestadores de serviços sanitários, visualizadas através das representações que o mutilado dentário elabora em relação à prática do cirurgião dentista e do dentista prático, e ainda a iatrogênica, apontada como uma responsabilidade objetiva.
A linguagem dos entrevistados sobre a razão do desdentamento, aparece em palavras articuladas sobre o "sujeito" que responde pelo ato. Outras falas reproduzem a consciência de si como responsável, contextualizadas na interpretação individual sobre "falta de trato", "facilidade" e "cuidado". Outras vezes, atribuem ao outro o resultado da prática social cristalizada na extração dentária como "tratamento". Isso por conta do contexto histórico da negação da dimensão social das doenças bucais como doença, do papel do Estado como mantenedor da saúde bucal e ainda, pela visão do ser humano que concebe "só arrancar o dente por ordem do dentista (...)".
Como uma ação ritual de base higiênica (Douglas, 1976), a categoria cuidado foi revelada como um "asseio" rotineiro contra o mau hálito, onde são categóricos ao afirmar que "não começam o dia sem passar uma água na boca". A categoria cuidado guarda proximidade com a noção de descaso, que foi considerado, no tempo, como a incorporação de hábitos de conservação dos dentes, como adquiridos e marcados na infância. Cuidado e incorporação de hábitos de higiene, estiveram fortemente associados ao aprendizado entre membros da família, na figura materna. A relação valor e cuidado atribuída à primeira dentição, remeteu à incorporação da naturalidade da perda dentária. Quando no contexto da fala, a família aparece como unidade decisória, é a autoridade paterna decisiva para a extração do dente. A indicação da extração de dente por parentes, amigos, pessoas mais velhas e vizinhos esteve sempre vinculada à experiência individual como referência, auxílio diante da agonia alheia e acompanhada como forma de encorajar e ajudar a suportar.
Outra variação de cuidado, recolhida nos depoimentos, é a facilidade, evidenciada na expressão "facilita muito" como os dentes, traduzida pelo não escovar regularmente, sem entretanto, deixar de fazê-lo. Essa reflexão sobre o ato que deixou de ser praticado, torna a ação futura em relação a si e, principalmente, em relação à saúde bucal de seus filhos como um aprendizado. A falta de trato, referência apontada nas entrevistas como razão dos dentes perdidos, emerge de um discurso odontológico educativo, colocado como responsabilidade do sujeito por "não escovar", "não escovar à noite", "não fazer a escovação correta".
O desdentamento foi apontado como saída em situações que revelam o fracasso do tratamento conservador anteriormente realizado. Fazendo uma reflexão sobre o encadeamento entre responsabilidade pelo ato, a ação do "dentista prático" foi revelada na categoria pensar. Uma categoria que evoca negligência com o bem-estar bucal, falta de preocupação, omissão na forma de reflexão quando em referência ao outro, ao paciente, no que se constitui como prática equivocada, atribuída à falta de cuidado com os efeitos futuros, provenientes de uma ação que, de acordo com suas conseqüências, poderá produzir prazer ou dor decorrente da perda dental reveladas nas concepções de saúde e doença dos entrevistados.
A ressonância entre a prática da extração de dentes e o tipo de dor sentida pelos interlocutores certificaram o sofrimento. A dor-de-dentes por ser uma dor física, subjetiva e não compartilhada, revelou, através das descrições, a intolerância e a falta de compreensão do profissional da Odontologia e do dentista prático ao lidar com o sintoma da dor. A ênfase dada pelos atores sociais ao grande número de dentes extraídos, e a circunstância da dor, revelou preocupação com a falta de critérios por aqueles que praticam a Odontologia; representada em falas como: "Para mim dava para aproveitar (...), mas Francisco do jeito que fosse era ferro". "Fui fazer tratamento e o dentista dizia que não dava para aproveitar (...)".
Foi explicitada a categoria punir, colocada em "o dentista deveria ser punido, responsabilizado pela extração, só por causa de uma cárie". Uma fala, observada como falta de sensibilidade do profissional, da condução de uma prática como se quisesse livrar-se do paciente e da dor como um problema. Uma experiência que revelou-se como iatrogênica.
À proporção que os ouvia, compreendi que o encorajamento ao desdentamento era feito através de uma vantagem financeira, proposta pelo dentista prático para solucionar os problemas da boca, seja para "completar" os dentes que estavam faltando ou para "recompor" a fisionomia ou a "boca murcha". O êxito obtido por ele consistia em firmar um contrato que estabelecia um "prazo" para iniciar e concluir as extrações, com entrega da "chapa" (prótese dentária total) em tempo mínimo, num valor tal que a extração unitária dos dentes seria onerosa e desvantajosa.
Referências
CANGUILHEM, G., 1982. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense-Universitária.
DOUGLAS, M., 1976. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva.
FERREIRA, A. B. H., 1982. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
LÉSSARD-HÉRBERT, M., 1990. Investigação Qualitativa: Fundamentos e Práticas. Lisboa: Instituto Piaget.