Raquel Rigotto |
Departamento de Saúde Comunitária, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil | Um outro trabalho é possível ! |
Muitas vezes as análises dos macroprocessos da Globalização e da Reestruturação Produtiva, em seus impactos sobre o mundo do trabalho, nos conduzem - com razão - ao reconhecimento da enorme concentração de capital e de poder em curso no sistema mundial de acumulação, da fragmentação da classe trabalhadora e do enfraquecimento do movimento sindical, da dificuldade em alimentar os laços de solidariedade, e apontam como perspectiva a emergência e o vigor de movimentos da sociedade civil também mundializados.
Sem perder de vista esse contexto, Leny Sato mergulha no cotidiano dos processos de trabalho e nos brinda com o registro de fendas, brechas, fissuras e nuances, identificadas a partir de um olhar atento e sensível no plano da empiria. (Como é bom quando alguém vem nos mostrar que não "está tudo dominado", que as pessoas continuam querendo dar sentido ao seu trabalho cotidiano e à sua existência!). Um olhar coerentemente articulado às construções teóricas em seu campo de saber, e também enriquecido por uma visão de mundo que incorpora as ciências sociais e políticas, a antropologia, entre outras disciplinas, numa trajetória complexa movida pelo desejo de contribuir num problema também complexo: a saúde dos trabalhadores.
Conduzida por seu olhar sobre as negociações cotidianas, pude revisitar depoimentos colhidos de trabalhadores nas indústrias recém-migradas para o Ceará, e verificar que elas também ocorrem aqui: "Quando eu abria os tambores de químico eu sentia aquele cheiro forte, inalava tudo. Aquilo é prejudicial à saúde, medo eu tinha... A gente procurava evitar, sabia que podia dar câncer... Nós combinávamos revezar entre a gente mesmo, cada dia quatro fazia uma coisa, senão viciava. Se eu ficasse só no solvente, acostumava com aquilo e não queria mais sair dali. Quando eu trabalhava lá, sentia que a minha vida estava diminuindo, por causa dos químicos..." (Trabalhador da indústria têxtil em Horizonte, Ceará) (I. Rosa & R. Rigotto, comunicação pessoal).
A aproximação da dimensão simbólica da negociação é particularmente instigante. Se a organização do trabalho é, de fato, uma ideologia - "sentido a serviço do poder", como propõe Thompson (1995) - ela precisa ser compreendida na intimidade do contexto social específico em que é construída e aplicada. Além disso, as formas simbólicas produzidas e impostas não são simples e passivamente absorvidas, mas passam por um processo contínuo de compreensão e interpretação, de discussão, apreciação - quando podem ser desafiadas, criticadas, contestadas e destruídas.
Tento compreender o imaginário que Josildo trazia consigo e a dinâmica por que passou ao longo do processo de negociação descrito por Leny Sato. A regra de ter de apagar as gravações - deletar o próprio trabalho?, trabalhar mais?, trabalhar de novo? Cansaço, raiva, indignação? O que fazer com esses sentimentos? Engolir, negar, afogar num porre, descarregar fora do trabalho? Negar-se à tarefa, resistir, brigar? E os tantos medos? Josildo parece ter assumido o desejo de que o trabalho - ou pelo menos esta regra - fosse diferente, a despeito da apregoada racionalidade técnica. Haveria um jeito de fazer diferente! E que seria possível implantar mudanças - ainda que num contexto assimétrico de forças. Se é que algo semelhante aconteceu no imaginário de Josildo e de seus companheiros, compreender a dinâmica destes dois momentos - assumir o desejo de mudança e acreditar na possibilidade dela - parece-me muito importante, por serem movimentos-chave para a ruptura com as representações instituídas e para a instituição de novas. Conhecer os processos facilitadores destas transformações do imaginário pode, por exemplo, iluminar conteúdos e metodologias adequados para as práticas educativas desenvolvidas por entidades sindicais, voltadas para a organização dos trabalhadores.
Em seguida (será que há uma seqüência tão lógica?!) vem a astúcia do grupo, como bem registra Sato: uma verdadeira e complexa análise estratégica de atores e da ação, onde os trabalhadores partilham, no plano coletivo, a insatisfação, o desejo e a crença na mudança; antecipam dificuldades e identificam possibilidades de alianças - quando se "deslocam" para o lugar dos outros atores e percebem a "com-fusão" de interesses em pontos específicos; dão visibilidade ao problema, negando-se à tarefa ou convocando as "mulheres da linha de cima" para ajudar nela; e vão ao supervisor de produção munidos de argumentos e propostas.
Saíram vitoriosos! E a vitória também tem uma dimensão simbólica, apontada por Leny Sato, que constitui-se certamente em um outro tipo de ganho para os trabalhadores. Acredito que, no processo de constituição desses sujeitos - e dos que acompanharam a história a partir de outras "linhas" -, ter conseguido mudar o que é dado como imutável, racional, poderoso, será uma experiência indelével - ao contrário dos seus carimbos nos frascos!
Quiçá os profissionais da área de saúde do trabalhador possamos revisitar agora nossas representações sobre os trabalhadores e, a partir do reconhecimento de seu saber e capacidade de ação em defesa da saúde, resituar nosso papel e nossas práticas...
THOMPSON, J. B., 1995. Ideologia e Cultura Moderna: Teoria Social Crítica na Era dos Meios de Comunicação de Massa. Petrópolis: Editora Vozes.