RESENHAS REVIEWS

 

DISCURSOS MÉDICOS SOBRE SERES FRÁGEIS. Marília Bernardes Marques. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2001. 88 pp.

ISBN: 85-85676-92-2

 

 

Direto, objetivo, beneficamente simples, sintético, útil, entre outros, são termos que se pode usar, com toda a propriedade, para adjetivar o trabalho de Marília Bernardes Marques que acaba de ser publicado pela Editora Fiocruz. Se agradável de ser lido por qualquer um que minimamente se interesse pelas questões correlatas à saúde coletiva, para aqueles que iniciam seu envolvimento direto em cursos de pós-graduação na área, por exemplo, o livro oferece ao leitor frutíferas informações e levanta questões cuja importância pode ser consensual, mas, por vezes, não posta de forma tão concisa.

A autora começa seu trabalho situando-o no espaço e no tempo, o que por si só já se consubstancia como um exemplo acadêmico a ser seguido. Os leitores são colocados de imediato em contato direto com Marília Bernardes Marques, e levados a compartilhar o desenrolar histórico de suas pesquisas, inquietações, ações e posições no campo da saúde relacionado ao binômio mãe-filho. São esses os seres frágeis de que o título trata e são eles também os personagens em torno dos quais o enredo se constrói e a narrativa se encadeia, só que eles jamais se apartam daquela que sobre eles escreve.

Para além do esboço das complexas redes que tecem as relações de poder entre Estado, medicina e pessoas, trata-se de uma chamada de atenção em prol da civilidade em oposição ao que Marília Bernardes Marques, apropriando-se de Hobsbawn, chama de barbárie. E, para ela, na construção dessa civilidade, os discursos que nela se engajaram e engajam podem ser "desmontados" tanto naquilo que ideologicamente encobriam e encobrem, quanto no que de positivo traziam e trazem. Em suma, trata-se de botar as idéias no lugar e tomar uma posição que, talvez, os historiadores contemporâneos da cultura classificariam de iluminista, especificamente no que ela conota de defesa dos direitos humanos.

De certa maneira, pode-se sugerir que Marília Bernardes Marques realiza uma narrativa sobre narrativas que se produziram, por sua vez, em cima de outras narrativas e, nesse processo, constrói de maneira própria e analítica sua narração sobre as continuidades e descontinuidades que pautam o desenrolar histórico de processos de exclusão e inclusão, focados nas técnicas médicas e nas tecnologias discursivas acerca do binômio mãe-filho.

A autora desenvolve seu primeiro capítulo pondo no proscênio a criança e a medicina do iluminista século XVIII. Apoiando-se em autores consagrados como Ariés, Badinter e no capítulo de Seidler sobre a pediatra moderna que é um dos componentes do tour de force da Historia Universal de la Medicina de Entralgo, Marília Bernardes Marques percorre a construção do estado burguês e da respectiva noção de que sua riqueza depende da quantidade de seus súditos, ou seja, de abundantes efetivos numéricos para o trabalho e para a guerra. As crianças e suas progenitoras ganham relevo nesse espaço, as primeiras enquanto sinônimo do futuro e as segundas como as geradoras desse futuro. A saúde da população passa a ser encarada como uma questão social estratégica, e nela a fragilidade da infância é decantada em prosa e em verso, sendo sua defesa encampada por três discursos fundamentais: o econômico, o filosófico e o denominado pela autora de intermediário, compreendendo os veiculados por médicos, moralistas, filantropos, administradores, pedagogos, chefes de polícia que escolheram a mulher como interlocutora privilegiada.

O discurso médico cuja formatação, no primeiro capítulo, é tracejada via as transformações sofridas pelos hospitais e pelo advento da anatomia patológica, é abordado no segundo, tendo por base sua aliança com a escola, traduzida na máxima "educação para a saúde". A preocupação da autora é dar contornos à puericultura, caracterizando-a como um projeto médico-pedagógico nascido no século XIX, mas que até hoje é um dos componentes fundamentais das políticas públicas voltadas para a saúde das mães e de seus filhos. Boltanski, cuja influência no pensamento sanitarista brasileiro, é por demais conhecida, funciona como o trilho bibliográfico em cima do qual a narrativa viaja. É apresentado ao leitor a reprodução de duas páginas do Child Health Alphabet (Alfabeto da Criança Sadia) que, por si só, fala muito da "missão civilizatória" com a qual pretendia-se dominar a "barbárie" de então. Aliada à escola, a autoridade médica foi se expandindo e para além da doença começou a exercer-se sobre a saúde. A revolução pasteuriana forneceu as bases científicas do discurso médico e os preceitos da higiene infantil passaram a ser transmitidos por disciplinas como a economia doméstica e a puericultura. E o pano de fundo de todas essas iniciativas era a alta mortalidade infantil associada à pobreza, que incansavelmente alimentava o medo do despovoamento.

Entender o "fantasma do despovoamento" é também apreender o surgimento da necessidade de estudar-se (para melhor agir) as causas evitáveis do número assustador de mortes de crianças a que se assistiu na Europa Ocidental dos séculos XVIII e XIX, mortes que, como bem salienta a autora em seu terceiro capítulo, "remetem às reflexões sobre as mazelas sociais peculiares dos países subdesenvolvidos" (p. 46). Se as descobertas de Pasteur e Koch acenderam as ilusões de que a ação médica bastaria para curar as doenças, a realidade da permanência das elevadas taxas de mortalidade infantil impôs seus limites, direcionando as atenções para as causas sociais que ingeriam na saúde e na doença. Revigoraram-se as idéias veiculadas pela Reforma Sanitária, melhorando-se o saneamento básico, ampliando-se o acesso à água limpa e a compreensão da necessidade da higiene na preparação dos alimentos, implementando-se facilidades para a sua preservação. À amamentação ao seio apregoada pelo discurso puericultor, soma-se a produção de um leite de vaca de melhor qualidade, iniciando-se, no final da década de trinta do século XX, a oferta industrial do leite em pó que assumiria escala mundial vinte anos depois. Despertadas pelo "fantasma do despovoamento" todas essas mudanças ganhariam enorme vulto e se difundiriam juntamente com as práticas médicas que seriam englobadas sob a égide da proteção à maternidade e à infância.

Em seu último capítulo, Marília Bernardes Marques demonstra que a retórica demográfica que dominou a virada do século XIX para o século XX, na Europa Ocidental, ecoou nas vozes dos médicos brasileiros e que sua tônica emocionada permanece. A instigante tese que alavanca é a de que a secular paixão pela quantificação, diante da realidade, acrescentou muito pouco ao esclarecimento do problema das relações entre saúde e desenvolvimento. E para solidificar sua assertiva parte para revisitar os esforços da história e da sociologia na construção da própria noção de desenvolvimento, trazendo para o leitor uma leitura clara e, por isso, elucidativa da chamada transição demográfica. Transportando quem a lê para o presente/futuro das tecnobiociências e suas aplicações à saúde humana, argumenta que o extraordinário desenvolvimento da medicina durante o século passado e que, pelo que tudo indica, será ainda mais supersônico nesse século XXI, mantém a determinação social da saúde do binômio mãe-filho. Nem a ênfase nos aspectos biológicos, nem o viés determinista dos indicadores numéricos e nem tampouco o reducionismo do novo arquétipo do genoma, contudo, conseguiram "vencer sua complexidade" (p. 75).

Concluindo, Marília Bernades Marques se coloca perante todas as questões que sua narrativa escolheu arrolar, como que querendo mostrar que as lições da história estão aí para quem delas quiser tirar proveito. Por isso é mais um desafio do que uma dúvida o que deixa pendente no ar.

 

Maria Helena Cabral de Almeida Cardoso
Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.

 

 

COMO NASCERAM MEUS ANJOS BRANCOS: A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO DA NUTRIÇÃO EM SAÚDE PÚBLICA EM PERNAMBUCO. Francisco de Assis Guedes Vasconcelos. Recife, Edições Bagaço, 2001. 174 pp.

 

O novo livro do Professor Francisco Vasconcelos, da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal de Santa Catarina, chega em boa hora, pois supri uma lacuna importante na produção científica do campo da Nutrição em Saúde Pública, ao abordar de forma cuidadosa e sistematizada a complexa constituição dessa área no Estado de Pernambuco, entre 1930 e 1982.

O livro tem o prefácio assinado pelo Professor Malaquias Batista Filho, por sinal uma escolha muito apropriada, pois talvez seja esse o mais produtivo e conhecido dos anjos. Também não sejamos injustos. A apresentação do livro foi feita de forma extremamente entusiasmada e contagiante, não permitindo ao leitor outra coisa se não esperar uma grande leitura.

Originado de sua tese de doutorado, defendida na Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz em 1999, Como Nasceram meus Anjos Brancos, constitui-se em um interessante exemplo de como uma tese, complexa em sua essência, pode ser digerida com o gosto das boas leituras.

O livro é composto por uma esclarecedora introdução e cinco capítulos bem desenhados. Cada um aborda na conta certa a sua temática e as complexas especificidades dos cortes transversais selecionados pelo autor. São ao todo 174 páginas, 117 notas de rodapé e dezenas de citações.

A introdução de Como Nasceram meus Anjos Brancos contempla entre outros tópicos, uma breve descrição da história do campo da Nutrição nas primeiras décadas do século XX, o processo de como se deu o início da criação dos principais cursos de Nutrição no Brasil, e como não poderia deixar de ser, uma cuidadosa apresentação do livro.

A opção teórico-metodológica do autor é o cerne da introdução, o que de certa forma, se confunde com o que deve ter sido um capítulo metodológico na tese. A pesquisa sobre a constituição do campo da Nutrição em Saúde Pública foi realizada segundo uma abordagem histórico-estrutural, com uso tanto da análise de fontes orais, tendo como base a metodologia da história oral temática, assim como na análise histórica das fontes escritas disponíveis.

Para cumprir com o primeiro procedimento, o autor selecionou a partir de uma rede de pesquisa previamente estabelecida, 14 colaboradores. Esses sujeitos foram selecionados em função da importância ou do papel que desempenharam na constituição do campo da Nutrição em Saúde Pública em Pernambuco. São eles: Bertoldo Krause Grande de Arruda, Emília Aureliano de Alencar Monteiro, Enilda Lins da Cruz Gouveia, Eronides da Silva Lima, Heloísa de Andrade Lima Coêlho, Jamesson Ferreira Silva, Malaquias Batista Filho, Maria Anunciada Ferraz de Lucena, Maria Auxiliadora Santa Cruz Coelho, Maria Christina Malta de Almeida Costa, Marly Cordeiro Baez, Naíde Regueira Teodósio, Nonete Barbosa Guerra e Zélia Milet Cavalcanti de Oliveira.

Para a análise das fontes escritas o autor se valeu de um importante trabalho realizado por Costa (Memória Científica do Departamento de Nutrição e das instituições predecessoras, 1995b), no qual estão registrados sob o ponto de vista histórico, toda a produção científica desde 1932, do quadro de docentes do Instituto de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco (INUFPE). A partir dessa publicação, o autor pôde traçar o perfil quali-quantitativo da produção científica de Nelson Chaves e dos outros pesquisadores do INUFPE (Arruda, Monteiro, Coêlho, Batista-Filho, Lucena e Baez) vinculados ao campo da Nutrição em Saúde Pública, ao longo dos quatro cortes transversais (1930-1949; 1950-1963; 1964-1972 e 1973-1982) que compõem o eixo longitudinal dessa investigação. Esses cortes correspondem a contextos históricos específicos, da mesma forma que delimitam os capítulos do livro e a trajetória dos Anjos Brancos. É interessante a denominação dos títulos de cada capítulo (gestação, nascimento, crescimento, reprodução e o adeus), nos quais o autor metaforicamente transpõe o ciclo da vida para a constituição do campo da Nutrição em Saúde Pública.

O primeiro período analisado contemplou os anos entre 1930 e 1949. Esse período serviu como uma espécie de preparação para instituição do campo da Nutrição em Saúde Pública, no estado de Pernambuco. Nesse capítulo o autor apresenta o que viria a ser a base do conhecimento científico dessa área, através da discussão implementada por Nelson Chaves, Josué de Castro, Gilberto Freire e Orlando Parahym. Entre os diversos pontos de debate, sobressai por um lado, a divergência vivenciada por Castro e Freire acerca da discussão em torno do "aprimoramento eugênico do povo brasileiro através de uma alimentação racional", cabendo a Castro, segundo o autor, a tese do mal da fome e não da raça. Por outro lado, é interessante constatar a existência de um elemento comum na identidade da obra dos quatro pesquisadores analisados, qual seja, o quadro da miséria social, que pode ser bem retratada nos marinheiros, mulatos e cafuzos de Freire; nos homens caranguejos de Castro; nos catingueiros da seca de Parahym e nos operários e colegiais desnutridos de Chaves.

Os anos cinqüenta (1950-1963), foram definidos pelo autor como o verdadeiro nascimento dos Anjos Brancos, na medida em que uma série de fatos específicos permearam a criação do Curso de Graduação em Nutrição da UFPE. Entre eles, o autor destacou a realização dos Nutrition Survey do Interdepartmental Committee on Nutrition for National Development (ICNND) e a realização pelos Estados Unidos, do programa alimentos para paz no Nordeste Brasileiro. No que diz respeito à trajetória dos dois principais personagens do capítulo (Castro e Chaves), esse período acaba por se caracterizar para Castro por uma intensa ação política e intelectual, com sua indicação para membro da FAO pelo estado novo de Vargas. Já para Chaves, o período é marcado por importantes estudos sobre a fisiologia das proteínas, assim como pela criação dos Cursos de Nutricionistas e o Curso de Especialização em Nutrição e Saúde Pública para Médicos.

O terceiro capítulo (O Crescimento), corresponde aos anos entre 1964 e 1972, período onde já havia sido identificado um núcleo inicial de pesquisadores em Nutrição em Saúde Pública. São destaques do capítulo os trabalhos desenvolvidos nos Centros de Educação e Recuperação Nutricional (CERNs) e o Programa de Suplementação Alimentar Supervisada (SAS). São anos de ditadura, mas parece que à exceção de Castro, exilado, os pesquisadores do INUFPE conseguiram efetivamente institucionalizar o campo da Nutrição em Saúde Pública em Pernambuco.

Durante o período 1973-1982, onde o autor conclui a trajetória investigada, a discussão centrou-se na ampliação das fronteiras de atuação do grupo de pesquisadores do INUFPE, com uma abordagem sobre a instituição do II Programa Nacional de Alimentação e Nutrição, além do encerramento da análise sobre a produção científica de Chaves e seus colaboradores. Essa análise permitiu inclusive, identificar uma divisão nos campos do conhecimento em Nutrição em Saúde Pública, consolidando-se o processo de divisão e especialização do saber entre os componentes do grupo.

O quinto e último capítulo (Adeus meus anjos Brancos), se constitui em uma revisita de todo o processo de constituição do Campo da Nutrição em Saúde Pública em Pernambuco, funcionando assim, como capítulo síntese de todo o livro. O autor busca discutir os diversos potenciais significados da histórica expressão Meus Anjos Brancos, criada por Nelson Chaves nos idos dos anos 40, a partir de uma série de depoimentos. Se você ficou curioso acerca dos significados da expressão, compre o livro e boa leitura.

 

Gilberto Kac
Departamento de Nutrição Social e Aplicada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

 

 

ALGUMAS TESES SOBRE O DESPORTO. Manuel Sergio. Lisboa, Compendium, 2001. 91 pp.

 

A Saúde Coletiva no Manuel Sérgio contemporâneo

 

"Um entre os seus", Manuel Sérgio esteve muito presente no pensamento acadêmico brasileiro do último quarto de século, cogitando, polemizando, sintetizando, enfim reconstruindo com entusiasmo o segmento da Educação Física no interior de nossa Universidade. Intelectual erudito, jornalista reflexivo, dirigente clubístico, militante político e amigo irrestrito, Manuel Sérgio nos fez conviver com as inquietudes e controvérsias da área, reconhecendo-lhe a ausência de matriz teórica, de linguagem própria e de comunidade científica. Enfim, propôs e operou a mudança do físico para o motor, vale dizer da Educação Física para o corpo-alma-natureza-e-sociedade da Motricidade Humana (MH), com as respectivas exigências epistemológicas demandadas. Particularmente, a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) nesta fonte bebeu à saciedade, quando tendo-o como Professor Visitante durante a efervecência dos fugazes anos oitenta, situou-se na centralidade da área, tanto em nível nacional quanto internacional. Sobretudo para comigo, então na sua mesma condição institucional, não poupou o ilustre mestre de todos nós a generosidade do convívio e o privilégio do aprendizado, culminando sua deferência ao compor a banca examinadora que julgou-me apto a assumir as funções de Docente MS6 no Departamento de Ciências do Esporte.

Tudo isto pertence à História e como tal nos sentíamos, quando fomos surpreendidos com este seu 27o livro já em pleno século XXI. De fato, ei-lo aqui na plenitude de seu fulgor, transitando com a naturalidade dos sábios e a legitimidade dos estudiosos no diálogo com expressões de Bourdieu, Huizinga, Feyerabend, Ilya Prigogine, Heidegger, Jürgen Habermas, Edgar Morin e de tantos outros, como sempre tem feito desde suas obras seminais (Sérgio, 1988, 1995). Mais que tudo, no entretanto, agora se ocupa também, ainda que na tangência, do objeto específico da relação Saúde Coletiva-Atividade Física.

Como Midas do intelecto, toca-a recompondo o hipertexto no qual a mesma se situa. Nesta obra, quatro, parece-me, são os objetos principais de sua atenção: o desporto, a MH, a saúde e o progresso do desporto. Tanto a Educação Física é vista como o braço pedagógico da MH, quanto o desporto uma das suas aplicações, assim como o jogo, a dança, a fisioterapia, a ergonomia e o circo. Portanto, fulcral ao pensamento sergiano está a complexidade da MH, perspectivada como diz à página 82 "(...) com matriz teórica (o ser humano, no movimento intencional da transcendência), campo empírico (o corpo, na interação dos processos biológicos com os valores sócio-culturais) e um plano lógico-reflexivo (em que se torna hierarquizada, explicitada e compreendida a visão do todo)..." Precedido o corte epistemológico da MH, indaga, entrementes, o próprio autor à página 83: "Mais uma questão ainda: mas não há elementos aproveitáveis na Educação Física tradicional? É evidente que há! O seu conteúdo humano e humanizante é de se respeitar e perpetuar".

No contexto apontado, situa o pensador outro objeto de reflexão que se insinua neste hic et nunc pelo menos para mim, pela primeira vez: a Saúde Coletiva. Partindo da concepção trazida à página 42 de que se trata de instância de superação de limitações, a qual já trabalhávamos anteriormente (Gonçalves, 1981), a missão que se evoca consiste em garimpar ao longo da obra aqui introduzida, os diferentes excertos em que a Saúde Coletiva é considerada. Nesse sentido, também à página 42, situa-se a proposição de estatuto ideológico da Saúde que se articula a MH: "(...) uma defesa intransigente da vida; o respeito inalienável da pessoa humana; uma atitude permanente de solidariedade...", prioridade que leva a atividade física para além dos níveis mecânicos das condutas motoras. Com sua claridade meridiana a atingir a ironia, a provocação e até a irritação, à página 77 reafirma: "(...) A Saúde é um fenômeno social; não depende unicamente (nem principalmente) de meia dúzia de saltos ou de corridas (...)". Aí está a confirmá-lo, o produto do movimento sanitário brasileiro, i. e., a abrangência de nossa Constituição Cidadã que reconhece a Saúde como dever do Estado e direito de Cidadania.

Três são as dimensões que, decorrendo dessa idéia-central acerca da identidade coletiva da Saúde, identificam-se e elegem-se em Manuel Sérgio, às páginas 56 e 57, para imediata explicitação: as respectivas componentes política, metodológica e profissional. Em relação à primeira, trata-se da "(...) recusa à ação que se poluiu pelos exageros do universo tecnológico e pelas taras da sociedade neo-liberal que é a nossa (...)". Aí está ele referindo-se, por um lado, ao excesso de recursos diagnósticos e terapêuticos, que substitui a meticulosa relação do acolher, cuidar e intervir, e, no complemento de sua afirmação, a perversa assimetria da assistência diferenciada de primeira e de segunda classe à saúde das pessoas, i. e. daquelas a quem o modelo econômico ocidental vigente permite, e daquelas a que exclui, o acesso aos procedimentos da Saúde.

A atenção para com a metodologia está na denúncia do "uso e abuso da investigação quantitativa e o demasiado desconhecimento da investigação qualitativa". Em outros termos, como já exploramos anteriormente (Gonçalves, 1990): quando a significância estatística aponta para o significado social, é que se está aproximando da determinação dos fatos. Em suas palavras, a abrangência aqui está em que "(...) se todo o real é complexo, o quantitativo e o qualitativo devem integrar qualquer investigação científica; com isso não se entra numa fase ocamente retórica, nem se dispensam os métodos laboratoriais ou experimentais: mas acentua-se que o conhecimento é uma produção interpretativa e criadora, para além dos resultados empíricos (...)".

Concluindo, recorde-se sua assertiva sobre a natureza dos recursos humanos setoriais: devem ser multiprofissionais as equipes promotoras de saúde; em todas elas há de ser presente a dignidade das pessoas e a complexidade humana, além do apelo do juízo moral que delas decorre.

Como já se disse acima, todas essas constatações referentes à Saúde Coletiva foram apreendidas na obra em apreço não porque se mostrem substantivamente, mas através do que chamamos de "exegese garimpeira". A expectativa que se erige é que se trate de incursão exploratória por este campo de estudo e intervenção, e que a reflexão questionadora e construtiva do autor seja atraída mais amplamente pela matéria, de sorte a trazer contribuições sentidas para o entendimento e superação do duplo desafio que hoje vivemos no Brasil: reduzir as iniqüidades e exclusões de nossa prática assistencial, pelo fortalecimento de nossa instituição áurea, o Sistema Único de Saúde.

 

Aguinaldo Gonçalves
Grupo de Saúde Coletiva/Epidemiologia e Atividade Física, Faculdade de Educação Física, Universidade de Campinas, Campinas, Brasil.

 

 

GONÇALVES, A., 1981. A saúde e a população: Contribuição para entendimento deste binômio em nosso meio. Ciência e Cultura, 33:1425-1429.

GONÇALVES, A. & CARNEIRO-LEÃO-RIBEIRO, M., 1990. O ensino da estatística para não estatísticos. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 11: 190-192.

SÉRGIO, M., 1988. Para uma Epistemologia da Motricidade Humana. Lisboa: Compendium.

SÉRGIO, M., 1995. Motricidade Humana. Lisboa: Instituto Piaget.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br