Victor Wünsch Filho | Debate sobre o artigo de Leny Sato Debate on the paper by Leny Sato
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Departamento de Epidemiologia, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil | Saúde do trabalhador como liberdade |
Com freqüência as descrições de intervenções na área de saúde do trabalhador e as análises das relações trabalho-saúde, restringem o encaminhamento de soluções dos agravos à saúde relacionados ao trabalho, à negociação coletiva, envolvendo trabalhadores, empresários e eventualmente representantes governamentais. Por suposto, na instância da negociação coletiva os riscos ocupacionais são equacionados no seu conjunto traduzindo-se num maior impacto sobre a saúde. A discussão das negociações cotidianas no trabalho, tema pautado por Leny Sato, é oportuna por propor um outro foco de atenção para os profissionais envolvidos nesta área. É, também, uma reflexão em tempo frente às mudanças que estão ocorrendo nas relações de trabalho contemporâneas.
As negociações cotidianas colocam-se na dimensão das liberdades individuais, que proporcionam a contínua definição e redefinição de múltiplos coletivos, particulares, nos espaços de trabalho. A concepção de replanejamento do trabalho, como apresentada pela autora, significa os empregados exercerem maior controle e autonomia sobre sua vida no exercício de seu ofício, com o objetivo de preservar seu bem-estar e sua saúde. Como conseqüência, essa atitude também estimularia a produtividade pelo aperfeiçoamento dos processos de trabalho e redução de custos.
Leny Sato fundamenta teoricamente os elementos que regem as negociações cotidianas, e fixa sua análise no contraste de interesses conflitantes entre trabalhadores e gerência empresarial, e apresenta um exemplo de aplicação de relações cotidianas pelos trabalhadores de uma indústria de alimentos. É uma descrição bastante ilustrativa do potencial criativo gerado pelo exercício da liberdade, levando à racionalização do trabalho e maior segurança para os trabalhadores. Embora algumas teorias recentes das relações de trabalho incorporem na sua formulação a criatividade latente das negociações cotidianas, entre os empresários não é unânime a aceitação de que esta forma de liberdade deva ser estimulada a se manifestar e de que seja benéfica para a produção. É, habitualmente, refutada por um raciocínio contrário, o papel desagregador que poderia vir a exercer.
A liberdade individual é indispensável para que os indivíduos tenham livre expressão e possam agir de forma mais criativa. Amartya Sen (2000), refere-se a um conceito de liberdade muito elementar e com expressivo significado para a saúde do trabalhador: a capacidade de sobreviver em vez de sucumbir à morte prematura. Salienta aquele autor que esta é obviamente uma forma de liberdade substancial, embora assinale que o leque de liberdades relevantes para o indivíduo pode ser muito amplo, a exemplo da liberdade de escolha do emprego. A questão de fato é a dificuldade de tratar a liberdade individual como um modelo "operacional" para equacionar os problemas de saúde nos ambientes de trabalho, cuja lógica de organização encontra-se definida pelos determinantes da produção capitalista. Mas se a negociação coletiva permite estabelecer planos gerais de proteção à saúde, é o exercício cotidiano da liberdade que permitirá ao trabalhador construir o seu modo de vida no trabalho.
Nas palavras de Leny Sato, as negociações cotidianas são virtualmente invisíveis para o observador apressado. É uma classificação que comporta grande parte dos profissionais ligados à saúde do trabalhador (mas, certamente, não o corpo gerencial das empresas), dadas à intensa demanda aportada nos serviços, atuações com ênfase em abordagens de cunho coletivo e, sobretudo, a característica de visitantes esporádicos aos locais de trabalho. Essas intervenções mais abrangentes, fundamentais, estarão sempre submetidas às particularidades do trabalho como exercido na rotina diária, no contexto da política empresarial e de interação social dos trabalhadores entre si e destes com a gerência. Essas pequenas intervenções que se materializam na microfísica do trabalho, criativas na estratégia de sobrevivência, estão fora do controle dos técnicos.
A liberdade participativa no mundo do trabalho requer um grau básico de instrução e o conhecimento sobre organização e processos de produção. Portanto, uma trajetória contínua é distinguível na obtenção da saúde e bem-estar no trabalho, e no seu curso, conflitos serão gerados, devendo-se considerar aqui a especificidade do fenômeno que a autora denomina "deslocamento de posições". Muitas vezes os trabalhadores impõem mudanças à dinâmica planejada pela gerência, embora isso possa ser interpretado pelos empresários como uma ameaça à ordem empresarial. Por outro lado, os trabalhadores podem opor resistência aos "especialistas em saúde ocupacional", simplesmente porque avaliam que seguir suas orientações, em princípio favoráveis à sua saúde, em determinadas conjunturas de política nacional ou da própria empresa pode significar a perda do emprego fato que, com lucidez, julgam mais grave do que o risco de doenças ou acidentes enquanto evento competitivo para a sua sobrevivência e de sua família. Deduz-se, portanto, que a conquista da saúde nos locais de trabalho não se dará por meio de tecnicalidades impostas interna ou externamente. Agir dentro das regras democráticas, ouvindo, orientando, esclarecendo e negociando com os trabalhadores é parte crucial do processo.
A tendência às economias e sociedades abertas como efeito da globalização traz, ao lado de novas oportunidades de negócios e benefícios para os consumidores, numerosos problemas para o trabalho, cuja regulamentação torna-se crescentemente precária. Os empregos informais, em geral, são menos seguros e incorporam menos vantagens sociais, aumentando a sensação de insegurança dos trabalhadores (Somavia, 1999). Nesse contexto, a preservação da saúde dos trabalhadores torna-se um objeto mais distante de abordagem pelos "especialistas em saúde ocupacional". A prevenção de agravos à saúde do trabalhador por meio do replanejamento do trabalho, via negociações cotidianas, reconduz ao trabalhador a gerência de sua saúde. A questão da discussão sobre saúde do trabalhador e participação social é central para a elaboração de políticas em estruturas democráticas. Em uma perspectiva orientada para a liberdade, as liberdades participativas devem, necessariamente, ser parte das análises de políticas em saúde do trabalhador. É esta a essência da argumentação de Leny Sato. Pelo menos, é esta a minha leitura de suas idéias.
SEN, A., 2000. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia da Letras.
SOMAVIA, J., 1999. Decent Work for All in a Global Economy: An ILO Perspective. 28 February 2002 <http://www.ilo.org>.