CARTAS LETTERS
Isabel Cristina Fonseca da Cruz 1 | Condições para a saúde e o bem-estar? Inquérito sobre as mulheres negras do Estado do Rio de Janeiro
Conditions for health and welfare? A survey on Black women in the State of Rio de Janeiro |
1 Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica, Universidade Federal Fluminense. Rua Dr. Celestino 74, Niterói, RJ 24020-091, Brasil. isabelcruz@uol.com.br 2 Rua São Pedro 24, 10o andar, Niterói, RJ 24020-050, Brasil. |
A saúde e o bem-estar compreendem a integração de aspectos somáticos (físicos), emocionais, intelectuais e sociais. Mas, o sexismo, combinado ao racismo, provavelmente é um fator perturbador da identidade pessoal, da imagem corporal, do autoconceito e da auto-estima, entre outros (Nóbrega & Gutiérrez, 2000). Quanto à mulher negra, segundo Cruz (1995) e Barbosa (1998), os poucos dados sobre saúde são críticos e evidenciam que elas são as que mais perdem anos de vida devido a uma subordinação tripla: gênero, raça e classe social. Por conseguinte, a permanência do desconhecimento sobre aspectos de saúde e bem-estar, particularmente os relativos à emancipação das mulheres negras, compromete o estabelecimento de políticas públicas que promovam o desenvolvimento social e a qualidade de vida.
Por meio do survey desenvolvido pelo Centro de Articulação das Populações Marginalizadas (CEAP) e Núcleo de Pesquisas, Informações e Políticas Públicas da Universidade Federal Fluminense (DataUff) sobre as relações raciais no Estado do Rio de Janeiro, entre janeiro e março de 2000, 1172 pessoas, escolhidas aleatoriamente, foram entrevistadas por meio de um questionário com 105 perguntas, após o consentimento informado e a garantia de sigilo e anonimato. Dos entrevistados, 607 (51,8%) são mulheres. No grupo feminino, 297 mulheres (49%) se auto-declararam pardas ou pretas (25,3% do total de entrevistados). São estas 297 mulheres negras que compõem a amostra desta pesquisa. Destacamos para análise as perguntas referentes à sensualidade (percepção do eu), à sexualidade (relações interpessoais) e à emancipação (poder econômico e político) da mulher negra. Os dados são apresentados descritivamente, sendo a sua discussão feita à luz da literatura especializada.
As 297 mulheres entrevistadas encontram-se distribuídas em três grandes regiões de amostragem: Interior (26%), Município do Rio de Janeiro (37,2%) e Região Metropolitana (36,8%). Quanto à sensualidade, verificou-se a insatisfação das mulheres negras com a própria aparência (pardas 47% e 45,4 % pretas). Uma parcela significativa (46,5%), declarou que se pudesse mudaria algo no seu corpo como, por exemplo, o cabelo (29,6%) e o nariz (9,2%). Avaliou-se que a vaidade e a beleza estética feminina ainda seguem um padrão europeu de beleza. Quanto à sexualidade, pelo estado civil, nota-se que as mulheres pardas casadas, com idade entre 25 e 34 anos, são em maior número (72,7% das mulheres pardas). No grupo de mulheres casadas, entre 18 a 24 anos, as pretas somam 40% e as pardas, 21,4%. Casamento em idade precoce e baixa condição econômica (76,5% das mulheres, entre 18 a 24 anos, pertencem às classes C, D e E - 47,1% na classe C, e 29,4% nas classes D-E) apontam para a possibilidade de problemas de saúde gineco-obstétricos sem o devido acompanhamento médico (Araújo, 2001).
Quanto à escolaridade, apenas sete mulheres, ou seja 4% da amostra estudada, possuem o nível superior completo. No restante da amostra, 33,1% possuem o primeiro grau incompleto, 22,6% possuem o segundo grau completo ou o curso superior incompleto; 22,3% são analfabetas ou possuem uma escolaridade inferior às quatro primeiras séries e 19,6% possuem o primeiro grau completo ou o segundo grau incompleto. Uma vez que o trabalho remunerado é um dos fatores que permite à mulher se afirmar enquanto sujeito, sem a necessidade de um mediador/provedor masculino entre ela e o universo, diante da baixa escolaridade e do baixo rendimento mensal médio (R$ 241,87), verifica-se que a mulher negra no Estado do Rio de Janeiro possui um substancial handcap quanto à emancipação. Vale ressaltar que 42,3% recebem menos de um salário mínimo nacional (R$ 151,00) como rendimento mensal e 38% não têm nenhum tipo de rendimento próprio, portanto, a inserção no mercado de trabalho e condições para aquisição dos bens de consumo parecem muito distantes do cotidiano das mulheres negras. Os dados evidenciam uma precária condição de saúde e bem-estar das mulheres negras e de suas famílias, e não diferem dos encontrados pelas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1997 e 1998, nem de outros estudos semelhantes (Araújo, 2001; Barbosa, 1998; Sant'Anna, 2001) e reforçam ainda mais o pressuposto de que o racismo é uma categoria relevante para a compreensão do processo saúde-doença na população brasileira.
Esta carta sobre o estudo que está em andamento no Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra (NESEN), da Universidade Federal Fluminense (UFF), já evidencia o espaço reservado pelo sexismo e pelo racismo para o segmento de mulheres negras na sociedade fluminense: a subalternidade. Evidência e denúncia apontam para a necessidade de proposições de políticas públicas de saúde, economia e educação que corrijam em curto e médio prazos as distorções aqui apresentadas e que colocam a mulher negra à margem da sociedade e da sua humanidade. Apontam ainda a necessidade de se desenvolver pesquisas na área da saúde sobre as mulheres negras, de modo a habilitar os profissionais de saúde quanto ao diagnóstico e ao tratamento dos distúrbios de auto-estima, auto-imagem e autoconceito decorrentes do racismo.
Agradecimentos
Agradecemos ao Dr. Zairo Borges Cheibub, diretor do DataUff, a disponibilização dos dados.
ARAÚJO, M. J. O., 2001. Reflexões sobre a saúde da mulher negra e o movimento feminista. Jornal da Rede Saúde, 23:24-26.
BARBOSA, M. I., 1998. Racismo e Saúde. Tese de Doutorado, São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.
CRUZ, I. C. F., 1995. Sensualidade, sexualidade e emancipação. Subsídios para a discussão sobre a subjetividade da mulher negra. Revista de Enfermagem UERJ, 3:227-232.
NÓBREGA, M. M. L. & GUTIÉRREZ, M. G. R., 2000. Equivalência Semântica da Classificação de Fenômenos de Enfermagem da CIPE. Versão Alfa. João Pessoa: Idéia.
SANT'ANNA, W., 2001. Desigualdades étnico/raciais e de gênero no Brasil: As revelações possíveis do IDH e IDG. Jornal da Rede Saúde, 23:24-26.
Recebido em 16 de junho de 2001
Versão final reapresentada em 26 de outubro de 2001
Aprovado em 7 de novembro de 2001